terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mia Couto e a beleza que há no mundo

Como o autor moçambicano faz um belo trabalho de reflexão em uma de suas mais encantadoras histórias

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


“Mas aqui, nos arredores deste forte, não há senão uma magrita frangipaneira. Enterraram-me junto a essa árvore. Sobre mim tombam as perfumosas flores do frangipani. Tanto e tantas que eu já cheiro a pétalas.”


Quando decidi ler um livro cuja autoria fosse moçambicana, logo pensei em Mia Couto. Com certeza há outros grandes autores no país e eu poderia ser menos clichê, mas, perdoem-me, não pude evitar. Sempre quis encarar Mia Couto, e eis que a oportunidade se abriu para mim.

De cara, já há uma grande vantagem nos livros do autor (além do simples fato de ele ser Mia Couto): em Moçambique, fala-se também português. Seus livros são escritos no português de lá, de modo que pode-se ler um livro dele com fluidez, sem necessidade de traduções, aproveitando e degustando a obra na sua língua natural. 

E, acreditem, encarar um livro de Mia Couto é uma experiência única. Por uma questão de tempo e disponibilidade, escolhi um pequeno livro chamado A varanda de frangipani, lançado em 2003.

O enredo, por sua criatividade e sensibilidade, chama a atenção logo de cara: Armelindo Mucanga é um xipoco, espírito que ainda não morreu inteiramente por não ter sido enterrado com as devidas condecorações. Mucanga morreu às vésperas da conquista da independência moçambicana, em 1975, e foi enterrado numa fortaleza que posteriormente transformou-se no asilo onde se passa a história.

Por mais que não tenha lutado por seu país, vinte anos após a sua morte, as autoridades resolvem fazer de Mucanga um herói nacional. O xipoco, debaixo da terra, indigna-se, protesta. Como assim, um herói nacional? Além de não ter contribuído com seu país para a independência, toda sua paz, abaixo da árvore de franginapi, acabaria.

Sem saber o que fazer, o espírito pede ajuda a seu amigo, o pangolim, espécie de tatu africano. O pangolim, com sua sabedoria milenar, informa o espírito que, para impedir sua condecoração e, ao mesmo tempo, conseguir morrer de vez, ele precisa cumprir uma tarefa simples: voltar para o mundo dos vivos, entrando no corpo de alguém que morrerá logo.

Começa, assim, a parte policial do livro. Mucanga decide que entrará no corpo de Izidine Naíta, detetive cujo óbito ocorrerá em seis dias e que está indo para o asilo investigar a misteriosa morte de Vasto Excelêncio, seu falecido diretor. 

Para descobrir o autor do crime cometido contra Excelêncio, Izidine deve interroga os moradores do asilo, deparando-se com todo tipo de depoimentos e, claro, contradições – já que todo mundo diz ser culpado do crime. 

Quem narra tudo isso é o próprio xipoco Mucanga, agora presente dentro do corpo do detetive (que, mesmo estando ocupado, não deixa de pensar ou agir por si mesmo). Contudo, outra característica notável é a maneira como Mia Couto coloca a história diante de diferentes pontos de vista narrativos porque, enquanto o detetive está interrogando, o narrador da história passa a ser quem está sendo interrogado. Portanto, a figura do narrador transita, sendo ora o espírito de Mucanga, ora algum idoso habitante do asilo, durante seu interrogatório. Assim, tudo fica ainda mais complexo e interessante.

Imediatamente, toda estrutura montada por Mia Couto já me surpreendeu e cativou por ser algo criativo, bem trabalhado e encantador. E é assim durante toda a leitura, onde um enredo envolvente faz de nós inquietos enquanto não a concluímos.

Para melhorar mais ainda sua pequena obra prima, Mia Couto ainda acrescenta mais um ingrediente na história: a questão da história recente de Moçambique, tão marcada por sua independência, pelo colonialismo e pela sobrevivência de seus costumes.

Num país com uma história recente conturbada, cuja independência foi conquistada somente em 1975, há também a importância de reconhecer o próprio passado. Ir para frente, mas não deixar de olhar para trás. A presença dos idosos deixa isso bem marcado. Mas, para além disto, há também a dificuldade não apenas do xipoco, mas do detetive Zaíta, o desafio de repensarem o passado de seu país. E, enquanto não o fizerem, seus próprios problemas e os problemas do asilo não poderão ser resolvidos.

Acredito que, além de belo e poético, o romance de Mia Couto também acaba sendo filosófico pela quantidade de temas e questões que aborda em apenas 140 páginas. Mia Couto, biólogo, participante ativo na luta a favor da independência, me parece deixar um recado sincero: em meio ao caos, é importante não se esquecer da mágica e beleza que o mundo possui.

EDIÇÕES NO BRASIL

Título: A varanda de frangipani
Autor: Mia Couto
Nacionalidade: Moçambicano
Editora: Companhia das Letras

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O Homem Espuma

por MURILO CLETO


O Homem da segunda metade do século 20, segundo Bauman, é líquido. Assim como são os seus amores, medos e essa modernidade que já não é mais a mesma dos oitocentos. Entre ele e o de hoje há muitas semelhanças: o gosto pelo mercado, pela exposição da intimidade, pela comida enlatada.

Dos vários tipos produzidos pela modernidade agora mais pra gasosa, um se notabiliza com destaque: o Homem Espuma. Fruto do processo de horizontalização da comunicação através das redes sociais, o Homem Espuma faz delas o seu palco principal para a produção dos mais diversos raciocínios, invariavelmente embasados por vários nadas e que, por sua vez, resultam em nadas ainda maiores.

Esses dias mesmo, o Homem Espuma foi notícia com uma declaração impactante: "isso é muito importante para o desenvolvimento desta questão que interessa a todos e que precisa ser muito bem trabalhada", disse. Apesar de ninguém ter perguntado, afinal, que questão era essa, o homem foi capa de revista, já que o que diz importa muito menos do que o próprio ato de dizer. 

Uma vez, só de sacanagem, um editor trocou suas palavras por "'blá blá blá, blá blá blá, blá blá blá', disse o Homem Espuma". E ninguém percebeu. Teve site que até reproduziu.

O Homem Espuma está livre de polêmicas. Seu partido não é de direita, nem de esquerda. "É pra frente", diz. A última vez em que foi perguntado sobre o casamento gay, disse que o futebol é um esporte fundamental. Quando queriam saber da sua posição a respeito do aborto, afirmou que quem não deve não teme.

Quando for enterrado, o Homem Espuma já tem gravados os dizeres na lápide: "aqui jaz um homem que soube enrolar muito bem".


Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Coma um livro!

por ISRAEL CASTILHO


Charge baseada na famosa frase escrita no violão de Woody Guthrie: "This Machine Kills Fascist"

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Pelo direito a indecidibilidade

por SANDRO CHAVES ROSSI



Quem acompanha o Desafinado há algum tempo, sabe que 80% do que discutimos aqui é sobre política - se não fosse pela Luisa seria uns 90%. Também da pra ter uma breve noção da orientação política de cada um que escreve aqui, mesmo com as nossas divergências em alguns assuntos - sim, críticos, há divergências e discussões entre nós. A questão é: cada um de nós leu o suficiente para formar uma opinião e acabar se "encaixando" em alguma ideologia. Esse é o ponto. 

Podemos estimar que há pelo menos duas grandes manifestações a cada semestre no Brasil, sempre seguindo a mesma linha: a oposição convoca uma manifestação e a situação convoca uma logo em seguida. Algo com um intervalo de 3 a 4 dias entre uma e outra. Quem acompanha essas manifestações, ou pelo menos olha de longe, sabe que existe vários tipos de "malucos" e que cada um defende algo diferente. O que os une em uma manifestação, geralmente, é algo maior e que todos eles têm em comum. 

Por exemplo, as manifestações da oposição são geralmente motivadas pelo combate à corrupção e pelo macarthismo - ideologia "anti-comunista". Já as manifestações da situação são motivadas pela defesa da democracia e dos direitos da população. Porém, no meio disso tudo há inúmeras correntes ideológicas. Mais alguns exemplos: quem vai na manifestação da oposição, não é necessariamente a favor da oposição partidária, há muita gente que pede a volta dos militares ao poder, uma discrepância enorme em relação à noção de democracia. O mesmo vale para as manifestações da situação: enquanto há uma boa parte de governistas, há uma parte que também é oposição, mas preza pela democracia e reivindica direitos que estão sendo tirados da população. 

As divergências ideológicas, mesmo quando possuem algo em comum, são inerentes à democracia. É aí que entra o questionamento: em meio a toda essa efervescência política, quantas pessoas realmente buscaram ler sobre aquilo que defendem? Buscaram conhecer o "outro lado" para ter discernimento do panorama político brasileiro? Sei que soa como prepotência dizer isso, mas, por exemplo, uma pessoa que sai às ruas exaltando um período lamentável e cruel, como foi a ditadura militar brasileira, sabe realmente o que está dizendo? Mesmo quando a história mostra realmente o contrário? Isso vale também para o outro lado da moeda: é bem comum ver segmentos da esquerda criticarem a truculência da polícia brasileira em alguns estados governados pela direita enquanto faz vista grossa para o mesmo feito em estados governados pela esquerda. 

Antes que alguém venha me questionar: não, não sou contra as manifestações. Vivemos em um sistema democrático onde todos são livres para se manifestarem. O que é preocupante são a propagações de ideias absurdas e que já foram superadas há muito tempo. Mas quem são essas pessoas que ainda insistem nessas ideias? Em sua grande maioria, pessoas comuns. Pessoas que trabalham, estudam, pagam suas contas, tem família, tem amigos, torcem para algum time, nada que os diferencie de mim ou de você. 

Então por que eles aderem a essas ideias? Por indignação, medo, raiva, frustração, qualquer coisa que um governo ruim traria para qualquer um de nós. Independente da ideologia, todos nós temos medo de perder o emprego, de não conseguir comprar um brinquedo que o filho quer, de não conseguir pagar as nossas contas, de não fazer aquela viagem que sempre sonhamos. Esses sentimentos nos perseguem diariamente, e, em uma crise, eles se intensificam. Mesmo com toda a indignação, não devemos cobrar de quem tem as emoções à flor da pele, por mais que nos irritem às vezes. 

Também não digo para as pessoas saírem por aí pegando um monte de livros ou lerem "A Riqueza das Nações" do Adam Smith ou "O Capital" do Karl Marx, até porque são leituras muito complexas e ninguém tem tempo pra perder com isso - também são obras muito extensas; quando eu falo em perder tempo, é muito tempo mesmo. O que pode ser feito é a ponderação, ouvir os dois lados, conhecê-los. Não há absolutamente mal nenhum em ficar indeciso, ninguém é obrigado a escolher um lado simplesmente por escolher. Quando fazemos isso, perdemos nossa capacidade de raciocinar, deixamos de ser donos de nós mesmos e aceitamos tudo que nos é dito. 

Aceitamos tudo que nos dizem porque temos medo de raciocinar e falhar. Não há mal nenhum em se ter dúvida, em não chegar à conclusão nenhuma sobre um determinado assunto. Temos que perder o medo de expressar dúvida nos casos "indecidíveis" em que a dúvida é a posição mais sensata que se pode ter. Se acertamos, não vai ser muito relevante que estávamos em dúvida, mas admitir que havia tem o efeito humilde de aceitar que o acerto não foi um completo mérito. Se errarmos, a admissão da dúvida aliviará ao menos em parte a nossa culpa, pois pode ser que, diante das informações disponíveis e da limitação de tempo, tenhamos feito o melhor que podíamos, e se erramos não foi por má fé e nem ignorância, mas por termos sido forçados a decidir no que era "indecidível". 

Pode ter certeza que muitos que escrevem, não só aqui no Desafinado, mas como também em revistas, jornais e até mesmo artigos acadêmicos, sofrem todos os dias com a dúvida do que estão fazendo ou pensando. Quem escreve esse texto é um estudante de engenharia que tem muito pouco conhecimento comparado aos companheiros que aqui também escrevem, mas que aprendeu que não é vergonha nenhuma mudar de ideia e que, muitas das vezes devido às nossas limitações, ter dúvida é o que nos torna mais sensatos diante de situações tão caóticas.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Não há mais tempo, prefeita

por LUIS FELIPE MACHADO DE GENARO



O que está acontecendo? 

Votamos em Cristina Ghizzi porque acreditávamos que a cultura itarareense – eclipsada em antigas gestões – seria novamente valorizada. De fato, seus artistas, escritores e músicos sabem que isso aconteceu. 

Votamos em Cristina Ghizzi porque gostaríamos de ver ruas e bairros periféricos finalmente asfaltados. Entre marchas e contramarchas, ajustes e poucos recursos, sabemos que isso também está acontecendo. 

Votamos em Cristina Ghizzi porque acreditávamos que a frota municipal de carros e caminhões seria resgatada e atualizada com novos modelos e marcas, melhores e mais confortáveis. Isso, é sabido, vem acontecendo. 

Votamos em Cristina Ghizzi para que a Educação em Itararé fosse uma prioridade; para que os índices voltassem a subir e uniformes, livros e apostilas fossem reais investimentos para as futuras gerações – para que de uma vez por todas nossas crianças e jovens ampliassem seu olhar sobre o mundo e a própria realidade. Um olhar mais crítico e humano. 

Votamos em Cristina Ghizzi porque sonhávamos que nossas belas grutas, cachoeiras, morros e espaços de turismo e sociabilidade fossem uma vez mais revitalizados, cheios de visitantes e explorados por gente de toda a região. Isso, meus caros, está acontecendo. 

Enfim, votamos em Cristina Ghizzi porque o mais básico não era proporcionado e estávamos cansados de um revezamento angustiante entre coronéis e despreocupados que jamais traçavam planos, metas ou tinham expectativas de trabalhar em prol da comunidade. Maquinações, complôs, falsificações e descaso transitavam entre gestões e secretários, capachos e cupinchas. 

Com Cristina, uma luz. Havia esperança. Ainda há? 

Hoje, prefeita e aliados precisam compreender a conjuntura em que estão inseridos. Em um país de sonhos perdidos e utopias inalcançáveis, sua vitória mediante a Justiça foi um marco histórico na política itarareense. Uma mudança de rota sem precedentes. 

Ou Cristina Ghizzi se aproxima dos esperançosos, engajados e verdadeiros interessados em uma mudança radical, ou sua gestão perderá o rumo. Declinará. Por isso, mesmo comprometendo sua já trôpega governabilidade, se afastar de antigas peças manchadas pelo ócio, despreocupação e segundas intenções, sem vontade ou sentimento de transformação, me parece urgente e necessário. 

Depois, mover o jogo para o Paço Municipal. Desmascarar internamente aqueles que querem sua derrocada – extirpando os que almejam o fim de seu governo, paradoxalmente, partes integrantes dele. Dentro do Paço, há desgaste e temor, como se a luz estivesse se apagando lentamente. 

As forças internas interessadas na mudança precisam se unir. Acabar com picuinhas, “brigas de ego” e intrigas sem sentido, como se estivessem trabalhando para si mesmos, quando são meros reflexos da vontade pública. 

Sabemos que Cristina Ghizzi conhece o tabuleiro que está à sua frente, mas parece estática perante peças perigosas. Ao seu lado, sujeitos “importantes” que a enfraquecem. Quando não a enfraquecem, estão blindados. Das pedras atiradas, todas acertam Cristina. 

Se a inflexibilidade que possui – como acusam e temem seus opositores – a compromete nas negociações e disputas, seria importante lembrar a quem servia um Executivo flexível e frouxo em um passado não muito distante. Se a inflexibilidade for necessária para atropelar os históricos inimigos do povo, arrebentar as amarras internas e progredir, que assim seja. 

Na Câmara Municipal de Itararé, os mesmos de sempre: a nobreza do discurso vazio, práticas falhas (por vezes propositais) e uma sede de poder sem fim. Poucos parecem se salvar. 

Se aliar com a oposição e seus velhos compadres do atraso, em qualquer circunstância ou contexto futuro, seria perder sua principal base de apoio – base antiga e sincera. Preferimos uma esmagadora derrota nas urnas que a esperança em cinzas. 

O que diferencia o ontem do hoje é o exílio dos desocupados e malandros para suas tocas imundas. Se antes, notórios “jornalistas” e “assessores”, hoje, patetas da internet. Suas armas? Vídeos e textões recheados de sensacionalismo, mentiras e crassos erros de português. Afinal, queremos o seu retorno aos espaços públicos e dirigentes? No tabuleiro, esses são meros peões. Nem começarei a falar dos bispos e torres. 

Ou a prefeita dá um xeque-mate o mais rápido possível, dando as costas para o caminho da conciliação e partindo para o ataque cada vez mais ríspido e honesto, ou o horizonte de todos os itarareenses estará comprometido. Eles retornarão. Senão eles, seus comparsas e parceiros. Afundaremos uma vez mais nas trevas do descaso e da corrupção e toda a transformação à duras penas realizada será soterrada. 

Não há mais tempo, Cristina. Simplesmente, não há.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Profissionais do circo aprovam moção de repúdio contra Osvaldo Rodrigues Jr

por MURILO CLETO



Itararé: Na última segunda-feira (10), o Sindicato Brasileiro dos Trabalhadores do Circo (SBRATRAC) aprovou por unanimidade uma moção de repúdio contra Osvaldo Rodrigues Junior, que é assessor técnico-pedagógico da Prefeitura Municipal de Itararé. 

Em nota, a entidade declarou ser inadmissível a comparação que o professor fez, em rede social, entre vereadores do município e o circo: "Vamos levar isso até as últimas consequências. Onde já se viu uma coisa dessas?", disse o presidente João Alves Souza Santos Santos, como se apresenta pelo Facebook.

Pelo Twitter, Osvaldo disse que os vereadores protagonizaram mais um espetáculo de circo ao chamarem de irresponsáveis os elaboradores do Plano Municipal de Educação e modificarem-no a partir de critérios pouco compreensíveis. Souza Souza emendou: "Em um ano, os legisladores não comparecem a quase nenhuma reunião na construção do plano e a galera do circo que paga o pato? Não entendo isso."

"E tem mais", continua, "não há registro de nenhum funcionário nosso em todo país que realmente diga no picadeiro que gênero tem a ver com trocar o sexo das crianças na escola, essas coisas, como eles disseram lá. Isso não faz o menor sentido e nem engraçado é. Uma vez um palhaço do Rio Grande do Norte tentou contar essa piada e o público foi embora assistir ao filme do Pelé", finalizou.

No documento apresentado pela SBRATRAC, estatísticas mostram que a presença nos espetáculos diminuiu bastante depois da infeliz comparação. "Agora ninguém quer vir porque acha que vai encontrar no circo aqueles caras que só fazem monólogo chato", lamentou Souza Souza. "Esse Osvaldo aí vai ter que pagar o prejuízo".

Procurado pela reportagem, Osvaldo Rodrigues Junior disse que está trabalhando numa retratação e pede perdão pelo vacilo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Quem lucra com a crise?

por SANDRO CHAVES ROSSI



A retração da economia brasileira no primeiro trimestre atingiu com força setores como a indústria e o comércio, o que causou um grave aumento da inflação e resultou em várias demissões em diversos setores. Porém, a crise pouco afetou os resultados do ramo financeiro: os principais bancos privados do país cresceram no período a taxas próximas de 30%. O aumento de tarifas, cortes administrativos e controle da inadimplência como explicações para o destaque positivo durante a crise não são suficientes. 

Vale lembrar que no começo do ano o governo federal destinou quase metade das verbas para o pagamento da dívida pública, que tem como grandes beneficiários os bancos - já sabemos que boa parte da dívida pública que o Brasil paga é irregular, como foi apontado na CPI da Dívida Pública, em 2009. Claro que os ajustes que os bancos fizeram foram essenciais para que eles tenham lucros expressivos durante a crise, porém é um grande equívoco achar que o pagamento da dívida feito pelo governo não seja fator principal para esse deslanche econômico. 

Quem lidera a lista dos bancos que mais lucram é o Itaú, maior banco privado brasileiro, que lucrou R$ 5,9 bilhões no segundo trimestre de 2015. O valor representa, em termos percentuais, uma alta de 22% em relação ao mesmo período do ano anterior, que ficou em R$ 4,8 bilhões. O Itaú já havia obtido, nos primeiro trimestre de 2015, um lucro que ultrapassou os R$ 5,7 bilhões. O Bradesco ocupa o segundo lugar nesse ranking, tendo uma alta de 18,4% em seus lucros comparados com mesmo período de 2014, registrando R$ 4,4 bilhões de lucro líquido. Com a compra do HSBC, o Bradesco tem uma projeção de ultrapassar o Itaú até o próximo ano. Logo atrás do Bradesco, o lucro anunciado pelo Santander saltou de R$ 527,5 milhões no mesmo período de 2014, para R$ 3,8 bilhões. 

Outro fator que deve se destacar é a o alto valor dos juros que os bancos brasileiros têm, considerados uns dos mais elevados do mundo. Fernando Rugitsky, professor de economia da USP, disse em entrevista a BBC Brasil que os juros são fatores decisivos para o lucro, ainda mais quando eles são aplicados em cima de títulos do tesouro - títulos do tesouro estão ligados diretamente com a dívida pública brasileira. 

"Se a Selic (taxa de juros básicas da economia) sobe, como tem acontecido, temos um aumento do piso de rendimento do mercado financeiro. Em última instância, se os bancos não conseguem emprestar seus recursos, podem aplicá-los em títulos do tesouro. Então quanto maior os juros pagos por esses títulos, mais os bancos ganham nesse tipo de operação." 

Não é exclusivo do sistema bancário brasileiro se beneficiar da crise para gerar lucros. Na verdade, essa prática é extremamente comum no mundo inteiro. O Instituto de Pesquisas Econômicas Leibniz, de Berlim, diz que a Alemanha arrecadou cerca de € 100 bilhões (US$ 109 bilhões) desde 2010 graças à crise econômica da Grécia. Basicamente o que aconteceu foi que o valor representa a poupança da Alemanha obtida através das baixas taxas de juros sobre os seus títulos. Essa política monetária só foi possível graças à fuga de investidores da Grécia, que escolheram migrar o capital para a economia alemã, mais sólida e segura, e comprar títulos do governo. 

Até aí não há muitos problemas, visto que tal processo faz parte da política monetária, porém, quem está um pouco mais a par da situação da economia grega sabe as imposições que a Troika, liderada pela Alemanha, faz sobre a Grécia. Medidas duríssimas de austeridade que forçam a Grécia a fazer ajustes que respaldam ferozmente na população grega, que sofrem com altas taxas de desemprego e uma inflação descontrolada. No nível que a Grécia se encontra hoje, não é nada conspiratório acusar que houve interesse próprio por parte do sistema financeiro em lucrar com a devastação da economia grega. 

Quando o Primeiro Ministro da Grécia, Alexis Tsipras, consultou o povo para decidir se iria pagar ou não a dívida à Troika, e quando o FMI admitiu que a dívida grega devia ser reestruturada para que houvesse o quitamento, o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, se opôs imediatamente com a justificativa de que o seu governo devia manter o orçamento equilibrado. O Leibniz, porém, defende que o equilíbrio orçamental alemão só foi possível graças às poupanças em taxas de juros por causa da crise de dívida grega. 

Tudo isso é algo que a história da economia mundial já nos mostrou diversas vezes: sempre quando um fica mais pobre, outro fica mais rico. Não há destruição da riqueza, e sim distribuição - nesse caso, mais pra um que para outro. A economia é muito mais que questões de déficits e superávits, é algo intrínseco à natureza humana, isso inclui as relações sociais, políticas e ambientais. O sistema financeiro lucra com a desigualdade. Se os bancos andam muito bem, algo está errado.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Desigualdade social e a arte de pôr a mão na consciência

Como Nadina Gordimer nos mostra a importância de refletir acerca das desigualdades através de seu livro O Pessoal de July

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

"Ele girava o botão sintonizador do rádio e experimentava a antena em todos os ângulos permitidos por seu eixo. Os dedos se moviam numa concentração hesitante, como alguém tateando, prestando atenção para ouvir a combinação que abriria o segredo. A antena tremia como a de um lagostim machucado que ele uma vez pegara em Gansbaai. Ela atraiu sua atenção com uma pilha que segurava verticalmente entre o polegar e o indicador. Ele recusou. Não existe a música das esferas, a ciência eliminou esse mito juntamente junto com todos os outros; há apenas os sons do caos, rugindo, dilacerando, crepitando, e é a partir disso que a ordem do mundo acabou surgindo. Não há paz no além – nem aqui tampouco. Quando a barulhada cessou por um momento, apenas um suspiro cósmico; ouviram o sussurro do tempo e do espaço, a onda pairando sobre tudo o que existe"

Quem se interessa pela história da África do Sul ou pela história dos incessantes erros que a humanidade insiste em cometer, vai acabar se deparando em algum momento com o apartheid. O apartheid, um dos mais longos e cruéis regimes racistas do mundo, é uma infeliz lembrança do alcance da crueldade humana.

O apartheid começou em 1948 e acabou em 1994, ano em que Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul. Dentre as medidas legais vigentes estava a segregação de negros e brancos, ao ponto de negros não poderem frequentar lugares destinados ao público e de relações sexuais inter-raciais serem estritamente proibidas. Consequentemente, o apartheid gerou não apenas uma desigualdade social enorme entre brancos e negros, mas também desencadeou respostas à altura. Foi na busca de mudança que surgiram figuras importantes como o já citado Nelson Mandela.

Porém, além do grande nome que é o de Mandela, houve outra figura que participou ativamente do combate contra a segregação racial e ajudou a mostrar a dura realidade da África do Sul: Nadine Gordimer. A autora foi uma das vozes mais importantes na luta contra o apartheid, de modo que grande parte dos seus livros trata não apenas dos tempos do violento regime, mas também das injustiças e mudanças ocorridas na África do Sul depois do fim do apartheid.

Ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1991, a autora também recebeu mais de doze doutorados honoris causa por universidades espalhadas pelo mundo – desde Yale até Leuven (prestigiada universidade belga). E foi de dentro dessa mente brilhante que surgiu a história do livro O Pessoal de July, oitavo romance da autora. Escrito em 1982, o romance chegou a ser censurado pelo governo da época. Contudo, Gordimer nunca abandonou seu país de origem e continuou sempre lutando, fazendo parte do Congresso Nacional Africano (núcleo que reivindicava uma sociedade unidade e não segregacionista) e militando pela causa da libertação de Nelson Mandela – de quem foi grande amiga. 

Numa África do Sul habituada com injustiças e desigualdades, Nadine faz uma suposição curiosa: e se um dia os negros fizessem uma verdadeira revolução e tomassem o poder, como seria a vida dos brancos? E é justamente nesse ponto que começa o enredo do livro. Os brancos vêm sendo caçados e assassinados por negros revolucionários. Entre os brancos que estão fugindo para o interior do país, nos deparamos com os Smales. 

Os Smales são uma típica família rica e branca da África do Sul, que utilizam-se de todas as regalias que brancos podem ter em tal sociedade. Com a revolução pensada por Nadine e com a matança que começa a acontecer, eles se veem desamparados. Contudo, o criado que trabalha na casa da família há quinze anos, July, salva os patrões e seus filhos. Com a pick-up antigamente usada por Bam Smales para fazer safaris, July os leva para sua aldeia de origem, local onde eles correriam menos riscos de serem encontrados e assassinados. Os Smales passam a viver numa aldeia com tradições tribais e, com o pouco que conseguem levar, surge a necessidade de adaptar seus costumes aos da nova moradia.

Isso já é perceptível logo nos primeiros capítulos do livro. Contudo, apesar de muito intrigante, é necessário ter muita atenção para ler a história – que já começa com Maureen Smales dentro de uma choupana, deparando-se com a nova realidade de sua vida. Além disso, a construção do romance mostra grande profundidade através de cenas independentes, flashses, memórias e interiorizações em relação aos pensamentos das personagens que devagar vão formando um todo, nos ajudando a entender a história tanto da família dos Smales quanto da família de July.

Com o decorrer da narrativa, vamos nos familiarizando com a rotina não apenas dos que chegaram, mas também daqueles que passaram a vida toda numa aldeia tão semelhante a outras na África – a pobreza é onipresente e uma perspectiva maior de vida não é possível. A família branca e rica, então, passa a viver com negros que sofrem diretamente com a desigualdade social do país. E, o que é mais interessante, como a realidade dos negros não muda porque eles não ascendem socialmente, podemos acompanhar, assim, a grande mudança de realidade da família dos Smales. A vida deles é que sofre a maior reviravolta, principalmente porque eles devem se adaptar e encarar de frente a realidade da maioria dos africanos. Bam, Maureen e seus filhos Victor, Bryce e Gina sentem uma dificuldade notável diante da nova posição e dificuldades na vida. Apesar da parte inventiva do livro (a revolução que deu certo), é importante notar a inteligência da autora ao estruturar o enredo: colocando brancos na realidade de negros a crítica ficou muito mais real e palpável do que se ela tivesse prosseguido na imaginação e tivesse colocado negros vivendo no lugar de brancos.

Com uma linguagem seca e sem muitos floreios, a autora consegue realizar algo que é muito importante: ela faz com que a família abastada e rica se coloque (neste caso, literalmente) no lugar de uma família africana marginalizada e que sofre diretamente com a desigualdade e injustiças, deparando-se com o medo de perseguição e com a pobreza que milhares de sul africanos tiveram que encarar. Este, a meu ver, é o ponto alto da ideia do enredo que Nadine teve porque, muito mais do que achar que a família merece ou não tal tipo de destino, Nadine apenas cria uma possibilidade capaz de desencadear muita reflexão. 

Colocar-se no lugar do outro, de uma maneira saudável e de acordo com as perspectivas corretas, é um passo essencial para entender as dificuldades e necessidades do próximo. Num sentido político amplo, isso é essencial. E talvez a grande parte da população brasileira que critica planos sociais como Mais Médicos e Bolsa Família através dos argumentos mais mesquinhos e ingênuos, deveria ler livros como esse para aprender a pensar com a cabeça de outra pessoa em outa realidade e, assim, entendê-la (ou, pensando mais modestamente, poderiam pelo menos melhorar um pouco seus argumentos). Muitos de nós nunca passamos pela experiência horrível de passar fome ou de não conseguir um simples atendimento médico, e provavelmente isso se deve a uma constante e generalizada atitude egoísta de tapar os olhos para uma realidade triste, mas indubitavelmente presente. 

Para (não) variar, gostaria de deixar mais um apelo para nossas editoras brasileiras (neste caso, a Rocco): faltam notas explicativas para termos e questões culturais e históricas, que deixariam a leitura muito mais completa e interessante. De qualquer maneira, o livro de Nadine não é simples ou fácil, mas é o tipo de narrativa que nos ensina a colocar a mão na consciência. Portanto, vale a pena encarar suas intensas 165 páginas. 

Ademais, acredito que vale a pena mergulhar e se aventurar na obra de uma autora como foi Nadine Gordimer, que infelizmente veio a óbito no ano passado, mas que será eterna fonte de inspiração e coragem, deixando isso claro através de suas declarações inspiradoras: “Algumas coisas foram conquistadas, e foram conquistadas por meio da coragem de muita gente. O papel dos escritores é pequeno, comparativamente, mas, depois que a batalha acaba, depois que os mortos estão caídos, são os escritores, se houver escritores, que realmente contam como as pessoas chegaram àquele conflito e, depois, como elas negociam algum tipo de conciliação entre os dois lados em que a humanidade supere as diferenças”.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Um caipira em Itararé

Como o sucesso de público na sessão de cinema deste sábado em Itararé revela algumas das maiores contradições em política cultural no país

por MURILO CLETO




Público muito superior ao habitual compareceu ao Teatro Municipal Sylvio Machado, em Itararé, neste sábado, que quase o lotou pra acompanhar o longa-metragem "Um caipira em Bariloche", dirigido e estrelado por Mazzaropi nos anos 70, grande mestre do cinema nacional. Em Itararé, o programa Pontos MIS exibe pelo menos duas obras por mês desde 2013. Nunca com tanta audiência.

O sucesso da sessão é também, no entanto, sintoma de uma porção de fracassos na condução da política cultural no país. No mês retrasado, por exemplo, o belíssimo filme "Hoje", de Tata Amaral, expôs a dura realidade de uma nação que ainda não foi capaz de reconciliar-se consigo mesma depois de 21 anos de mais um regime militar que ainda tem sequelas expostas no cotidiano. Havia pouco mais de 10 espectadores no teatro. E tudo isso com, rigorosamente, a mesma estratégia de divulgação pra este fim de semana. A pergunta que não quer calar, óbvio, é: por quê?

Em primeiro lugar, há de se ponderar que obras tão diferentes não devem ter exatamente a mesma forma de anunciar, considerando que distintos públicos-alvo precisam de diferentes abordagens. Isso é bem verdade. Mas é verdade também que só isso não explica o fenômeno das ausências, comuns e agoniantes, em espetáculos e oficinas por todo o Brasil.

Na minha experiência como gestor cultural do município há mais de 2 anos, pude participar de uma infinidade de seminários, workshops e eventos que procuravam discutir a formação de público de cultura, maior preocupação do setor, além da falta de investimentos. E, como ninguém tem um remédio imediato, o diagnóstico deste paradigma precisa ser debatido com urgência, a começar pelo óbvio.

O óbvio esconde uma questão fundamental que é muito mais negligenciada do que deveria se se busca por alguma sustentabilidade na área da cultura. Trata-se do fato de que as pessoas vão quando a programação interessa. Os mesmos que anteontem estiveram no teatro devem ter visto a divulgação de outros filmes e não saíram de casa pra vê-los. Alguns ainda nem conheciam o espaço. E o que está escondido nisto? Pra mim, a capacidade de filtragem que o repertório do sujeito estabelece a respeito das suas próximas escolhas. 

Acontece fenômeno semelhante com os espetáculos de dança, por exemplo. No ano passado, casa cheia pra receber a Companhia Brasileira de Danças Clássicas, enquanto grupos de dança contemporânea encaravam públicos significativamente menores. Ainda em 2014, era possível ouvir, do teatro, o barulho da Festa do Peão que bombava enquanto um monólogo era apresentado para poucas dezenas de pessoas.

A despeito das aparências, se houver, nada disso tem a ver com nível ou qualidade artística. Tem a ver com linguagem. A linguagem da dança contemporânea é específica demais pra quem se habituou ao modelo conduzido pela clássica. E o molde também serve pra outras expressões. O que está em jogo aqui é a recepção das pessoas a uma linguagem outra que não a de costume. Daí a necessidade de uma relação umbilical e verdadeiramente construída entre Educação e Cultura. Em 2014, o programa Mais Cultura nas Escolas, do governo federal, assumiu esse distanciamento e tentou, ainda que timidamente, encurtá-lo.

Some-se a esse panorama a decadência da relação do homem com o espaço público no Brasil desde pelo menos os anos 70. Sinônimo do ruim, do ineficiente, do moroso e do obsoleto, o espaço público não foi apenas confundido, mas brutalmente engolido pelo privado em todas as esferas. Seja no controle de áreas estratégicas do país, como se fez como nunca nos anos 90, seja no desenho das cidades, esculpidas pra abrigar confortavelmente carros e não pessoas, ou, ainda, no exercício do lazer, menos praça e mais shopping. 

Aliás, quantas são as praças que têm condições de receber espetáculos no seu interior? Quantas são as praças que têm condições de receber gente pra passar uma tarde prazerosa? Em Itararé não é diferente. Erguido há 28 anos, o Teatro Municipal até hoje não foi plenamente concluído. Antes disso, veio asfalto, Festa do Peão (uma delas chegou a custar oficialmente o preço de mais de duas reformas do teatro), portal - qualquer coisa menos ele.

Hoje, a média de investimentos em cultura é de 0,3% dos orçamentos nas diferentes esferas do poder executivo no Brasil. De acordo com a Unesco, 70% da população nunca assistiu, ao vivo, a um espetáculo de dança. Se quer mais público, a política cultural precisa entendê-lo mais. E esse exercício passa por uma necessidade imensa de autocrítica que a velocidade das gestões que vivem sempre e apenas em função da próxima eleição não permite. 

Ou a política cultural se reinventa, ou vai acabar de uma vez.

Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O FPM e a proliferação de municípios no Brasil

Aspectos jurídicos e socioeconômicos no processo de formação de municípios na federação brasileira

por PAULO ROBERTO COSTA STRUMINSKI JUNIOR* 




INTRODUÇÃO

O processo de formação de municípios é assunto típico do Direito Constitucional, pois afeta diretamente a organização do Estado e a divisão territorial do poder. Diante da importância do tema, será feita uma abordagem multidisciplinar. Primeiramente, será estudado o atípico modelo federativo brasileiro e a evolução dos municípios na federação.

Em seguida, serão analisados os requisitos jurídicos para a formação de municípios que constam na Constituição Brasileira de 1988. Também serão avaliados os requisitos socioeconômicos que devem orientar esse processo. A avaliação terá como foco os estudos de instituições públicas oficiais de pesquisa.

Dando continuidade, será verificado o posicionamento da Suprema Corte brasileira a respeito da omissão do Congresso Nacional em regulamentar o processo de formação de municípios e o recente projeto de Lei Complementar que visa solucionar a questão.

Após o estudo da legislação, será investigado como a criação exagerada de municípios inviáveis pode prejudicar as finanças públicas e como a transição demográfica pode influenciar nos repasses de recursos públicos. Por fim, serão sugeridos novos critérios para a formação de municípios.

1. O PECULIAR MODELO FEDERATIVO BRASILEIRO

A palavra federação, segundo o magistério de Michel Temer, origina-se de foedus, foederis, e tem por significado pacto, aliança, portanto, união entre Estados. Sendo o Estado Federal marcado pela autonomia política e se diferenciando do Estado Unitário que é caracterizado pela descentralização administrativa (TEMER, 2012, p. 59).

Em estudo sobre a evolução histórica da Organização do Estado brasileiro, Marcelo Novelino aponta que apenas a Constituição Imperial de 1824 adotou a forma unitária de Estado, por forte influência da Constituição Francesa de 1814. A partir da Constituição Republicana de 1891, por inspiração do direito norte-americano, o Brasil consagrou a forma federal de Estado (NOVELINO, 2014, p. 711).

Entretanto, em dois períodos históricos, no Estado Novo e no Regime Militar, o federalismo brasileiro foi tão somente formal, pois a centralização excessiva de poderes no Executivo federal e o desrespeito às autonomias estaduais, tornaram o Brasil, de fato, um Estado Unitário. 

Para que haja autonomia política, segundo José Afonso da Silva, devem estar presentes dois elementos básicos: (a) a existência de órgãos governamentais próprios e (b) a repartição de competências (SILVA, 2012, p. 102). Esses elementos estão presentes no texto constitucional de 1988 e são observados pelos poderes constituídos. 

Interessante observar que a Carta Magna de 1988 estende a autonomia política aos municípios, elevando-os a verdadeiros entes federados. No direito comparado, é comum o modelo dual de federação, com governo central e governos regionais. Entretanto, o constituinte de 1988 inovou e instituiu uma organização bastante peculiar. O artigo 1º estabeleceu a união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Mais adiante, no artigo 18, reafirmou a inclusão dos municípios na organização político-administrativa do Brasil, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, garantindo a todos autonomia (BRASIL, 1988).

Essa nova configuração federativa fez surgir, na visão de Paulo Bonavides, uma federação de dimensão trilateral, com o alargamento do raio de autonomia dos municípios (BONAVIDES, 2014, p. 352). 

1.1 A AUTONOMIA DAS MUNICIPALIDADES ENQUANTO ENTES FEDERATIVOS

A elevação dos municípios ao status de ente federativo recebe críticas de José Afonso da Silva. Para o ilustre constitucionalista não existe federação de municípios, somente de estados; tampouco há representação das municipalidades no Congresso Nacional; outro problema é o compartilhamento territorial dos municípios com os estados; além do fato de que a intervenção municipal só pode ser efetivada pelos estados. Por todas essas características, os municípios se aproximam mais de divisões político-administrativas dos estados do que de entes federados (SILVA, 2012, p. 477). 

Apesar das respeitáveis críticas, a maioria da doutrina entende que os municípios são entes federativos, pois possuem autonomia política consagrada pela Constituição. Nesse sentido, explica Marcelo Novelino que ao contrário de outras federações, no Brasil os municípios possuem âmbitos exclusivos de competências políticas, portanto há de se reconhecer seu status de ente federativo e consequente autonomia, a despeito das suas peculiaridades (NOVELINO, 2014, p. 756).

A preocupação com a autonomia municipal é tamanha que a própria Constituição Brasileira, em seu artigo 34, inciso VII, alínea “c”, prevê a intervenção nos Estados para assegurar a observância do princípio da autonomia municipal (BRASIL, 1988). 

A descentralização política dos municípios, além de ser uma questão constitucional, pode desempenhar um relevante papel no fortalecimento da democracia, sobretudo por possibilitar maior participação popular, como observa André Ramos Tavares (TAVARES, 2014, p. 852). 

2. O PROCESSO CONSTITUCIONAL DE FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS

O texto original da Constituição Brasileira de 1988 previa um processo simples para a formação de municípios, com a exigência de Lei Complementar Estadual. Essa facilidade propiciou “[...] a proliferação, sobretudo com fins eleitoreiros, de Municípios sem a estrutura necessária para o exercício de suas autonomias [...]” (NOVELINO, 2014, p. 724).

Para impedir a formação de municípios, que já se encontravam em quantidade alarmante, foi editada a Emenda Constitucional nº 15/96 (BRASIL, 1996), criando novo procedimento a ser observado na criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, notadamente a exigência prévia da edição de Lei Complementar Federal (TAVARES, 2014, p. 861).

2.1. REQUISITOS JURÍDICOS PARA A FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS

A nova redação do artigo 18, parágrafo 4º da Constituição Brasileira de 1988 prevê quatro requisitos para a formação de municípios:

§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei (BRASIL, 1988).

A Lei Complementar Federal irá determinar, abstrata e genericamente, o período para formação de municípios. Ressalte-se que até o momento, passados mais de 18 anos da nova redação do parágrafo 4º, tal legislação não existe. 

Para os Estudos de Viabilidade Municipal – EVM, apresentados e publicados na forma da lei, deverá ser editada uma lei ordinária federal que orientará como devem ser elaborados e divulgados.

Sobre a consulta prévia, mediante plebiscito às populações dos Municípios envolvidos, José Afonso da Silva explica que o termo “populações” refere-se tanto a população da área que se deseja criar, quanto da área que irá remanescer, diferentemente do que sempre se fez no Brasil, apenas consultando a população daquela área e não desta (SILVA, 2012, p. 478). 

A lei ordinária estadual de criação, incorporação, fusão ou desmembramento regulamentará as alterações decorrentes da alteração territorial.

2.2. REQUISITOS SOCIOECONÔMICOS PARA A FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS

Além dos requisitos jurídicos, a formação de municípios está vinculada logicamente à satisfação de requisitos socioeconômicos que devem ser analisados nos Estudos de Viabilidade Municipal – EVM.

A respeito de critérios socioeconômicos, a redação anterior do parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição Brasileira previa tão somente que a formação de municípios deveria preservar “[...] a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano [...]” (BRASIL, 1988). A nova redação não tratou desses aspectos, restando à Lei Complementar Federal detalhar quais requisitos socioeconômicos deveriam ser observados.

Recentemente, foi aprovado pelo Congresso Nacional e vetado pela presidente da República o projeto de Lei Complementar nº 104/14 (BRASIL, 2014). Da leitura do texto do projeto, é possível verificar que foram abordados os aspectos econômico-financeiro, político-administrativo, socioambiental e urbano. 

Esse projeto será analisado mais profundamente em capítulo próprio. No momento, cabe ressaltar que o EVM deveria abordar a viabilidade dos municípios considerando questões econômicas, já que muitos dos atuais municípios brasileiros não possuem capacidade financeira; geográficos, uma vez que busca a melhor ocupação territorial; demográficos, pois questões como migrações, crescimento ou diminuição das populações são fatores a se considerar; histórico-culturais, visto que a população interessada deve ter uma identidade comum; sociais, porque a organização do território deve ter como fundamento melhorar a administração e, consequentemente, a qualidade de vida dos munícipes; e políticos, dado que haverá divisão de poderes e de recursos públicos.

A importância de essas questões serem abordadas no EVM ficou evidente em texto publicado pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, no qual se demonstrou, através de dados estatísticos, demográficos e econômicos que a intensa criação de municípios resultou em: (a) aumento de transferências de recursos dos municípios grandes para pequenos desestimulando a atividade econômica no país; (b) benefício financeiro das transferências para pequena parcela da população, pois a maior parcela da população vive em municípios grandes; e (c) que os recursos de transferências são gastos com despesas administrativas e do legislativo, em detrimento aos gastos sociais e investimentos públicos.

Dessa forma, a criação de municípios deve observar também aspectos não jurídicos e, nesse ponto é notório o benefício da utilização de dados produzidos pelo IPEA e pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que serão mais detidamente analisados em capítulo específico. 

3. A OMISSÃO INCONSTITUCIONAL DO CONGRESSO NACIONAL

Nathalia Masson ensina que desde a edição da Emenda Constitucional nº 15/96 até a edição da Lei Complementar Federal exigida pelo artigo 18, parágrafo 4º da Lei Maior não poderá haver formação de municípios (MASSON, 2014, p. 411). 

Trata-se o aludido artigo 18, parágrafo 4º de norma constitucional de eficácia limitada a depender, portanto, de regulamentação para operar a completude de seus efeitos. Como é sabido, o Congresso Nacional não se incumbiu de editar a legislação requerida, permanecendo inerte e omisso por longo período.

3.1. A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS EM DESACORDO COM A NORMA CONSTITUCIONAL

A omissão legislativa, em verdade, impossibilitava os estados de criarem municípios, no entanto e a despeito disso, vários estados editaram leis criando municípios, em flagrante desacordo com o procedimento descrito na Constituição Brasileira. 

O problema desses municípios, conhecidos como putativos, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal – STF nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADI nº 2240, 3316, 3489 e 3689.

A Suprema Corte se deparou com um dilema, por um lado era indiscutível a inconstitucionalidade das leis estaduais que criaram municípios, por outro lado as municipalidades existiam de fato há anos, relações jurídicas surgiram com base nessa situação fática.

Depois de muito debate, decidiu-se em homenagem aos princípios da boa-fé e segurança jurídica, pela manutenção dos municípios e na ADI nº 3682 foi declarada a mora do Congresso Nacional, determinando-o a editar a Lei Complementar Federal exigida pelo artigo 18, parágrafo 4º, que deveria contemplar a realidade dos municípios putativos (BRASIL, 2007).

Mesmo após a determinação do STF, o Congresso Nacional, por razões políticas, optou em não editar a legislação necessária, e regularizou os municípios putativos através da Emenda Constitucional nº 57/08, acrescentando o artigo 96 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT e convalidando os municípios “[...] cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006 [...]” (BRASIL, 2008). 

3.2. O PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR DE FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS

Há poucos meses, o Congresso Nacional ultimou a votação do projeto de Lei Complementar – PLC nº 104/14 (BRASIL, 2014). Em consulta ao sítio eletrônico do Senado Federal é possível verificar que o aludido projeto foi iniciativa do senador Mozarildo Cavalcanti em 2002, tramitou 12 anos até ser aprovado e encaminhado para sanção ou veto presidencial. 

Ocorre que a presidente da República manifestou-se pelo veto integral do referido projeto, por contrariedade ao interesse público. As razões do veto são o impacto negativo do aumento de despesas com a manutenção dos novos municípios e a redução dos recursos destinados às atuais municipalidades em razão da pulverização das parcelas do Fundo de Participação dos Municípios – FPM (BRASIL, 2014). A apreciação do veto ainda está pendente.

Não há dúvida que a criação de entes federativos implica em redução das transferências dos entes já existentes. Por esse motivo o legislador deve encontrar um equilíbrio delicado para não engessar a estrutura federativa, e também não inviabilizar as finanças públicas com municípios que não possuam condições de subsistência. 

Da leitura do PLC nº 104/14, constata-se que houve uma enorme evolução no novo procedimento, quando comparado ao anterior. Destacam-se alguns pontos interessantes: a conceituação dos termos criação, incorporação, fusão, desmembramento, município envolvido e preexistente. A estipulação do prazo para a tramitação do procedimento, respeitando o calendário eleitoral.

O projeto também prevê requisitos para iniciativa do procedimento, quantitativos populacionais mínimos por região geográfica, quantitativos de imóveis e dimensões territoriais. 

Sobre os Estudos de Viabilidade Municipal – EVM determina que devam abordar: (a) viabilidade econômico-financeira; (b) viabilidade político-administrativa; e (c) viabilidade socioambiental e urbana. Também deverá estimar receitas, despesas, quantidade de vereadores e de servidores públicos. Definirá preliminarmente os limites municipais e potenciais impactos ambientais, entre outras questões. 

Ao EVM deverá ser dada publicidade, após prazo fixado na lei ocorrerá o plebiscito que consultará as populações tanto da área a ser desmembrada quanto da área remanescente. 

Pelo menos no que se refere ao quantitativo populacional, pode-se considerar o projeto bastante rigoroso, pois a maioria dos atuais municípios brasileiros não existiria se a eles fossem aplicadas as suas regras. 

Tome-se como exemplo a região sudeste, onde os novos municípios deverão possuir vinte mil habitantes ou mais. Pela estimativa populacional de 2014 do IBGE, dos 645 municípios paulistas, tão somente 250 possuem mais de vinte mil habitantes (BRASIL, 2014). 

Ao que parece, o EVM ganhou inegável valor. É com base nele que serão tomadas as decisões sobre a criação de municípios. Portanto, para que a União federal não venha a sofrer, sustentando municipalidades inviáveis, é necessário que a elaboração do EVM ocorra de forma técnica e isenta. 

4. A EVOLUÇÃO DO QUANTITATIVO DE MUNICÍPIOS NO BRASIL

A evolução quantitativa de municípios no Brasil tem ocorrido de forma não linear, há momentos de forte expansão, intercalados de períodos de baixa criação de municípios.

Dados divulgados pelo IBGE apontam a existência de ondas emancipacionistas entre as décadas de 1950, 1960 e 1970. Entre 1991 e 2000, já sob a égide da Constituição Brasileira de 1988, surgiram 1016 municípios. Na década seguinte, entre 2000 e 2010, com as novas exigências da Emenda Constitucional nº 15/96, foram criados apenas 58 municípios (BRASIL, 2011). 

A intensa fragmentação do território, em poucas décadas, é facilmente constatada ao se analisar os mapas de urbanização do IBGE, outra característica marcante dessa proliferação de municípios é sua concentração nos estados do sul e sudeste e litoral dos estados do nordeste (BRASIL, 2011). 

Com esse aumento desenfreado das emancipações municipais, em 2014 o Brasil atingiu a marca de 5570 municípios, dos quais quase 70% possuem menos de vinte mil habitantes (BRASIL, 2014). 

4.1. OS IMPACTOS FINANCEIROS DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS

O Fundo de Participação dos Municípios – FPM foi criado pela Emenda Constitucional nº 18/65 (BRASIL, 1965). Na época, 10% do total arrecadado pela União com o Imposto sobre Renda e Proventos de Qualquer Natureza – IR e o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, seria repassado aos municípios. 

Entre 1969 e 1975, o montante foi reduzido a 5% e, desde então, vem sendo continuamente aumentado até atingir 22,5% em 1993. Estudo do IPEA demonstrou que o FPM tem forte componente redistributivo, pois retira recursos de regiões de maior arrecadação do IPI e IR repassando-os para regiões de menor arrecadação (BRASIL, 2006). 

Porém, dada à forma como a legislação definiu a cota do FPM, sobretudo para os municípios de menor população, acaba ocorrendo um desequilíbrio nos valores repassados. Municípios menores e nem sempre mais pobres recebem mais dinheiro por habitante que municípios maiores. Nesse sentido, o IPEA sugeriu em nota técnica que: 

“[...] mantidos os critérios de repartição do FPM, há um incentivo à emancipação que distorce todo o sistema. Apenas com a correção do atual viés existente em favor dos micromunicípios, derivado da atual forma de divisão do FPM, é que se terá a real dimensão dos movimentos emancipatórios que se baseiam em motivações não-fiscais. Assim, propõe-se que tal distorção seja sanada, ou ao menos amenizada, antes de se discutir e aprovar uma nova regulamentação da criação de municípios, seguindo o Artigo 18, §4º, da Constituição Federal” (BRASIL, 2013). 

Na mesma nota técnica, o IPEA estimou que, com a entrada em vigor do PLC nº 104/14, a quantidade mínima inicial de emancipações seria de 363 municípios. Saliente-se que o número da estimativa considera apenas informações de 19 assembleias legislativas, já que em 7 os dados não estavam disponíveis. Isso tudo demonstra que não se sabe realmente qual será a dimensão do impacto dessas emancipações nas finanças públicas.

4.2. A INFLUÊNCIA DA DIMINUIÇÃO POPULACIONAL PARA A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS

Como explicado anteriormente, os coeficientes do FPM estipulados na Lei nº 5172/66, para os municípios de até 156.216 habitantes, consideram apenas as faixas populacionais para efeito de repartição de recursos.

Além dos recursos do FPM, muito programas, projetos e repasses voluntários dos governos estaduais e federal utilizam como critério a quantidade de habitantes dos municípios. O próprio projeto de Lei Complementar nº 104/14 baseia-se, para criação de municípios, entre outros fatores, no quantitativo populacional. 

A lógica incutida na legislação é de que a população irá aumentar continuamente. Esse raciocínio fazia muito sentido no passado quando as taxas de fecundidade eram altíssimas, mas a realidade brasileira aponta para um processo de transição demográfica. Os estudos do IBGE constatam que a população tem crescido menos, entre outros motivos pela queda da taxa de fecundidade: 

A redução na taxa de crescimento verificada nas últimas décadas é reflexo, em grande medida, da queda da fecundidade. As mulheres estão tendo, em média, cada vez menos filhos. De fato, a Taxa de Fecundidade Total (TFT), que era de 6,28 filhos por mulher em 1960 e 5,76 filhos em 1970, passou a 2,38 filhos em 2000 e 1,90 filhos em 2010. Estima-se que em 2014 a TFT esteja em 1,74 filhos e, em 2017, caia para 1,67 filhos, uma taxa comparável à de países como a Holanda em 2005 e o Canadá em 2009 (BRASIL, 2014).

Há projeções do IBGE que indicam que a população brasileira deve começar a diminuir a partir do ano de 2042 (BRASIL, 2013). Esse processo demográfico já está influenciando fortemente o crescimento populacional dos municípios menores.

De fato, nota técnica divulgada pelo IBGE demonstrou que os municípios que apresentaram a menor taxa geométrica de crescimento populacional entre 2013/2014 são os de até 10.000 habitantes (0,28%), seguidos dos municípios de 10.001 até 20.000 habitantes (0,51%). A média brasileira para o mesmo ano é de 0,86%. O IBGE explica que “[...] o baixo crescimento, ou até decréscimo em muitos casos, pode ser explicado pelo componente migratório, influenciado por seu baixo dinamismo econômico [...]” (BRASIL, 2014).

Interessante observar que essas faixas populacionais de menor crescimento são justamente o foco de emancipação do projeto de Lei Complementar nº 104/14. Ao mesmo tempo, são os municípios que recebem proporcionalmente mais recursos per capita do FPM do que quaisquer outros municípios.

4.3. ASPECTOS RELATIVOS À VIABILIDADE MUNICIPAL

Nos últimos anos, tem sido muito discutida a questão do financiamento do Estado brasileiro. Desde a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, o Brasil optou por universalizar o acesso a vários direitos sociais antes limitados a poucos.

Materializar esses direitos, como o acesso à saúde e à educação é um enorme desafio para os municípios, sobretudo para aqueles de menor arrecadação. Por isso, a fragmentação do território em municipalidades cada vez menores pode resultar em maiores dificuldades de garantir acesso a direitos.

Em audiência pública no Senado Federal, Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios – CNM apresentou dados da CNM demonstrando que em 3466 municípios os repasses do FPM importam mais de 50% da receita tributária. Esse número representa 63% dos municípios brasileiros (BRASIL, 2014).

Na mesma apresentação, em que debatia nova forma de partilha do FPM sugerida pelo IBGE, a CNM alertou que é necessário que a faixa inicial do FPM garanta recursos para os municípios menores: 

Outro ponto relevante a ser considerado é que existe um custo inicial FIXO inerente a qualquer estrutura de administração local, independente do quantitativo populacional, que precisa ser garantido. Este papel é desempenhando pelo FPM, cujo recurso representa quase a totalidade da receita de municípios pequenos (BRASIL, 2014).

Esse custo inicial fixo é, em verdade, despesa com o custeio de prefeituras, câmaras de vereadores, salários de prefeitos, secretários e vereadores. São gastos resultantes da administração e representação políticas que aumentam continuamente a cada município criado.

Essas despesas desviam recursos que poderiam estar sendo alocados para realização de investimentos em obras e serviços públicos, gastos sociais e contratação de servidores para efetivação de políticas públicas sob a responsabilidade dos municípios como saúde e educação.

Diante da realidade apresentada e das projeções, é razoável supor que os municípios menores devem enfrentar sérios problemas de financiamento público nas próximas décadas se continuarem a depender de repasses de recursos estaduais e federais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se confrontar o antigo processo de formação de municípios com o idealizado pelo PLC nº 104/14, fica evidente uma inegável evolução, pois os novos critérios são mais rígidos. 

No entanto, o quantitativo populacional mínimo exigido ainda é baixo, nesse sentido deveriam ser considerados quantitativos mais elevados. Um parâmetro coerente é a faixa populacional de municípios que, na média, tem uma dependência menor dos repasses do FPM.

Embora o Brasil possua um número elevado de municípios, não pode o Congresso Nacional tentar resolver a situação omitindo-se de regulamentar o artigo 18, parágrafo 4º da Constituição Brasileira, pois o STF já determinou que fosse dada solução e a inércia legislativa engessa a federação, em uma época de transformações sociais constantes.

Como o atual modelo de partilha do FPM induz a emancipação de municípios inviáveis, até que seja criada nova fórmula de rateio de recursos, o ideal seria facilitar apenas as fusões e desmembramentos de localidades que desejassem se unir a municípios limítrofes, de forma que casos pontuais e específicos pudessem ser atendidos, sem resultar em aumentos de despesas. 

Essa pesquisa tem a singela pretensão de indicar possíveis caminhos. Certamente, o legislador deverá procurar um meio de equilibrar os desejos legítimos de emancipação com a necessidade de se resguardar os recursos públicos, no interesse da melhor administração das localidades e do país como um todo. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29 ed. e atual. São Paulo. Malheiros, 2014.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Constituição de 1988 - Publicação Original. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 10 dez. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 31 ago. 2014. 

BRASIL. Emenda Constitucional nº 15, de 12 de setembro de 1996. Dá nova redação ao §4º do artigo 18 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc15.htm>. Acesso em: 31 ago. 2014. 

BRASIL. Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965. Reforma do Sistema Tributário. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc18-65.htm > Acesso em: 11 dez. 2014.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 57, de 18 de dezembro de 2008. Acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para convalidar os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc57.htm>. Acesso em: 31 ago. 2014.

BRASIL. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil em Números, Volume 22, Ano 2014. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2/bn_2014_v22.pdf>. Acesso em 31 ago. 2014.

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BRASIL. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativas da População dos Municípios Brasileiros com data de referência em 1º de julho de 2014. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000018744409182014445305573487.pdf> Acesso em: 11 dez. 2014.

BRASIL. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeção da População do Brasil por sexo e idade para o período 2000/2060. Projeção da População das Unidades da Federação por sexo e idade para o período 2000/2030. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Projecao_da_Populacao/Projecao_da_Populacao_2013/nota_metodologica_2013.pdf> Acesso em 12 dez. 2014

BRASIL. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Evolução do marco legal da criação de municípios no Brasil. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <ftp://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_territorial/divisao_territorial/evolucao_da_divisao_territorial_do_brasil_1872_2010/evolucao_do_marco_legal_da_criacao_de_municipios_no_brasil.pdf > Acesso em 11 dez. 2014.

BRASIL. Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Criação de Municípios Depois do PLS 98/2002: uma estimativa preliminar. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/131205_notatecnicadirur06.pdf> Acesso em: 11 dez. 2014.

BRASIL. Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Descentralização Política, Federalismo Fiscal e Criação de Municípios: O que É Mau para o Econômico nem sempre é Bom para o Social. Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0706.pdf>. Acesso em 10 dez. 2014.

BRASIL. Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm#art91§2.> Acesso em 12 dez. 2014.

BRASIL. Senado Federal. FPM de 2008 e População de 2007. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/comissoes/CDR/AP/AP20080417_IBGE_Apresenta%C3%A7%C3%A3oContagem_FPM.pdf> Acesso em: 11 dez. 2014.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 104, de 2014 – Complementar. Dispõe sobre o procedimento para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos termos do § 4º do art. 18 da Constituição Federal e dá outras providências. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/150555.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2014.

BRASIL. Senado Federal. Veto Total nº 47 de 2013. Projeto de Lei do Senado nº 98, de 2002 - Complementar (nº 416/2008-Complementar, na Câmara dos Deputados). MENSAGEM Nº 131, DE 2013-CN. (nº 505/2013, na origem). Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=141401&tp=1> Acesso em 10 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3682-MT. Ementário nº 2288-2. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=485460>. Acesso em 10 dez. 2014.

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 2 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2014. 

NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Método, 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36 ed. rev. e atual. São Paulo. Malheiros, 2013. 

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. 

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 24 ed. rev. atual. São Paulo. Malheiros, 2012.



* Paulo Roberto Costa Struminski Junior é licenciado em Letras e bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Itararé e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera. Atua como técnico em informação geográfica e estatística, coordenador de subárea e líder de área na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O anarquismo como opção para o restabelecimento da ordem: Kobane resiste!

por LUCAS SANTOS



Kobane é uma cidade localizada dentro do território denominado Rojava (Oeste) que está entre a fronteira Sírio-turca e é habitado pelo povo curdo. 

Durante a guerra civil síria, devido à ação da esquerda, representada por partidos como o PYD (Partido da União Democrática) e o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e pelo YPG (exercito guerrilheiro curdo), o território conseguiu sua independência que a partir de Kobane se espalhou pelas demais cidades de maioria populacional curda. 

Em setembro de 2014 o território passou a sofrer constantes ofensivas do Daesh (Estado Islâmico) que resultaram na tomada de mais de 300 vilarejos curdos dentro do território independente. 

O grande destaque das lutas do povo curdo é dado ao YPJ (Unidade de Proteção das Mulheres), formado por aproximadamente 7.000 guerrilheiras que atuam no front contra os avanços de Daesh e os ataques constantes da Gendarmaria (Forças Policiais Militares da Turquia). 

Em outubro de 2014 um coletivo designado como DⒶF (Ação Anarquista Revolucionária) se reuniu em solidariedade ao povo curdo e realizou um ato simbólico onde as cercas que separavam Kobane das demais cidades e vilarejos de Rojava foram derrubadas. Em entrevista concedida ao Meydan Newspaper, Abdülmelik Yalcinc descreveu o ato da seguinte forma: 

No momento em que atravessamos a fronteira fomos saudados com grande entusiasmo. Nos vilarejos de fronteira de Kobane, todos, jovens, idosos, estavam nas ruas. As guerrilhas YPG e sua seção feminina YPJ, saudaram nossa eliminação das fronteiras atirando para cima. Nos reunimos nas ruas de Kobane. Mais tarde, conversamos com os habitantes da cidade e com os integrantes das guerrilhas YPG/YPJ que defendem a revolução. É muito importante que as fronteiras entre povos que os Estados ergueram tivessem sido esmagadas daquele modo. Essa ação que aconteceu em condições de guerra nos mostra uma vez mais que levantes e revoluções não podem ser barrados pelas fronteiras entre os Estados. 

Desde o momento em que os membros da DⒶF se manifestaram como membros da insurreição curda, diversos foram os grupos de cunho libertário que aderiram à causa. Atualmente o coletivo com mais referências presente no conflito é o estadunidense Black Rose, porém o front conta com militantes do Sosyal Isyan (Insurreição Social) e do Birleşik Özgürlük Güçleri (Forças Unidas da Liberdade) de origem curdo-turca e com diversos anarquistas de nacionalidades distintas, vindos tanto do oriente próximo quanto do território europeu. 

O principal objetivo das forças libertárias que atuam em Kobane é o impedimento do avanço dos jihadistas do Daesh, porém, muitos deles têm atuado na constante reconstrução dos territórios reconquistados após as evasivas islâmicas. 



O porta voz do grupo Sosyal Isyan, em entrevista concedida ao portal jyian.org, diz que a atuação dos anarquistas, ambientalistas e vegetarianos, pertencentes ao seu coletivo, junto aos curdos, se dá pela solidariedade internacional e que a ideia é que sejam constituídas Brigadas Internacionais semelhantes as que atuaram na revolução espanhola para que sejam praticados os ideais de Malatesta e Bakunin. 

A luta armada não é um dos princípios régios da filosofia política anarquista, como acontece em algumas vertentes do socialismo, porém, devemos entender que o pensamento anarquista é livre de autoridade, logo, pode ser adaptado de diversas formas a qualquer circunstância real seguindo sempre seus quatro princípios fundamentais: a liberdade individual, a autogestão, o internacionalismo e a ação direta. 

A resistência aos avanços do Daesh e a solidariedade para a reestruturação do território de Rojava, sem o apoio das Democracias Liberais, visto que a Organização das Nações Unidas pouco tem se mobilizado contra a barbárie promovida pelo Estado Islâmico, nos demonstra a força do constantemente rejeitado pensamento libertário. 

Saudações Libertárias! 
Kobane Resiste!