Justiça social, Francisco e o Palácio Apostólico
por LUIS FELIPE GENARO
Entre os dias 27 e 29 de outubro, o papa Francisco chamou ao suntuoso Estado do Vaticano diversos movimentos populares, dos sem-terra, confederações indígenas e sem-teto às organizações de trabalhadores e desempregados de todo o mundo.
Visando a busca incessante por mais direitos e a crítica ferrenha às mazelas do neoliberalismo, este evento inédito foi organizado pelo Pontifício Conselho de Justiça e Paz e a Pontifícia Academia de Ciências Sociais, alterando lógicas já um tanto enferrujadas para o século XXI.
Além de um ilustre integrante latino-americano, o presidente boliviano Evo Morales, dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra estiveram presentes. Ao abordar a Reforma Agrária, um dos temas centrais, o papa foi categórico: "além de uma necessidade política, uma obrigação moral".
Hoje, à luz de uma conturbada história recente, o centro político-administrativo da instituição católica parece chacoalhar-se a cada ação e discurso "revolucionários" do clérigo argentino. Francisco vem sendo apontado por setores da imprensa e do clero como o salvador do catolicismo moderno. Uma lufada divina em meio a uma das mais intensas conjunturas da Igreja contemporânea.
João Paulo II, ao falecer em 2005, gerando expressiva comoção global, deixava as portas do Palácio Apostólico abertas para Joseph Ratzinger, amigo íntimo de eximia erudição, poder e influência internacionais. Para vaticanistas, a vitória de Ratzinger era dada por certa, o conclave que o escolheu, decidido.
À direita conservadora e tradicionalista do Colégio de Cardeais, Ratzinger, ocupando um dos órgãos mais notórios da Cúria, a Congregação para a Doutrina da Fé, dos anos 1980 ao momento de sua eleição, deu continuidade aos desígnios de João Paulo II, mantendo no Vaticano um estanque equilíbrio entre forças em choque constante, neutralizando todo pensamento progressista gestado no próprio seio eclesial.
O que ambas as facções cardinalícias esperavam – um pontificado tranquilo e auto reflexivo – não aconteceu. Durante o pontificado de Bento XVI, disputas intestinas entre membros-chave da Cúria Romana, corte máxima que administra a Igreja, dissenções envolvendo o Instituto para Obras Religiosas, paraíso fiscal de cardeais endinheirados e máfias italianas, sem contar as centenas de escândalos de pedofilia escancaradas nos principais jornais do globo, enfraqueceram os pilares de um pontificado já corroído por secularismos e desilusões.
A crise se acentuou com a revelação bombástica de documentos sigilosos furtados da mesa de trabalho do pontífice, a prisão repentina do principal suspeito, o mordomo Paolo Gabriele, e a publicação de um livro-reportagem baseado nos relatórios e cartas confidenciais. Em sua última missa pública, cansado e rouco, Ratzinger não poupou ironias veladas àqueles que o empurraram do desfiladeiro, pensando "em particular nos golpes contra a unidade da Igreja, as divisões no corpo eclesial".
A escolha de Francisco alterou a lógica político-demográfica do Papado. O primeiro pontífice latino-americano era uma incógnita de extrema controvérsia. Todavia, suas ações divergentes ao cargo de papa causaram espanto e incômodo. Espanto na comunidade de fiéis. Incômodo nas estruturas eclesiásticas.
Diferente de seu antecessor, Francisco é um crítico mordaz do status quo, do sistema financeiro e dos mercados ao belicoso imperialismo moderno. O que, gradualmente, vem causando a ira dos octogenários a decênios enraizados na Santa Sé. A convocação do "Encontro Mundial dos Movimentos Populares" mostra que o carismático argentino está disposto a revisar posições e caminhos tortuosos.
Para o sociólogo Ignácio Ramonet, "28 de outubro foi um dia histórico [...] porque não é frequente que o Papa convoque, no Vaticano, organizações de excluídos e marginalizados dos cinco continentes, e de todas as origens étnicas e religiosas: camponeses sem-terra, trabalhadores informais urbanos, recicladores, carrinheiros, povos originários em luta, mulheres reclamando por direitos, etc.".
Em seu discurso, Francisco foge de conciliações amenizadoras. Só pelo fato de agrupar "corpos-estranhos" em meio aos afrescos e colunatas de São Pedro, portas e maçanetas forjadas com ouro, fomenta uma mudança interna por poucos almejada.
"A solidariedade é uma forma de fazer história", disse. Para evitar maiores polêmicas, temendo retaliações internas, como dos próprios meios de comunicação, empunha as bandeiras do oprimido nos caminhos do Evangelho. "Quando peço terra, teto e trabalho para os necessitados alguns me acusam dizendo que o "papa é comunista!", ironizou.
Nos resta saber se o destino do papa vermelho, assim como de outros pontífices do passado, já está escrito – seja com um chá na cabeceira da cama, uma bala perdida ou em um misterioso acidente. No Vaticano, quando se trata de poder e mudança, os cães não cessam de rosnar.
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