domingo, 23 de junho de 2013

A Quem Pertence "A Voz do Povo"?

Como os meios de comunicação se apropriaram da onda de protestos no Brasil

por MURILO CLETO



Muitas memórias ficaram eternizadas dos tempos de graduação. Nos corredores do 2º piso do Bloco B da Universidade Tuiuti do Paraná, teoria, cornetagem e algumas tachinhas fincadas no teto compunham um ambiente nem tão exótico pra uma Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes. Mas por incrível que pareça, foi no aperto de uma das salas ao final deste corredor que uma das lembranças mais vívidas destes tempos marcou como poucas nestes 25 anos e alguma coisa de vida.

Era um dos primeiros encontros de orientação com o professor - hoje doutor - Clóvis Gruner. Fama de escroto, dava os trabalhos mais complexos e fazia as piadas mais ácidas sobre direita, esquerda, meio, tanto faz. Ainda meio nervoso, comecei a bisbilhotar suas anotações no canto das páginas escritas no que um ano e meio depois seria minha monografia de conclusão de curso.

Normalmente prolixo, o professor Clóvis começou um tanto quieto, até que cravou: "vamos fazer um acordo? Você não usa o termo 'massa' quando for falar em 'meios de comunicação em massa'". Esperei alguma fração de minuto pra ver se a fala continuava - afinal era um acordo, e isso não me parecia um -, o que não aconteceu. Depois do silêncio constrangedor, meu nada piedoso orientador continuou a comentar o restante do conteúdo escrito e assim voltei pra casa pensando no que diabos aquilo significava. 

Me lembro de ficar matutando sobre o que usar no lugar de "meios de comunicação em massa" pra não queimar meu quase inexistente filme diante do melhor orientador que eu poderia ter na academia: "grandes meios de comunicação", "grande mídia", e alguns outros quase sinônimos.

Quase mesmo, porque muito embora fosse difícil compreender naquele momento o que o veto de fato significava, foi só o tempo - e a pesquisa - que me mostrou que por "massa" o máximo que eu deveria entender era o que ensinava a tradição culinária italiana. Muito tempo passou depois deste encontro, e muitos outros vieram depois deste, mas a dificuldade em encontrar sinônimos pra definição que me atraía tinha muito mais a ver comigo mesmo do que com aquilo que eu estudava.

Na época, eu procurava entender um pouco melhor como os meios de comunicação em massa atuaram nas eleições presidenciais de 1989 no Brasil, pela primeira vez desde o golpe militar em 1964. Já era costume comum dizer que estas eleições foram manipuladas, ou melhor, que o povo brasileiro foi manipulado pela mídia em favor de Fernando Collor de Melo. 

O resultado da pesquisa, evidentemente, não foi bem esse. Mas a experiência da graduação me trouxe como lição ainda a questão da tal massa - manipulada ou não. 

"A voz do povo é a voz de Deus"

Não é a primeira vez que manifestações mais ou menos espontâneas têm sua voz roubada por interesses distintos. Os protestos que têm ocorrido por todo o Brasil e já se estendem há mais de duas semanas parecem mais um exemplo desta complicada relação entre voz e poder. Ainda que em tese o discurso preceda a ação, é muitas vezes a ação que o motiva e, ainda, que o conduz. 

Quando caiu a Bastilha em julho de 1789 e a França deu origem à revolução que teoricamente fundou a História Contemporânea, foram sans culottes e camponeses aqueles que deram a cara a tapa para as tropas de Luís XVI, mas foi a alta burguesia, representada pelos girondinos, que conduziu os poderes executivo e legislativo depois do enfraquecimento da monarquia absolutista.

Sem querer cair no tentador anacronismo, a experiência da Revolução Francesa revela o que todo mundo já está careca de saber: todo grito tem um dono. Mas o grande problema é que invariavelmente esse grito vem acompanhado de estratégias eficazes de marketing, como por exemplo a ideia de que "sim, isso é uma revolução popular", "aqui quem fala é o povo", "o meu partido é o Brasil", etc. 


Afinal, o que quer dizer "povo"? Algo como "massa", ou seja, quer dizer tudo ao mesmo em que diz nada. O que faz a concepção de "povo" é creditar às vozes uma legitimidade que transcende os limites locais, partidários, e por aí vai. Se "povo" significa "todo mundo", o silenciamento das vozes que destoam é legitimado pelo sentimento de "união".

Não causa muita surpresa o fato de que militantes dos partidos que justamente começaram as manifestações a partir da semana passada têm sido agredidos por militantes nacionalistas, que engoliram a causa com a bandeira do Brasil. Na Paulista, a bandeira do Movimento Negro foi queimada e na Augusta havia patrulha de neonazis espancando comunistas nos protestos. Em um bar da Turiassú, na Barra Funda, um sujeito me perguntou retórica e ironicamente, depois ver a cobertura ao vivo da TV: "agora os viados querem protestar pra dar também, é?" 

Hoje, aliás, só se fala em "babacas partidários" envolvidos nos protestos, como se a voz "do povo" fosse constituída por um uníssono, atrapalhado por sua vez por causas partidárias e reivindicações de minorias. 


Depois de um pequeno momento de desprezo pelas manifestações concentradas sobretudo em São Paulo pelo Movimento Passe Livre, os meios de comunicação (agora deu pra entender o motivo da proibição do "massa"?) passaram a insistir na legitimidade dos protestos, condicionada por sua vez a alguns itens: 1) eles precisam ser apartidários; 2) devem ser pacíficos; 3) têm que exigir o fim da corrupção.

Depois de condenar os protestos, os grandes meios de comunicação apanharam da opinião pública e apelaram para o discurso do óbvio. Teve jornalista dizendo que as manifestações "protestam contra tudo o que há de errado no país". Em pouco tempo, cenas do patético movimento Cansei, de 2007, vieram à tona como bala de borracha da Tropa de Choque - não mata, mas dói pra cacete. 


Como já disse o Papo de Homem, não há nada tão demagogo quanto movimentos "anti-corrupção". Eles funcionam a partir da mesma lógica dos movimentos "a favor da vida" e "em defesa da família". Isso porque, evidentemente, não existem movimentos a favor da corrupção ou contra a vida. O que este discurso clichê apresenta é um mecanismo interessante de colagem do movimento em questão contra alguma outra causa, nem sempre bem interpretada quando repelida. O que significa de fato o movimento "a favor da vida" é que o aborto deve continuar criminalizado e o que significa o movimento "em defesa da família" é que os homossexuais não podem ter seus direitos civis reconhecidos. Desta maneira, ganhar adeptos não é difícil quando a causa é nada além da intolerância coberta por uma camada de fofura.

Ainda hoje, recebi a notícia de que CRIANÇAS protestavam em frente ao Congresso. Oi? Quer dizer que crianças - isso, com 2 ou 8 anos - tomaram consciência dos problemas do país e foram ao Congresso exigir melhorias e - quem sabe - o veto à PEC 37? Aliás algumas delas foram entrevistadas.




Logo, a cobertura dos principais jornais insistia na mesma tecla, insuportavelmente pressionada a cada minuto de transmissões: "esses atos de vandalismo não representam a essência do movimento, que é pacífico e democrático", disse William Bonner, assim como quase todos os seus colegas em exercício. 

Por mais atraente que seja a ideia de "essência", o que ela nos apresenta é o que todo movimento minimamente articulado sente pavor: a sua domesticação. Talvez tenha convencido, mas parecia óbvio que os protestos não permaneceriam pacíficos, e nem sempre seriam democráticos.

A manobra desonesta dos meios de comunicação tem funcionado, e hoje as pessoas estão convencidas de que existe um inconsciente coletivo que por um lado legitima a onda de protestos e por outro contesta sua capacidade de dar voz à diferença.

O que resta de toda esta experiência é que se "O Gigante" acordou, ele é muito maior e mais diverso do que querem demonstrar os donos da sua voz nos meios tradicionais de comunicação e nas redes sociais. E que a ideia de "essência" é tão legítima quanto a de "povo" ou - ainda - "massa". 

Uma pena que o professor Clóvis não tenha orientado a todos eles.

Abraços, 
Murilo


domingo, 9 de junho de 2013

Paz ou Bem?

Causou espanto a denúncia encaminhada ao Ministério Público nesta última sexta-feira que requere liminar para a interrupção das contratações que compõem a tradicional Festa de São Pedro. Não tanto pela acusação em si, mas pela série de "evidências" arroladas ao documento.

Entre as reivindicações, a denúncia indica que houve favorecimento na contratação do sistema de som e iluminação para os 4 últimos fins de semana do mês de junho na mais tradicional festa da cidade. Uma das 3 empresas concorrentes sentiu-se lesada e decidiu reclamar.

1) O pedido que sugere modelo de equipamentos para locação é perfeitamente legítimo. Mesmo porque o que está em concorrência é a empresa fornecedora de locação e não a fabricante fornecedora de vendas. Conforme acordado e assinado pelo Secretário de Cultura do Estado de São Paulo e pela Prefeita Municipal de Itararé no Protocolo de Intenções do Circuito Cultural Paulista - que este ano vai abrilhantar a Festa de São Pedro - 8 itens excluem automaticamente os municípios do programa, conquistado este ano. São eles:

- Dois ou mais espetáculos cancelados durante o ano.
- Ausência do representante oficial no momento da montagem e durante o espetáculo.
- Descumprimento de acordo técnico estabelecido entre artista e cidade para realização dos espetáculos.
- Local de apresentação em condições impróprias.
- Não envio do relatório de avaliação do espetáculo até 7 (sete) dias após a realização.
- Não envio de fotos que contemplem público, espetáculo e material de divulgação.
- Não apresentação da fala institucional (gravada e fornecida pela SEC) antes de cada espetáculo.
- Descumprimento das necessidades básicas de camarim.



Lembro ainda que a comparação deste processo de cotação a processos licitatórios é completamente desonesta, pois não é segredo nenhum que a licitação é obrigatória somente em contratações superiores ao montante de R$ 8.000,00. E mais: equipamentos similares podem ser aceitos, desde que em concordância com o contratante, mas não houve contraproposta. Aliás, nem qualquer contato pessoal comigo, como afirma o reclamante, que aliás presta serviços regularmente para a Prefeitura Municipal.

Uma pergunta, no entanto, não quer calar: se o pedido com as especificações técnicas já é um elemento direcionador, por que a empresa reclamante participou da concorrência? Afinal, presumo eu, se o orçamento foi enviado é porque a empresa dispõe destes equipamentos.

2) A lista de equipamentos exigida é para todos os dias da festa. Se haverá som mecânico ou não aos domingos, cabe à Coordenadoria de Cultura decidir. Mas o fato é que os equipamentos precisam estar à disposição, mesmo porque algumas atrações ainda devem ser confirmadas.

O envio de orçamento não é um leilão às avessas. Quem tiver disposição de conceder descontos deve fazê-lo de imediato, e não posteriormente em redes sociais.

3) Se a minha banda particular ensaia no MB Estúdio ou não esse é um problema exclusivamente meu. Diante deste argumento pífio, eu posso comprar carne nos supermercados COFESA se a Prefeitura Municipal faz negócios com esta empresa, por exemplo?



Como parte do jogo, foi postado no Facebook um pedido "despretensioso" de locação de som nas especificações apresentadas aos contratados em potencial para o aluguel de som e iluminação para a Festa de São Pedro. Diversos usuários responderam, inclusive a empresa que se sentiu lesada na cotação que determinou o fornecedor dos serviços para os eventos na praça.


Para a minha surpresa, no pedido de som para uma "festa de criança", encaminhado por um usuário, a mesma empresa que apresentou orçamento para a prefeitura alega que não dispõe dos equipamentos solicitados. Isso depois do envio da proposta para a prefeitura e antes da "denúncia".

Tampouco procede a (des)informação de que o cachê da banda Acervo Rock é o mesmo dos serviços de som e iluminação, o equivalente a R$ 5.500,00. Não que a banda não tenha capacidade para um cachê deste porte, mas o valor denunciado é meramente especulativo.

O mesmo denunciante de hoje que subscreve a acusação e pede liminar para interrupção das contratações também buscou ação popular contra a atual administração no mês de abril, e qual o parecer da Promotoria Pública? Conforme Processo nº 305/13: 

"Mais uma vez entendemos que, em sede de cognição sumária, o pedido de liminar não merece prosperar, notadamente porque a inicial não veio instruída com qualquer documento ou elemento de prova que indicasse a verossimilhança das alegações, que se encontram apenas in status assertionis

Nesse passo, não há nos autos nem ao menos informação segura quanto ao tipo de cargo exercido e a natureza da nomeação ou contratação dos supostos beneficiários de atos lesivos ao erário, considerando ainda a narrativa genérica dos fatos"



Qual o verdadeiro problema nessa história toda? Parece inadmissível que uma administração petista, que chegou à chefia do executivo com o 2º lugar nas eleições, tenha retirado Itararé do limbo administrativo e cultural em que se encontrava. Enquanto alguém diz "Pilantra", eu digo Circuito Cultural Paulista, Projeto Guri, Mapa Cultural Paulista, Energia em Cena, Campeonato de Skate Rock, Cultura Solidária, Carnaval da Criança (que economizou 75% do orçamento em relação ao ano passado), Coral Santo Antônio, SAMI, Ponto Museu da Imagem e do Som, Workshop de Dança, Oficinas de Arte, Peças de Teatro, Circuito Sesc de Artes, vitalização do Sylvio Machado, transferência da Biblioteca Municipal, organização, digitalização e higienização do acervo histórico impresso e fotográfico, que até urina de ratos consumia. Também está disponível para todo mundo ver: http://on.fb.me/10EBwKq

E vem muito mais por aí. Os contatos com a Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo já estão adiantados, e em agosto teremos uma programação especial comemorativa do aniversário da cidade, incluindo uma parceria inédita com o Memorial da América Latina, uma oficina de fotografia, um belíssimo desfile cívico e uma série de atividades divulgadas em breve.

Ao contrário da alegação inicial, o Coordenador Municipal de Cultura de Itararé não "se diz" historiador. Isso quem diz é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4294334Z7

Hoje estou coordenador, mas a minha profissão é de professor de história, com endereço fixo e acesso a bens em nome próprio, e não o da sogra ou relativos. Tampouco passam pelo meu currículo prisões, falso exercício de profissão, envolvimento em fraudes ou crimes contra os estatutos do idoso e da criança, como exemplos aleatórios. Meu recado não precisa de perfis fakes interagindo em redes sociais para ganhar volume. 

Lamento sobretudo o fato de serem citados os nomes de Ricardo e Júnior, dois irretocáveis profissionais, que têm mais tempo de prefeitura que eu de vida.

Este não é um bate-boca. Pelo contrário, é a apresentação definitiva dos fatos pra você, cidadão, que tantas vezes vê o nome da atual gestão - que chegou ao Paço diante de uma determinação judicial - sendo maldito nas redes sociais por um mesmo grupo de "articuladores políticos".

Por fim e por último, nem paz nem bem. Agradeço a confiança daqueles que acreditam no nosso trabalho e têm feito dessa uma cidade melhor para se viver.

Já estava na hora de um basta nesta e em tantas outras histórias. Impossível esquecer do nunca anacrônico Martin Luther King Jr.: o que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons



Abraços, 
Murilo

domingo, 2 de junho de 2013

Bolsa Histeria

As farsas que mais têm a revelar sobre o que há de mais podre no chorume da internet


Não é de hoje que o chorume na internet me seduz. E nem a primeira vez que falo a respeito aqui. Mas o que os meses anteriores têm demonstrado a respeito do poder de voz das multidões nas redes sociais é que não basta ser intolerante, como também - e sobretudo - desonesto no trato com informações a respeito das políticas públicas de assistência, sejam elas quais forem.

Talvez nenhum evento tenha chamado tanto a atenção nesse sentido quanto a veiculação da falsa notícia de que o governo havia suspendido o "Bolsa-Família", na segunda quinzena do mês passado. Tumulto, desespero, revolta, e a multidão tomou agências da Caixa e lotéricas de todo o país. Enquanto o provável candidato do PSDB ao governo federal em 2014, Aécio Neves, "lamenta" que o Estado não tenha pedido desculpas pela confusão, seus correligionários inundaram a rede com a repercussão do caso, que evidentemente gerou todo tipo de frutos - aliás, um mais podre que o outro.

Na verdade a história começou mesmo pela internet. Na quarta-feira, dia 15, um perfil líder disseminou pelo Twitter a mensagem "Bolsa família começa sexta", e mais nada. Mesmo não dizendo efetivamente coisa alguma, ela foi compartilhada e ganhou corpo no microblog. Na sexta-feira, as mensagens se multiplicaram e somente a partir do sábado (18) a movimentação nas agências e lotéricas foi intensificada, curiosamente depois dos seus comentários. 

E o que mais chama a atenção foi a repercussão. Muito rapidamente a página "Anonymous Brasil" no Facebook postou um meme que atingiu mais de 70 mil compartilhamentos. A analogia? O clássico comparativo entre auxílio e vadiagem:


Pra quem não conhece, o Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do mundo, que privilegia 13 milhões de famílias com renda mensal per capita inferior a R$ 140 com a concessão de, no máximo, R$ 360/mês, de acordo com tabela de possíveis beneficiários. Adotado no México, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, África do Sul, Gana, Egito, Bangladesh, Turquia e Paquistão, o programa tirou da extrema pobreza mais de 22 milhões de brasileiros, a partir das seguintes exigências de contra-partida das famílias que o recebem: o comparecimento das consultas de pré-natal para as gestantes; a manutenção em dia do cartão de vacinação para os que têm filhos entre 0 e 6 anos; e frequência mínima escolar de 85% (10% a mais que a comumente exigida).

Aliás, na conta do Bolsa Família, estão inclusos também índices escolares superiores dos beneficiários do programa em relação aos demais, além de frequência mais regular, como noticiou O Globo. Ainda assim, que tal essa petição no Avaaz exigindo o fim do voto para quem recebe assistência? 

Independentemente dos efeitos sociais do programa, no entanto, a classe média grita diante do que ela tanto repudia: a desigualdade. Eu explico. Desde a Revolução Francesa, o que o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" tem feito é radicalizar a ideia smithiana de não-intervenção do Estado na economia e, consequentemente, na vida dos sujeitos. A partir da compreensão de que a propriedade privada dos meios de produção é um bem natural, portanto inegociável, essa mesma classe média da igualdade hoje é a principal porta-voz do desnível. 

Desde então, a ética do trabalho confere ao indivíduo - e ninguém mais - a responsabilidade sobre o seu sucesso na competição que se tornou o espaço público, ainda que a utilidade do solo seja compreendida como social

E é por isso que você tanto odeia pagar imposto. Porque odeia admitir que o seu trabalho seja de certa forma usado em benefício de outros, inclusive daqueles que pagaram o preço pelo seu sucesso: aquele seu funcionário que não recebe 13º nem do salário mínimo, seu vizinho que não tem onde dormir porque sua fazenda improdutiva ocupa mais hectares que encarnações nesse mundo e a prefeitura que você engana com um valor venal 100 vezes menor que o comercial do imóvel que negocia.

Ser ilegal pra essa turma opera em dois sentidos muito interessantes: se você é pobre, você é bandido; se você é classe média, você está reparando uma injustiça do governo. E da-lhe correria em abril atrás de atestado de dentista pra abater no Imposto de Renda.

Mas a compreensão do Bolsa Família não é a única forjada por uma classe média tão desonesta quanto "reparadora de injustiças". Talvez o exemplo mais clássico desse chorume que tanto me atrai seja a velha farsa da "Bolsa Bandido". Isso, "Bolsa Bandido" é como costumam chamar o auxílio-reclusão, que pouco tem a ver com o que sua biografia não-oficial tem declarado na rede. 

O auxílio-reclusão é atualmente regido pela Portaria nº 15 de 10/01/2013 e estabelece a concessão de R$ 971,78 para os dependentes - veja bem, dependentes - do sujeito que por algum motivo foi parar atrás das grades. Muito embora sua compreensão a respeito dos fatos seja de responsabilidade exclusivamente particular, o que os familiares do preso têm a ver com o ato praticado pelo sujeito? A princípio e em concluso nada, pois se o envolvimento na prática criminal for comprovado, o destino dos familiares vai ser o mesmo: a cadeia. De acordo com a Constituição, a pena não pode, em hipótese alguma, ultrapassar o condenado; ou seja, mesmo em pequena escala, a comunidade não pode perder com a reclusão de qualquer um.


Mas ainda tem mais. Pra receber o auxílio-reclusão, a família do dependente precisa que ele tenha cumprido as exigências mínimas estabelecidas na condição de segurado: ter contribuído com o INSS enquanto trabalhador regularmente registrado e não receber qualquer remuneração enquanto cumpre pena sob regime fechado ou semi-aberto.

Agora vamos às proporções. Independentemente da gritaria, parece mais ou menos óbvio que o número de trabalhadores contribuintes no sistema prisional seja ínfimo. Se não for, eu conto: dos 549.577 presos no país, 38.362 - mais de 14 vezes menos - deles têm as famílias (é bom frisar pro objetivo não se perder ao longo do texto) beneficiadas com o auxílio. E tem mais, não recebem as famílias cuja renda ultrapasse o teto de R$ 4.149,00. O valor repassado (R$ 971,78) é baseado no cálculo médio de 80% dos maiores salários de contribuição, e pode ser inferior caso o trabalhador tenha contribuído menos que o salário base do teto.

Tem causado igual histeria a chamada "Bolsa Crack". Muito embora a função do programa seja custear o tratamento de viciados em crack em clínicas especializadas, seu objetivo tem sido comumente associado à ideia de "estímulo" ao seu consumo. De doente a criminoso, o usuário de drogas pertence hoje ao grupo mais odiado de sujeitos - logo ao lado dos ateus - e representa o símbolo máximo da delinquência. Enquanto um parente próximo é condenado à escravidão do consumo de entorpecentes, "fulano é drogado" continua sendo uma das principais expressões de repúdio sobre os usuários.

Além de reinventar as bolsas que já existem, o chorume da internet é também criativo nas invenções. O que dizer da "Bolsa Puta", como carinhosamente batizaram o auxílio recentemente inventado por um tal de Joselito Müller e reproduzido aos gritos pela classe média nas redes sociais que, além de corrigir as injustiças do governo - aham - também carrega o estandarte do moralismo, digo, moralidade? R$ 2.000,00 seria o valor repassado pelo governo às profissionais do sexo de acordo com a notícia veiculada. Resultado: o blog aumentou as visitas em 1.700% e a gritaria foi intensa. 



Nada tem enfurecido tanto Congresso e classe média quanto os recentes desafios dessa moral mais hipócrita que sua reclamação a respeito dos programas sociais. Exemplo disso são as reações violentas aos projetos de lei do deputado Jean Wyllis (PSOL/RJ), que estabelecem direitos básicos negados pelo Estado aos cidadãos diante de impeditivos morais, como a questão da prostituição e da homossexualidade. Recentemente, o Projeto de Lei Gabriela Leite ganhou repercussão ao ser compreendido pela turma do chorume como "estímulo à prostituição".

Hoje o Brasil é um país que convive com a prostituição e permite sua existência, desde que condicionada ao universo do sub-trabalho. Prostituir-se pode. Só não pode se for numa casa própria pra isso - o que garantiria em muito a segurança das garotas - e se as "putas" forem compreendidas como trabalhadoras. Qual o critério que distingue essa prestação de serviços de outra? O chorume explica.

O que as experiências entre bolsas e redes sociais tem demonstrado é o que já se conhece desde quase sempre: quem tem boca fala o que quer. Acredita quem precisa.

Saludos, 
Murilo.