terça-feira, 30 de junho de 2015

Rulfo e a fragmentação da realidade mexicana em Pedro Páramo

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


“... Havia uma lua grande no meio do mundo. Eu perdia meus olhos olhando você. Os raios da lua filtrando-se sobre a sua cara. Não me cansava de ver essa aparição que era você. Suave, esfregada de lua; sua boca inchada e suave, umedecida, colorida de estrelas; seu corpo transparentando-se na água da noite. Susana, Susana San Juan.”



Em 1955, o escritor mexicano Juan Rulfo publicava o que seria seu primeiro e único romance: Pedro Páramo. A história, basicamente, gira em torno da busca que Juan Preciado faz por seu pai, Pedro Páramo – um pedido de sua mãe momentos antes de morrer. 

Assim, Juan Preciado parte para Comala, cidade de seu pai. Diante de tal configuração, logo vem à mente a estrutura típica desse tipo de enredo: ao fazer uma busca pelo outro, a personagem acaba por realizar uma reflexão e crescimentos interiores, consequência direta das relações que sua busca traz. Contudo, de cara já há uma quebra de expectativa porque o que mais esperamos que aconteça simplesmente não acontece.

Assim que chega a Comala, Juan Preciado tem vários encontros cobertos de conversas aparentemente desconexas e desaparecimentos misteriosos. Com o decorrer da história, descobrimos que estamos num local onde vida e morte, passado e presente confundem-se: Comala, outrora cheia de vida, agora é uma cidade fantasma! O livro não é composto de capítulos, mas de cenas desconexas, momentos que vão e voltam, intercalam-se na narrativa. 

E é justamente através do ligamento do desconexo que conseguimos construir uma imagem total. Quase como montar um quebra- cabeça. Logo entendemos que Pedro Páramo é uma espécie de coronel e, mais do que isso, percebemos que sua história vai sendo contada na medida em que Preciado dissolve-se cada vez mais na narrativa, dando lugar não somente à história de seu pai, como também a outras personagens extremamente interessantes e essenciais para a compreensão do enredo.

E o mais impressionante é que, apesar da estrutura fragmentada que seria um marco para a quebra do realismo Europeu à la século XIX na literatura latino-americana, o autor consegue compor quadros desconexos, mas pintados com grande beleza e sensibilidade. A própria fragmentação é bem pensada num nível de extrema maestria – e, no fim, o que temos é uma galeria que se apresenta de forma magistral. Quando menos esperamos, estamos imersos num universo de morte e encanto, em sintonia com Preciado, que caminha reflexivo diante de tudo que descobre: “Percorreu as ruas solitárias de Comala, espantando com seus passos os cães que fuçavam o lixo. Chegou até o rio e ali se entreteve olhando nos remansos o reflexo das estrelas que estavam caindo do céu. Levou várias horas lutando com seus pensamentos, jogando-os na água negra do rio”. 

Não sabe-se exatamente o momento exato em que a história de Pedro Páramo se passou e o momento em que a história de Juan Preciado se passa. Contudo, há indicações de que Páramo viveu em época da Revolução Mexicana. Há trechos, inclusive, em que o nome de Pancho Villa, grande personagem da Revolução, aparece. 

Num México que vivia em meio a degradações, explorações e abusos com a ditadura de Porfírio Días, e que iria lidar por muito tempo com assuntos como a questão agrária e a enorme injustiça social, acredito que Rulfo uniu magistralmente a forma ao conteúdo. Num México desfragmentado em si mesmo, a própria realidade passa a ser desconexa. 

Comala com seu coronel, sua população pobre e extremamente religiosa e a passagem de revolucionários, dá um retrato geral do que é ser mexicano. Preciado é apenas mais um filho de coronel. Em certo sentido, sua busca é também a busca de sua nação: a tentativa de explicar seu passado para então, quem sabe, conseguir seguir em frente, em busca de dias melhores e mais justos. 

Não é à toa que este pequeno romance serviu como principal inspiração para a obra Cem Anos de Solidão, do aclamado autor Gabriel García Márquez. Jual Rulfo, de cara, mostra-se um autor muito talentoso, despertando em nós uma sensação de totalidade e fazendo-nos recordar a bela passagem de Walter Benjamin: “Em consequência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro”.


Ficha Técnica

Autor: Juan Rulfo
Nacionalidade: Mexicano
Livro: Pedro Páramo
Edições publicadas no Brasil: Paz e Terra (1998), Editora Record (2004) e BestBolso (2008)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

É sempre confortável recorrer à fome na África

 Por que desdenhar uma causa ao lado abraçando outra inalcançável parece ser o álibi perfeito pra disfarçar a própria intolerância

por MURILO CLETO



Na última sexta-feira, a Suprema Corte norte-americana acabou com a divisão que ainda imperava no país e legalizou nacionalmente o casamento entre pessoas nascidas do mesmo sexo. Até então, 13 estados ainda não admitiam a união igualitária. A decisão foi comemorada pelo presidente Barack Obama, que já apoiava a causa publicamente desde 2012. "#LoveWins", escreveu pelo Twitter.

Instantes depois, o Facebook disponibilizou um app que permitia a adaptação da foto de perfil às cores do arco-íris, marca registrada da luta LGBT. A onda tomou conta rapidamente da maior rede social do mundo e, como não podia deixar de ser, foi rejeitada por diversas frentes.

Uma delas insistia que internet não muda nada. Outra, capitaneada por páginas como "#Orgulho de ser hétero", apostava na proliferação da escrotice homofóbica. Mas outra, talvez uma das mais populares, escapou por uma tangente bastante confortável: a fome na África. A montagem exibia a foto de uma criança esquálida que engatinha de tão enfraquecida e é circundada pelos dizeres "O dia que uma nação se unir por esta causa me chama que eu quero participar". 

Recorrer à fome na África é sempre uma opção cômoda pra quem ainda não acertou as contas com ela por perto. Vista de longe, a fome é um alento porque a sensação de impotência também serve de desculpa pra que não se faça rigorosamente nada a seu respeito. É o que explica a persistente rejeição que programas assistenciais como o Bolsa Família ainda recebem, apesar dos resultados. Ou, ainda, o silêncio quase sepulcral diante da saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU no ano passado. 

Dentre os principais mitos alimentados por um imaginário construído às voltas da industrialização, estão a ideia de que o governo criou uma legião de vadios e que os mais pobres passaram a se reproduzir pra acumular o benefício. O Bolsa Família poderia parecer um bom exemplo de nação que se une pela causa do combate à fome. Com o auxílio do incentivo, a pobreza extrema foi reduzida pela metade no país.

Abraçar uma causa inalcançável parece ser o álibi perfeito pra disfarçar a própria intolerância, que explode por dentro de vontade de se expressar. Na próxima vão precisar de outro. Até lá, Obama continua certo: o amor venceu.

Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A simbologia do ódio racial

por JESSICA LEME



A história americana está recheada de crimes raciais e civis, mas, não sejamos hipócritas, não só a deles. No século XIX durante a Guerra Civil Americana e a divisão de ideais que rachou o país entre os que lutavam pelo fim da escravidão (Norte) e aqueles que sequer consideravam a ideia de que um negro era um cidadão americano (Sul).

Naquele momento da história, ainda muito inflamados pelas ideias iluministas trazidas pela Revolução Francesa, de igualdade entre os homens e principalmente de liberdade, somava-se o grande desenvolvimento industrial que estava tomando a Europa e notoriamente interessou aos Estados Unidos, que também precisavam aumentar seu mercado consumidor.

Lincoln pagou o preço pela abolição da escravatura, e, mesmo após ser assassinado, a Guerra Civil ainda permaneceu, assim como o racismo dos estados do Sul americano se intensificou. Vieram outros na luta pelos direitos civis a partir da década de 1950, Malcon X, Rosa Parks, Luther King, buscando direitos básicos aos afrodescendentes. 

Na semana passada, um jovem branco foi detido após ter cometido um crime terrorista numa Igreja matando nove pessoas, igreja essa que no passado foi palco de discussões sobre direitos as minorias e é considerada um símbolo nacional de luta das pessoas negras. Com ele encontraram-se diversas fotografias e objetos relacionados a grupos racistas, um destes objetos a bandeira dos Estados Confederados (Criada para a Guerra Civil Americana como representação dos estados do sul, contrários a abolição da escravatura) - esta mesma bandeira ainda hoje é usada pelo estado do Mississipi. 

Após o atentado terrorista motivado por ódio racial, segundo o próprio assassino que pretendia iniciar uma guerra entre brancos e negros, voltou à tona novamente uma discussão já feita no passado sobre o quanto a bandeira do estado simboliza ainda a ideia de supremacia branca e de incentivo ao racismo. Ainda no inicio dos anos dois mil o estado do Mississipi promoveu um plebiscito para decidir se a bandeira continuaria a mesma. Com a vitória, o símbolo da Guerra Civil permaneceu.

O poder dos símbolos é evidente ainda mais em nossa sociedade de imagem. Sabemos que em vários momentos históricos e principalmente em governos e grupos que pregam ideias de supremacia usaram de imagens e símbolos para causar o sentimento de integração dos grupos (nazismo, fascismo, URSS) etc.

O grupo racista Ku Klux Khan, criado ainda nos finais da Guerra Civil, trazia como símbolo a bandeira dos Estados Confederados, naturalmente que ela se tornou um elemento de identidade daqueles que acreditavam na ideia de superioridade branca, assim como pregavam o assassinato e perseguição de pessoas negras promovidos pelo grupo. O jovem preso pelo atentado à Igreja segue sob suspeita de pertencer a esse grupo ou similares que ainda resistem ao tempo, propagando seus ideias de forma discreta, porém, devastadora.

O fato é que mesmo com Obama sendo o primeiro presidente negro dos Estados Unidos pouco se tem feito para conter os avanços dos crimes contra os negros norte-americanos que vem sofrendo seguidos ataques racistas, ataques estes que tem ganhado bastante notoriedade na mídia novamente frente às passeatas e manifestações de setores da sociedade civil que não querem mais viver os horrores dos anos 1960.

Mesmo os EUA sendo considerados modelo de desenvolvimento humano a realidade das comunidades negras e latinas é bem diferente da população branca que é nove vezes mais rica que as demais. Os negros e latinos também fazem parte das estatísticas de crimes, de maior mortalidade, entre outros índices que só reafirmam que mais que respeito e liberdade os povos imigrantes e os negros ainda terão que lutar muito para conquistarem efetivamente a América.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Je$us

por ISRAEL CASTILHO



"Tem gente por aí entendendo errado a minha mensagem"
Jesus Cristo

terça-feira, 23 de junho de 2015

Entre a derrocada e a esperança: por uma violência contrassistêmica

por LUIS FELIPE MACHADO DE GENARO

Exploração, subordinação e violência estrutural a níveis jamais observados. Reprisadas catástrofes ambientais, repressão policial, superpopulação e o fim das democracias. 

Neste novo tempo do mundo, paradigma cunhado pelo filósofo brasileiro Paulo Eduardo Arantes, a emergência e a exceção, muitas vezes impercebíveis pela maioria, parecem desmembrar o sujeito globalizado, atordoa-lo e enlouquecê-lo. 

Perceptível, o real e o virtual mesclaram-se. Mesmo enraizadas no solo dos séculos, conceitos, ideologias e valores perderam seus mais intrínsecos significados, assim como as instituições tradicionais que as resguardavam. 



Com o vertiginoso crescimento das grandes metrópoles, a população triplica a cada instante, e entre mansões e casebres o foço cresce sem cessar. Neste mesmo horizonte, torres do progresso escurecem os ares urbanos e destroem, dia a dia, o verde que parece nos restar. 

Perante uma crise generalizada sem fim determinado caminhamos sobre uma corda bamba prestes a rebentar. Engolimos mentiras, assistimos a escândalos e aceitamos estatísticas inexistentes. 

Os novos senhores do mundo, outro arquétipo dos poderosos de nossa época, como bem forjou o jornalista australiano John Pilger, erguem-se, intocáveis e resolutos. 

Dia após dia nos deparamos com discursos vazios, programas falhos e privilégios gozados por uma minoria impetuosa e onipresente. 

Permanecemos submissos perante uma plutocracia global, onde os que lucram orientam o porvir do mundo. Suas vitrines anunciam novos preços e promoções imperdíveis, e a cada minuto novos produtos inundam os grandes templos do consumo, alastrando-se rapidamente por um mercado afluente, veloz e invisível. 

Em grande parte, uma tecnologia cada vez mais obsoleta guia o compasso das mentes. Somos levados a consumir o que não podemos, o que não queremos e o que não precisamos. Sustentamos nossa própria destruição. 

Enquanto no Ocidente mantêm-se Estados de vigilância travestidos de democracias liberais, prostradas ao grande capital e às instituições financeiras, indústrias orientais transformam-se em sanguinárias abadias da escravidão. 



Compramos e utilizamos produtos que vertem suor e lágrimas de escravos modernos. Entre hemisférios, e não apenas do lado de lá, vive-se um vice-versa mercadológico angustiante. 

A riqueza, o poder e o lucro sucumbiram à justiça, igualdade e à utopia. Não há projetos, planos e cartilhas. Partidos políticos e sindicatos vêm perdendo, pouco a pouco, sua força motriz: a representação das massas. 

Como refletiu o filósofo pós-moderno Zigmount Bauman, as relações tornaram-se líquidas e instáveis. Incerto, tudo se dissolve rapidamente. 

Em maior ou menor grau estamos cientes do novo tempo do mundo. O relógio atropela a realidade, assim como o calendário e o labor empurram as classes oprimidas à exaustão eterna. 

Nas fábricas e lavouras, permanências brutais. Nos escritórios e empresas, impérios do senso comum, instabilidade e uma doentia paixão dos dominados por aqueles que os dominam. 

Não determinamos – e nunca o fizemos! – quem e como se controlam as riquezas produzidas pelo homem comum. Confundem-se as esferas pública e privada e em tempos de recrudescimento de oligopólios e baronatos da imprensa, nada conhecemos com certeza. 



Somos levados a acreditar que a riqueza produzida é distribuída entre todos; que não há miséria; que jornais são imparciais; que a Educação e a Saúde são prioridades; e que guerras e mesmo a fome são males de um passado distante. Rapidamente, dependendo da conjuntura e do contexto, de forma lenta e gradual, altera-se a opinião pública. 

Ironias à parte, quando é a indústria bélica o norte das peças principais de um tabuleiro global movediço, regido por um deus-mercado perverso e assentado na sanguinolência, no conflito desigual de forças, na tortura e na hierarquização das relações sociais, espera-se a paz, terrena e celestial. Como o gado antecede o abate, espera-se um além-fim quando já vivemos um eterno apocalipse. 

Obedecemos a demandas e regras instituídas, ditas e não ditas, simplesmente porque precisamos. Ou não nos resta alternativa ou estamos convencidos que há de se obedecer. 

“Progresso” e “Desenvolvimento” já não passam de palavras vazias – meras ilusões de um projeto destrutivo. Um projeto doente. Se estiverem cheias, como almejam uns e outros, atropelam tudo e a todos como trens descarrilhados. 

Talvez, o angelus novus de Walter Benjamin finalmente esteja a bater suas asas e o clímax do que intitula a grande tempestade, esteja se aproximando. 

Neste novo tempo, a segregação e a exclusão de minorias permanecem condutas invioláveis. Assim como os donos do poder, os donos da verdade e da razão almejam espraiar seus ideais para todos os espaços e comunidades possíveis. 

A importância não reside no conhecimento do “outro”, mas no soterrar do pensamento alheio. A verdade, então única e universal, arrasta àqueles que não compactuam com ela para a amarga zona do estigma e da aniquilação, tornando-se sujeitos e grupos sociais indignos de viver em coletivo. 

De tempos em tempos, muralhas são construídas, guetos formados e novos campos de concentração, sem a contestação histórica merecida, são erigidos com lamentável rapidez. 



O que, enfim, nos resta? 

Se a liberdade foi convertida em dólar, focos de resistência parecem brotar nos lugares mais improváveis deste novo século. 

Se findaram as ideologias e representações – certezas ainda não decretadas –, o novo tempo em que temos vivido parece anunciar um período urdido no que chamamos “revolução global”. Para que tenhamos sucesso o único caminho restante é uma pesada violência contra-estrutural, contrassistêmica. Só assim o peso da História, de seus escombros e estilhaços, será finalmente sentido por aqueles que o merecem. 

Mediante esforços regionais e nacionais, virtuais e concretos, começa-se a usar as ferramentas da globalização contra ela mesma, fiando-se a cada minuto, como bem notou o sociólogo espanhol Manuel Castells, redes de indignação e esperança. 

Mas há esperança? 

A tomada de consciência deverá ser global. Se não nos sublevarmos violentamente caminharemos rumo às distopias de Orwell e Huxley. Os traços mais obscuros dos cenários redigidos por ambos os profetas do último século parecem emergir com assustadora virulência: aceitação, manipulação, ignorância, caos e decadência. Um tempo sem direitos, mas deveres e imposições. 

A violência legalizada, instituída e impulsionada cotidianamente pelas tradicionais estruturas de poder (pelos “de cima“), principal sintoma deste novo tempo, deverá ser questionada enfaticamente e de uma vez por todas. Uma mudança nos principais pilares que sustentam o sistema econômico e politico deverá ser imposta à força. 

Se avenidas e praças não forem ocupadas e o sangue dos plutocratas derramado, em um futuro não muito distante nossa existência física, jurídica e mesmo moral serão meras estatísticas. Meros pontos no meio do nada. Alvos fáceis à beira da extinção.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Analfabetismo Funcional e Disciplina Industrial

Como a separação entre vida e trabalho denuncia a crise no ensino superior brasileiro

por MURILO CLETO



2015 tem sido um péssimo ano de abertura para o quadriênio da "Pátria Educadora". Se é verdade, por um lado, que os investimentos em Educação nunca foram tão altos quanto nos últimos doze anos, por outro a crise pós-eleições escancarou uma série de fragilidades em que se constituíram as diversas injeções de recursos, não apenas federais e não apenas no setor. Com o corte de R$ 9 bilhões somente do Planalto, repasses têm sido atrasados e a situação do Fies, no ensino superior, tornou-se nada menos que caótica. Pra piorar, as principais greves estaduais foram vencidas pelos governos com muita truculência.

No início do ano, a Unesco já anunciou que o Brasil não vai atingir todas as metas para educação estipuladas em 2000 para 2015. Pelo acordo, os países deveriam 1) expandir os cuidados na primeira infância e educação; 2) universalizar o ensino primário; 3) promover as competências de aprendizagem e de vida para jovens e adultos; 4) reduzir o analfabetismo em 50%; 5) alcançar a paridade e igualdade de gênero; e 6) melhorar a qualidade da educação.

Ao mesmo tempo em que o acesso ao ensino fundamental no Brasil atingiu 94% da população entre 7 e 14 anos, os vergonhosos índices de analfabetismo caíram muito discretamente. Em 2002, eles estavam em 10,9%. Doze anos depois, eles ainda eram 8,3%, pouco menos de 13 milhões de brasileiros. Some-se a isso o fato de que apenas 44,5% das crianças do 3º ano em 2012 mostravam alfabetização adequada, apesar dos índices de repetência terem diminuído de 24%, em 1999, para 9%, em 2011. 

Uma das principais bandeiras políticas do Partido dos Trabalhadores, o acesso ao ensino superior, que saltou 81% em dez anos, esconde uma realidade alarmante: 38% dos universitários são analfabetos funcionais. É o que dizem o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa em pesquisa divulgada em 2014. No Distrito Federal, o índice subiria pra mais da metade, segundo a PUC de Brasília.

Contribui pra essa paralisia a espessura do debate político sobre educação no país, que ainda insiste em desconsiderar as especificidades dos sistemas de financiamento e a distribuição de responsabilidades entre entes federativos, além da atuação do poder legislativo. Não faz muito tempo, um deputado tucano do Rio Grande do Norte apresentou projeto de lei pela criminalização da "doutrinação ideológica" nas escolas e é mais ou menos isso que defende o movimento Escola Sem Partido, que vem ganhando espaço consideravelmente no país. Mas, apesar de necessária, essa é uma outra conversa.

Enquanto isso, a educação básica sofre com um cenário que é massivamente ignorado. Os municípios, hoje os principais responsáveis pela formação dos estudantes no país, estão quase todos enforcados com os índices de gastos com o pessoal conforme previsto pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Governos federal e estadual orgulham-se, com méritos, dos seus programas. Mas quem os executam são os municípios, do Bolsa Família ao PAC, majoritariamente. E pra isso é preciso ter funcionários.

Criada na esteira do imaginário neoliberal de contenção do Estado na economia, a LRF estabelece um limite de 51,3% do orçamento global dos municípios para folha de pagamento e encargos trabalhistas. Mas o recurso do Fundeb, que constitui a esmagadora maioria do orçamento da secretaria, pode ser usado, via de regra, em apenas 60% pra garantir salários e encargos dos profissionais da educação. Na prática, isso significa muito dinheiro amarrado enquanto 1/3 dos professores no país é temporário e as prefeituras arcam com fortunas em multas graças às suas contratações provisórias, vedadas por lei e incansavelmente apontadas como irregulares pelo Tribunal de Contas. No entanto, como realizar concurso se o limite de gastos com pessoal já passou do pescoço faz tempo? Fora de autarquias, nada menos que impossível.

Dessas questões, revoltados on ou offline não querem saber. Mas é possível que causas e sintomas deste quadro estejam muito além de questões técnicas.

VIDA E TRABALHO NA MODERNIDADE

Em Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial, Edward Palmer Thompson discutiu com primazia os efeitos do processo de transição de um tempo "natural" para um tempo "artificial" no limiar duma modernidade que se anunciava através das máquinas. Na Inglaterra do século 18, o relógio já não era mais exatamente uma novidade, mas passou a pautar, a partir de então, a relação da classe trabalhadora com o tempo, algo, isso sim, inédito.

Até então, a medição do tempo esteve relacionada de alguma forma com os processos familiares no ciclo do trabalho ou mesmo das tarefas domésticas. Este tempo inexato era orientado através de afazeres cotidianos comuns a todos. Em Madagascar, por exemplo, o tempo podia ser medido pelo "cozimento do arroz" (mais ou menos meia hora) ou pelo "fritar de um gafanhoto" (um instante). Já no Chile do século 17, um terremoto durou "dois credos". O cozimento de um ovo durava aproximadamente uma Ave-Maria rezada em voz alta. Até pouco tempo atrás, na Birmânia, os monges se levantavam quando havia luz o bastante para ver as veias da mão. Na Inglaterra, já houve o pissing while - o tempo de uma mijada.

Tônica do contemporâneo, a pressa já foi vista como "falta de compostura combinada com ambição diabólica" entre os camponeses cabilas na Argélia, contou Pierre Bourdieu. Até a Revolução Industrial, o tempo parecia mais um instrumento que permitia e orientava a realização do trabalho do que qualquer outra coisa. Com a virada a partir do século 18, a relação umbilical entre vida e trabalho foi brutalmente rompida pra dar lugar a um processo de alienação que se materializa no assalariamento.

Invenção da Roma Antiga, que remunerava os seus soldados com sal, o salário anuncia o que é o trabalho na modernidade: um objeto passível de compra. Na leitura de Marx, o que caracteriza o proletário é não ter a propriedade privada dos meios de produção e vender a sua força de trabalho pra dela sobreviver. E descende daí o grande paradigma do trabalho no Ocidente contemporâneo.

"Bom dia, velho Wright, que Deus o ajude a terminar o seu trabalho", saudou certa vez um camponês o criado que consertava uma carroça na estrada. Com uma grosseria divertida, o velho lhe respondeu: "Pouco me importa se ele ajudar ou não, trabalho por dia". O relato está em The great law of subordination considered: or the insolence and insufferable behaviour of servants in England duly enquired into, escrito em 1724 por Daniel Defoe. A indolência, fruto quase inequívoco deste processo, precisou ser combatida com um empreendimento jurídico-moral de fôlego. E não dá pra dizer que não funcionou: criminalizada à direita e à esquerda, a vadiagem tornou-se objeto de tremenda repulsa fundamentada pela positividade do trabalho concebida por Smith e Locke. Neste sentido, o papel da escola foi vital: baseada na indústria - inclusive no formato -, sua função cívica e moral foi determinante para a expansão da educação, um privilégio de poucos, também às classes mais baixas.

Descende daí a invenção do lazer, resultado deste apartamento entre o que é a vida, de um lado, e o que é o trabalho, de outro.

A AVALANCHE DE PRIVACIDADE COMO SINTOMA

Apesar de todas as transformações econômicas a partir do fim da 2ª Guerra Mundial e da ascensão do neoliberalismo nos anos 70, é mais ou menos consenso que a escola no Brasil parou no século 19. Há quem queira, inclusive, enquadrá-la nos novos princípios do mercado, orientado pela meritocracia. Mas o fato é que a escola como espaço de produtividade e a escolaridade formal como mecanismo de ascensão social provocaram a multiplicação de uma legião de analfabetos funcionais no país.

Com a redução da carga horária mínima no ensino superior, especialmente nas licenciaturas, o processo de agravou. A ideia de obter melhores salários através da graduação provocou não necessariamente a aumenta na procura destes cursos, mas a venda do sonho da ascensão. Matriculam-se em História o policial militar que pretende subir de patente, a comerciária que quer prestar concurso público. Em ambos os casos, que diferença faz o engajamento na pesquisa? Não são poucos os que "caem" na sala de aula por falta de outra opção melhor. Neste mesmo sentido, são poucos os planos de carreira que oferecem condições de permanência, de dedicação exclusiva e de pesquisa.

Pelo Facebook, principal termômetro da vida pública contemporânea, estudantes e profissionais da educação, assim como os demais, estão promovendo uma verdadeira avalanche de privacidade. Entre selfies e correntes religiosas, a vida engole o trabalho. Não é de Michel Foucault que eles estão falando. Este é um lamento? Jamais, mas um sintoma que merece mais atenção do que a comumente destinada. Algo está sendo dito quando o início de uma leitura técnica significa a interrupção da vida cotidiana. E as hipóteses não são das melhores.

Ou a educação se reinventa ou o seu potencial transformador se reduz de vez às cinzas do carvão que move a locomotiva.

Abraços,
Murilo

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Boato sobre gênero no PME mobiliza ignorantes em Itararé

Por Facebook e Whatsapp, texto indica que alunos poderão escolher o banheiro para frequentar nas escolas e conclama indignados a protestarem contra aprovação do Projeto de Lei previsto pelo Plano Nacional da Educação

por MURILO CLETO



Nos últimos dias, tem ganhado força nas redes sociais uma série de boatos sobre gênero no Plano Municipal de Educação em Itararé. Condição posta pelo Plano Nacional de Educação, aprovado no ano passado em Brasília, o PME tem como principal objetivo orientar as políticas públicas dos municípios para enfim alcançar as 20 metas e 200 estratégias postas ao ensino em todo país até 2024.

Em Itararé, o Plano Municipal de Educação foi objeto de discussões desde setembro de 2014 e envolveu a participação de representantes de pelo menos 32 instituições de educação formal e não formal, do poder público executivo e legislativo e da sociedade civil. O texto final já se encontra no Departamento Jurídico da prefeitura e segue para votação, com data indefinida, na Câmara dos Vereadores. Por Whatsapp e Facebook, um comunicado tem tirado o sono dos mais conservadores. Segue o texto, fidedigno ao original e na íntegra:

Leiam com atenção.

Amanhã (15/06/2015), será votado na Câmara Municipal o Plano Municipal da Educação. Nesse plano está incluso a palavra Gênero, com a inclusão desse termo o município deverá implantar a "Igualdade de gênero" nas escolas municipais.
Mas afinal oque é isso?
Essa ideologia tem como base que somos todos iguais, anulando o sexo de cada um, ou seja, ninguém nasce homem ou mulher. Eles acreditam na formação psicológica do gênero, assim cada um escolhe oque quer ser.
Se isso for aprovado no nosso município, as escolas vão ter que ensinar crianças a partir dos 3 anos que eles são apenas crianças, que eles não tem sexo, não são meninos nem meninas, são apenas crianças e vão escolher sua sexualidade.
Quem não concordar com isso está convidado a comparecer na sessão de câmara, para mostrar aos vereadores nossa reprova.

Que fique claro que não é uma reprova a quem é homossexual mas sim uma reprova a maneira que querem impor isso aos nossos filhos. Apenas queremos a preservação do direito de educá los e orienta los quanto a sexualidade.
#não ao preconceito
#sim a inocência da criança
#sim ao RESPEITO
POR FAVOR REPASSE POR FAVOR.Se aprovada,os meninos poden usar banheiro d meninas nas escolas ou qualquer outro banheiro publico por exemplo.

Diante da panaceia, a Secretaria Municipal de Educação emitiu uma nota esclarecendo os rumores. O comunicado informa que o conteúdo da mensagem foi motivado pelo plano de Itaberá, município vizinho, e que, como não há menção à questão de gênero no plano nacional, não seria sequer possível inclui-la no municipal. A nota destaca ainda que "orientação sexual" já é um dos temas transversais para debates na escola, como previsto desde a segunda metade dos anos 90, cujo objetivo principal é combater a discriminação de gênero.

Além disso, vale destacar que a reação nervosa ao que se imagina compor o documento do plano municipal dialoga com o contexto nacional de predomínio do analfabetismo funcional e da desonestidade intelectual, grandes marcas do Brasil contemporâneo. 

E o manifesto/convocação diz muito sobre quem o redigiu e o compartilha. Em primeiro lugar, que a sua capacidade na elaboração ortográfica é tão grande quanto a compreensão do que significam os conceitos de "ideologia", "gênero" e "igualdade". Isso porque o pressuposto de que a "igualdade de gênero" consiste numa "ideologia" já começa agredindo a própria noção marxista de "ideologia", que diz que ela não é o que se conclui por convicção, mas que se reproduz como força simbólica na forma de valores arraigados. Desta forma, no sentido estrito do termo, "ideologia" é muito mais a ideia naturalizada de que a condição biológica da criança determina sua identidade de gênero do que qualquer problematização sobre isso.

Em segundo lugar, o boato é fruto de uma intolerância especulativa sintomática. Não há uma linha sequer a respeito disso no documento que segue para votação na Câmara. Quem escreveu não o leu, e quem compartilha muito menos. Aliás, é importante salientar que não há representação alguma no país que defenda "igualdade de gênero" nestes termos anunciados pela convocação. A noção de igualdade deveria partir de outra, muito mais abrangente, que é a de equidade, e que por sua vez estimula o reconhecimento de uma multiplicidade de gêneros que não se resume à limitação que se que impõe ao indivíduo quando se considera a identidade como o resultado inequívoco de uma imposição pela sua genitália. E é bem por isso que a ausência do conceito de "gênero" no plano nacional, duramente criticada por movimentos LGBTT, é tão lamentável. Numa palavra: não tem, mas deveria.

Fosse a identidade de gênero objeto de preocupações mais maduras, o assassinato de Rafael Melo poderia ter sido evitado. No último sábado, dia 13, ele foi encontrado morto na Grande Vitória. Tinha 14 anos e sonhava em ser estilista. Na escola, era objeto de chacota e perseguições dos colegas. Junto a ele, encontram-se hoje outros 28 homossexuais assassinados por dia no Brasil, segundo o Grupo Gay da Bahia, principal instituição que discute as implicações da homofobia no país. Na Inglaterra, quase metade dos transgêneros se suicida antes de completar 25 anos.

Apesar disso tudo, alguns grupos já articulam mobilização para a próxima sessão da Câmara, na próxima segunda-feira, dia 22.

Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Outros outubros virão

A Frente Popular Nacional como resposta viável aos avanços da agenda conservadora no Brasil

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR

Alguns dos idealizadores da formação da Frente Nacional Popular.


No último artigo publicado aqui falei sobre os 12 anos de gestão petista e o esgotamento do modelo desenvolvimentista implantado pelo ex-presidente Lula. Conclui com as palavras de Eliane Brum, entendendo que além do esgotamento do modelo econômico, o PT “perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda”. Tal constatação abre um novo debate: é possível formar uma frente de esquerda no país?

Capitaneada por intelectuais de esquerda, líderes de movimentos sociais e até empresários, a Frente de Esquerda começou a ser gestada logo após a reeleição de Dilma Rousseff. A disputa acirrada das eleições e o debate clivado pelas posições mais a esquerda e a direita entre Dilma e Aécio fizeram reascender a esperança de que a presidenta faria um governo no mínimo de centro-esquerda. Pautas progressistas foram colocadas em debate e defendidas pela presidenta Dilma. Porém, o que se viu após a sua posse foi no mínimo frustrante. A indicação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e a política de austeridade implantada por ele soterraram qualquer esperança de um governo progressista.

O movimento a direita de Dilma gerou críticas internas do próprio Partido dos Trabalhadores – PT. Dentre as principais figuras do PT, o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro tem assumido papel de protagonista na composição da possível frente em gestação. Tarso afirmou que “o PT precisa de um choque de sociedade cívil” e que “o sistema de coalizão não serve mais pra nada”. Diante disso, reuniões e mesas de debate como a ocorrida no Clube de Engenharia, no Rio de Janeiro em abril reascenderam o debate sobre a composição de uma frente de esquerda no Brasil, que seria nomeada de Frente Popular Nacional.

Abaixo elenco os motivos que me levam a defender a formação da Frente Popular Nacional:


1. AVANÇO DA AGENDA CONSERVADORA:


As eleições de outubro de 2014 representaram um golpe duro para a esquerda brasileira, que assistiu a vitórias dos partidos conservadores em várias frentes. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar – DIAP, foi eleito o Congresso mais conservador desde 1964. Cresceram as bancadas “da bala”, “religiosa” e “ruralista”. Neste ínterim, a eleição de Eduardo Cunha do PMDB para a presidência da Câmara dos Deputados possibilitou o fortalecimento da agenda conservadora. 


Eduardo Cunha e correligionários comemoram a sua vitória para a Presidência da Câmara dos Deputados. 

A terceirização foi aprovada em abril e atualmente a “Reforma Política” conservadora vem sendo aprovada em doses homeopáticas. Outras pautas conservadoras como a redução da maioridade penal serão levadas ao plenário em breve. Isso nos permite afirmar que existe uma composição de forças conservadoras que ameaça a democracia e os direitos conquistados no Brasil. Dessa forma, a frente pode representar uma coalização de forças progressistas para fazer frente a ascensão da direita conservadora.

2. CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE PAÍS

Há tempos percebe-se que o governo petista foi incapaz de construir um projeto de país que fosse além do desenvolvimentismo baseado no consumo e da tentativa de equalização das desigualdades por meio dos programas de transferência de renda. Tal constatação permite afirmar que é necessária e urgente a construção de um projeto de esquerda para o país, que permita a manutenção e ampliação dos direitos sociais obtidos. Porém, é fundamental que essa construção não seja exclusividade dos políticos e intelectuais de esquerda, mas sim dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Um projeto de país que leve em consideração pautas como: o renda mínima, a taxação das grandes fortunas, os direitos a moradia e a terra, os direitos das minorias LGBTT, indígena e negra, a descriminalização do aborto, um novo modelo de segurança pública que leve a extinção da Polícia Militar, dentre outras. Todas pautas progressistas de diferentes partidos de esquerda que acabam isoladas no debate político partidário. A frente poderia ter um papel fundamental na articulação das pautas em defesa de um modelo socialista de país.

3. OS EXEMPLOS DE SUCESSO

Dentre os exemplos de sucesso das coalizações de esquerda, a Frente Ampla uruguaia parece o mais emblemático deles. Composta em 1971 por vários partidos políticos de esquerda e centro-esquerda, a FA foi posta na clandestinidade durante a Ditadura Militar. Em 1989, o partido elegeu Tabaré Vázquez para a prefeitura de Montevidéu. Em 2004, o mesmo Tabaré foi eleito presidente da República. Sucedido por Mujica, Tabaré Vázquez reassumiu a presidência em 2015 para concluir o ciclo de 15 anos de governo da FA no Uruguai. 

Pepe Mujica e Tabaré Vázquez na cerimonia de posse. 

Pepe Mujica, talvez o maior ícone da esquerda latinoamericana na atualidade, promoveu a aprovação de leis progressistas como a descriminalização do aborto, o casamento igualitário e a legalização da maconha. Os resultados dos governos socialistas da Frente Ampla são perceptíveis nos números. O Uruguai cresceu em média 6,4% por ano, um dos maiores crescimentos da América Latina. Além disso, o país tem o menor índice de percepção de corrupção da América Latina, segundo a ONG Transparência Internacional e o relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e é o mais seguro para viver com a taxa de analfabetismo próxima de zero. Tais mudanças foram possíveis a partir da aproximação de partidos distintos, porém com pautas que os uniam. O movimento de transmutação da esquerda tradicional para o progressismo pode servir de inspiração para a constituição da frente de esquerda brasileira. 

O projeto envolve muitos interesses conflituosos e o mais problemático, uma luta de egos que parece não ter fim quando se trata da esquerda brasileira. Apesar disso, o movimento de aproximação entre Tarso Genro – PT e Marcelo Freixo – PSOL parece um ponto de partida interessante pensando que o Rio de Janeiro é e sempre foi um grande palanque para as ideias progressistas. Genro pode representar o movimento de volta as origens do desgastado PT, enquanto Freixo representa um dos principais nomes da esquerda brasileira e do PSOL. Uma campanha popular de esquerda a prefeitura do Rio de Janeiro em 2016 pode servir de laboratório para a composição da Frente Popular Nacional com vistas a 2018. 

Nesta direção, discordo de Safatle quando afirma que o que falta para a esquerda não é direção, mas coragem. Falta sim direção para uma esquerda multifacetada que ao tornar beligerantes as diferenças não permite a construção de um projeto de esquerda para o país. Dessa forma, enquanto continuarmos a nos tratarmos como “inimigos” íntimos assistiremos ao fortalecimento da coalizão conservadora e ao ataque a democracia e aos direitos conquistados.

Abraços,
Osvaldo. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Mas afinal, o que significa ser de esquerda ou direita?

por SANDRO CHAVES ROSSI

É muito comum ouvir os termos "direita" e "esquerda" nos dias de hoje, ainda mais depois das eleições de 2014, quando os ânimos foram bastante exaltados e que acabou dando um certo respaldo no processo de politização de muitos brasileiros. Quem tem o costume de usar a internet para acessar as redes sociais e acompanhar os sites de notícias, certamente já viu alguma discussão ou acusação envolvendo esses termos - inclusive nos comentários aqui do blog.

Muitos que leram ou ouviram esses termos não devem saber do que realmente se trata, pois quase sempre não há uma clareza no que a esquerda e a direita política defendem nessa "Guerra Fria" da internet, que quase sempre é protagonizada pelos mais diversos extremistas ideológicos que carregam muita desonestidade intelectual em seus discursos. Então do que se trata essa dicotomia política? 

Os termos "direita" e "esquerda" surgiram na França, durante as assembleias francesas do século 18. Era a primeira fase da Revolução Francesa (1789 - 1799), a burguesia tentava a todo custo diminuir o poder do clero e da nobreza, e pra isso buscava o apoio da população mais pobre. Quando a Assembleia Nacional Constituinte foi montada para criar a nova Constituição, a burguesia não gostou da participação das camadas mais populares e preferiu sentar separadamente deles, ficando no lado direito da Assembleia, enquanto os mais pobres ficaram do lado esquerdo, dando assim origem aos termos. Por isso, o lado esquerdo foi associado à luta pelos direitos dos trabalhadores, e o direito ao conservadorismo e à elite. 

Dentro desses parâmetros, ser de esquerda foi associado a lutar pelos direitos dos trabalhadores e da população mais pobre, a promoção do bem estar coletivo e da participação popular dos movimentos sociais e minorias. Já a direita representaria uma visão mais conservadora, ligada a um comportamento tradicional, que busca manter o poder da elite e promover o bem estar individual. Obviamente com o tempo tais ideias acabaram sofrendo reformulações e resultando em diversas correntes diferentes, porém a essência ainda é a mesma.

As definições de esquerda e direita eram bem definidas até a queda do Muro de Berlim (1989), que encerrou a polarização EUA x URSS, desde então as ideologias foram mais abrangentes e ambos os lados dessa dicotomia política configuraram boa parte do sistema político de vários países, talvez por isso seja tão difícil ver clareza nessas ideologias hoje em dia, porém elas ainda existem e são bastante pertinentes.

Uma das melhores definições sobre direita e esquerda é a do filósofo político Norberto Bobbio. Basicamente, Bobbio diz que a esquerda busca promover justiça social, enquanto a direita visa a liberdade individual.



"Esquerda e direita indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em toda a sociedade e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se naturalmente replicar que os contrastes existem, mas não são mais do tempo em que nasceu a distinção"
(Norberto Bobbio - "Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política")

A esquerda tem como principal influência o filósofo alemão Karl Marx, enquanto a direita tem o economista inglês Adam Smith.



Marx é autor da obra "O Capital", em que ele faz uma análise minuciosa sobre o sistema capitalista e aponta seus defeitos e as consequências que eles trazem. Marx propõe a troca do sistema capitalista por um sistema socialista, em que o trabalhador realmente é valorizado (para Marx, quem realmente produz é o trabalhador e não o patrão, que é quem fica com a maior parte do lucro) e na construção de um Estado Social que visa acabar com a desigualdade social, que é inerente ao capitalismo.

Adam Smith é autor de "A Riqueza das Nações", obra em que ele propõe que o Estado não deve interferir na economia e que os mercados, na busca pela demanda, acabam promovendo bens de consumo a toda população. Smith introduz a teoria do "Livre Mercado", em que ele diz que através da lei de oferta e demanda, todos podem consumir produtos de alta qualidade por preços baixos, visto que o mercado sempre se adapta as necessidades dos consumidores, fenômeno que ele chama de a "mão invisível do mercado".

Na economia, a esquerda prega uma economia mais justa e solidária, com maior distribuição de renda. A direita está associada ao liberalismo e a neoliberalismo, doutrinas que na economia podem indicar os que procuram manter a livre iniciativa de mercado e os direitos à propriedade privada. Algumas correntes radicais defendem a total não intervenção do governo na economia, a redução de impostos sobre empresas e a extinção da regulamentação governamental. Para a esquerda, o liberalismo e neoliberalismo teriam como consequências a privatização de bens comuns e espaços públicos, a flexibilização de direitos conquistados pelos trabalhadores e a desregulação em nome do livre mercado, o que poderia gerar mais desigualdades sociais.

O liberalismo não significa necessariamente liberalismo social, por muitas vezes os adeptos do liberalismo econômico possuem um conservadorismo moral, visto que o adjetivo liberal é associado à pessoa que tem ideias e uma atitude aberta ou tolerante, que pode incluir a defesa de liberdades civis e direitos humanos. Nesse contexto, a esquerda é mais liberal que a direita, pois a esquerda busca a garantia dos direitos civis, como a descriminalização do aborto, a regulamentação do casamento gay e a legalização das drogas, atitudes que são contrárias as ideias de grande parte da direita, que por muitas vezes alegam defesa da moral, dos bons costumes e da família tradicional. 

Vale lembrar que é um grande equívoco achar que toda a direita tem o mesmo valor moral. Hoje em dia é muito comum partidos de direita adotarem a bandeira dos direitos civis e também é possível achar o oposto, partidos de esquerda com posturas mais conservadoras.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Conheça Jesus, o Revolucionário

Pacifista? Moderado? Messias? Não, pelo contrário 

por LUIS FELIPE MACHADO DE GENARO

Há poucos meses o mundo acadêmico (e também midiático) foi chacoalhado por uma polêmica obra redigida pelo jovem professor Reza Aslan. Desconhecido pela maioria, Aslan é um proeminente pesquisador das religiões formado em Harvard e especializado na Universidade da Califórnia. 

"Jesus chama São Mateus" (Caravaggio)

 Após anos de pesquisas, traduções e análises do Velho e Novo Testamento, juntamente com uma vasta documentação de cronistas da época, Aslan resgatou um delicado debate sobre a natureza histórica de um dos personagens mais controversos de todos os tempos. Entre épocas, um personagem que regressa com tamanha virulência que, neste artigo, resgatarmos um pouco de sua história mostra-se, no mínimo, necessário. 

Intitulada Zelota – A Vida e Época de Jesus de Nazaré, o livro abalou os pilares contemporâneos da doutrina cristã, novamente fomentando discussões entre teólogos, historiadores e cientistas da religião. 

Pregado – e deturpado – diariamente nos púlpitos e altares, Jesus é pintado como pacifista entre bárbaros, moderado entre as lideranças de sua época e messias para seus seguidores. Entretanto, Reza Aslan resgata em seu livro uma das faces mais eclipsadas do mestre. 

O enfoque da obra é dado ao conturbado contexto em que ele nasceu e viveu. Contexto politicamente efervescente, onde a disparidade entre ricos e pobres era gritante; onde o messianismo difundia-se; e indivíduos até então desconhecidos levantavam armas contra as principais autoridades da época: a casta sacerdotal judaica e os governantes romanos. 

Conhecido como aquele que deu a segunda face, Jesus pode não ter sido tão ponderado como pastores e padres afirmam e anseiam. Ao leitor leigo, a epígrafe do livro dá início a uma jornada de desconstrução de dois mil anos de História: “Não pense que eu vim trazer paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas a espada” (Mateus, 10:34). 

"A captura de Cristo" (Caravaggio)

Definitivamente, a paz não reinava no tempo em que Jesus nasceu. Militar e politicamente dominada, a Palestina encontrava-se sob o jugo do Império Romano, e a terra de Deus, de seus imperadores. Não obstante, a casta sacerdotal judaica, conivente com as sanguinolências da aristocracia romana, vivia em meio ao luxo e a ostentação do Templo. Mediadores entre o céu e a terra, davam em sacrifícios a Jeová o pouco que o restante miserável tinha a oferecer – e miseráveis, no período, era o que não faltava. 

Foi neste contexto que inúmeros judeus subversivos orquestraram insurreições “nacionalistas” contra o Templo, rebelando-se contra Roma. Neste ínterim, uma espécie de “partido”, ou agrupamento com ideias contrárias à ocupação estrangeira e aos luxos dos sacerdotes e escribas havia sido constituído. 

Segundo Aslan, “havia um termo bem-definido para esse tipo de crença, um termo que todos os judeus piedosos, independente da posição política, teriam reconhecido e orgulhosamente reivindicado para si: o zelo”. 

Os zelotas eram “nacionalistas” extremados, que se necessário faziam uso da violência e pregavam o fim de uma ordem vigente baseada nos ditames estrangeiros. Eram inimigos dos que indignamente ocupavam e zombavam da “Terra de Deus”. 

Nacionalismo, como se sabe, é um conceito moderno. Não havia entre os zelotas uma “paixão” ou “dedicação” pela “pátria”, mas pela localidade geográfica, considerada sagrada. Uma crítica à obra Zelota pode ser feita neste sentido. Aslan usa e abusa do conceito, mas não o historiciza. Por isso, aqui, as aspas são necessárias. 

"Jesus em armas" (Grafite na Venezuela)

Outra coisa: longe do autor afirmar com absoluta certeza que Jesus de Nazaré, camponês semianalfabeto vivendo até a idade adulta como artesão nas cidades de Séforis e Galileia, era um membro zelota. Contudo, o ímpeto de Jesus frente às autoridades de seu tempo mostra no pregador itinerante, misterioso, irrequieto, um sentimento zeloso que jamais havia sido notado. 

Historiadores e analistas bíblicos sabem das discrepâncias e dos bastidores conflituosos de escrita e canonização dos evangelhos. Afirmar certezas é sempre um grande risco. Porém, uma análise acurada de seus textos revelam resquícios interessantes do outro lado do nazareno. Vejamos dois fatos presentes nos evangelhos que podem ser rememorados. 

Dias antes de ser crucificado pelo crime de sedição, ou traição ao Império – pena dada aos desordeiros, terroristas e revoltosos da época, assim como outros “messias” de seu tempo o foram – Jesus entra no Templo derrubando mesas, quebrando cadeiras, libertando animais e empurrando quem estivesse em seu caminho. Esbaforido, ele grita: “Tirai essas coisas daqui!”. Depois continua: “Está escrito: a minha casa será chamada casa de oração para todas as nações. Mas vós fizestes dela um covil de ladrões”. 

Segundo Reza Aslan, “um ataque aos negócios do Templo é semelhante a um ataque à nobreza sacerdotal, o que, considerando-se a relação emaranhada do Templo com Roma, equivalia a um ataque direto à própria Roma”. 

Havia também o caso da tributação ao centro imperial. Para os zelotas, tal ato era uma afronta impiedosa. Quem não se lembra da máxima de Jesus após o indagarem se era lícito pagar tributo a César? “Mostrai-me um denário”, disse Jesus, referindo-se à moeda romana usada para pagar tributo. “De quem é esta imagem e esta inscrição?”. “É de César”, as autoridades responderam. “Bem, então devolvei a César a propriedade que pertence a César, e devolvei a Deus a propriedade que pertence a Deus”. 

Para Reza Aslan, “é surpreendente que séculos de estudos bíblicos tenham deturpado essas palavras como um apelo de Jesus para pôr de lado as coisas deste mundo – impostos, tributos e conflitos políticos – e concentrar o coração, em vez disso, nas únicas coisas que importam: a adoração, orações e a obediência”. Contudo, não apenas isso foi deturpado. 

"O flagelo de Cristo" (Caravaggio)

Após a morte de Jesus e a queda de Jerusalém, em 70, a seita nazarena alastrou-se rapidamente pela Palestina. Inúmeras comunidades cristãs se estabeleceram nos grandes centros urbanos, onde os evangelhos começavam a ser escritos por indivíduos dotados de erudita bagagem literária – e não pelos discípulos, como se imagina. Como um grande telefone sem fio, a mensagem do messias soprou como um vento forte pelos desertos, transformando-se e alterando-se com o passar das décadas. 

Com o nascimento da Igreja Católica e seu desenvolvimento através dos séculos, no epicentro de antigas revoltas, os registros do judeu subversivo, politicamente consciente e que havia confrontado a ordem estabelecida empunhado armas contra um dos maiores Impérios da Antiguidade, transformava-se, deturpava-se: do revolto para o pacifista. “Se tu não tens uma espada, vai vender teu manto e compra uma”, ordenou Jesus aos discípulos horas antes de ser capturado por uma legião romana. 

No ano de 425, durante o Concílio de Nicéia, um fato estava consumado: a Igreja Cristã subia ao lado do trono imperial. No cume da glória, subversão seria uma palavra incômoda. Desordem, um estigma. Com urgência, o nazareno revolto tinha de ser soterrado. 

Indagações permanecem. Como separar o fato da crença? Como compreender séculos de distorção histórica e encontrar a verdade original? Há uma verdade? Questões à parte, em tempos obscuros como os de hoje – cheio de fanáticos, reacionários, conservadores e ainda assentado na desigualdade social –, pelas vias do impossível e os obstáculos da História, Reza Aslan tentou uma façanha mais que urgente: recuperar Jesus antes do cristianismo. 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Cidades Rebeldes e a esquerda que não quer ouvir

A história do seminário que reuniu alguns dos maiores nomes da esquerda no mundo e foi repudiado pela... esquerda

por MURILO CLETO



Durante a semana passada, a Boitempo Editorial e o Sesc Pinheiros promoveram o seminário internacional Cidades Rebeldes, que tem como principal proposta discutir "questões como os efeitos do neoliberalismo nas cidades, as insurgências urbanas na história, a urbanização militarizada, os megaeventos esportivos, desenvolvimento urbano e meio ambiente, a mobilidade e as novas configurações das lutas de classe", como anunciado pelo endereço eletrônico do evento (http://cidadesrebeldes.com.br/), que foi inspirado pela coletânea homônima lançada pela própria Boitempo sobre as manifestações de junho de 2013.

Ao todo, mais de 40 convidados nacionais e internacionais compuseram as mesas de debates sobre a questão urbana e o direito à cidade. O grande destaque ficou por conta do célebre antropólogo David Harvey, que teve um mini-curso dedicado exclusivamente à sua obra. Na quarta-feira, o teórico marxista Moische Postone, da Universidade de Chicago, liderou as discussões sobre Trabalho, mobilidade, flexibilização: a dominação social hoje.

Apesar da programação inclinada à esquerda, o Cidades Rebeldes desagradou grande parte dela. Sob o título de "A rebelião não será gourmetizada", o Movimento Independente Mães de Maio veio a público com uma nota de esclarecimento sobre sua ausência no evento que serviu também de repúdio a ele, fundamentalmente por três razões. A primeira é a de que o convite recebido pelo coletivo aconteceu muito em cima da hora e somente graças à desistência de um dos intelectuais, o que não soou digno. A segunda é a de que o valor das inscrições (R$ 60 para todo evento; R$ 20 por dia avulso) elitizaria o seminário - todo o evento foi transmitido online pelo Sesc. A terceira, e mais incisiva, é a de que enquanto movimentos legítimos de batalhas por direitos estiveram de fora, como também o Movimento Passe Livre, figuras como Lula e Haddad estariam presentes. O trecho é longo demais para ser reproduzido na íntegra, mas alguns excertos merecem destaque. Os grifos são meus.

Afora a presença de algumas figurinhas carimbadas de mediadores e comunicadores totalmente integrados, e sempre a postos, à máquina petista-governista de lavagem cerebral (“progressista”, “livre” e “amorosa”) de trabalhadores e trabalhadoras…
Nós não acreditamos ser mais possível, a esta altura do campeonato, intelectuais de esquerda dignos deste nome, organizarem um seminário sugerindo que o Sr. Luís Inácio Lula da Silva tenha qualquer legitimidade para falar sobre “os desafios para uma esquerda democrática”. Logo este Sr. que, todos sabemos – ou deveríamos saber, se trata das figuras mais centralizadoras e autoritárias da chamada exquerda brasileira; que capitaneou, usou, abusou e ainda capitaliza até hoje todo um projeto coletivo de décadas e gerações de trabalhadores brasileiros, em torno de si e em favor de um projeto pessoal permanente de poder, que se renova a cada ciclo eleitoral. Uma figura cercada por fiéis correligionários que fazem todo o trabalho sujo para ele, que nunca permitiram qualquer democracia interna dentro do PT, e que nunca toleraram a ascensão de qualquer forma de questionamento/oposição a sua figura.
O que este sujeito, então, teria agora a dizer sobre as “Jornadas de Junho” e a noção de “rebeldia” para a verdadeira esquerda brasileira nos dias de hoje – que não sejam dicas para a melhor cooptação (ou repressão) de movimentos sociais e para a preservação/renovação da ordem do capital e seus espaços/territórios de acumulação (e espoliação, como nos ensina Harvey) atualmente no Brasil?!
A quem interessa promover, pela enésima vez, esta confusão na cabeça das pessoas realmente de esquerda (que acompanharão o Seminário), colocando joio e trigo juntos e misturados: sugerir que o Sr. Luís Inácio Lula da Silva, e a alta-burocracia do Campo Majoritário do PT (Lula, Dirceu, Pallocci et caterva, que destruíram este projeto coletivo de 30 e tantos anos, e ainda por cima carimbaram por longo-tempo o selo da “corrupção” em toda a esquerda do país), tenham qualquer coisa a dizer (em favor) ou a contribuir para uma real renovação da esquerda brasileira?! A quem interessa esta confusão (ou este proposital “red washing” na imagem de Lula), se não única e exclusivamente aos interesses pessoais, político-eleitorais, do Sr. Lula – o eterno-candidato dessa alta-burocracia e seus asseclas?! Acompanharíamos a sua bela retórica, pela enésima vez “na história deste país”, com uma total ingenuidade ou um total cinismo? Temos cara de trouxas?! Até quando?!
O mesmo raciocínio vale – ou deveria valer – para a participação do Sr. Prefeito Fernando Haddad na mesa de Encerramento do Seminário Internacional, justamente aquela que tratará “Da Primavera dos Povos às cidades rebeldes: para pensar a cidade moderna”, e que, emblematicamente, também não conta com nenhum integrante do Movimento Passe Livre São Paulo – nem de qualquer uma das centenas de organizações autônomas de trabalhadores que nos rebelamos e saímos às ruas cotidianamente ANTES, DURANTE E DEPOIS DE JUNHO DE 2013 (até os dias atuais), não apenas para “pensar”, mas efetivamente construir “uma cidade moderna” desde baixo, horizontal e coletivamente, sem velhos nem novos guias geniais dos povos, visando uma sociabilidade realmente mais igualitária, justa, não-punitivista, diversificada, autônoma e livre.
Definitivamente, companheiros e companheiras deste Seminário: desde quando “somos todos de esquerda”?! Desde quando “é tudo a mesma coisa”?! Até quando sustentarão essa farsa conciliatória de classes do “amplo, geral e irrestrito” campo “democrático-popular”?! O que nós temos a ver com as construtoras, empreiteiras e banqueiros que financiaram, por anos a fio e às pilhas de dinheiro, pelos Caixa 1, 2 ou 3, este projeto de poder-pelo-poder?! O que há de esquerda e de rebeldia nisto?! Quem foi que nos colocou neste balaio de gatos e ratos, cobras e porcos, nos tornando reféns da constante chantagem desta nova direita prática?! Desde quando houve/haverá “governabilidade” possível (à esquerda) com o padrão sarney-temer-renan-cunha que hegemoniza as instituições de todo o estado brasileiro há décadas – e estamos vendo muito bem a que ponto chegou na atual hiper-atuação, sob a regência de Cunha e Renan, das bancadas do Boi, da Bíblia e da Bala, sempre tratadas a pão de ló como “base aliada”, nos últimos anos, pelos “habilidosos” gestores petistas?! Verdadeiros “craques”… Em que?! Para quem?!

Presente na primeira mesa de quinta, o historiador e candidato ao governo do estado pelo PSOL Gilberto Maringoni respondeu ao companheiro de partido Juliano Medeiros, que compartilhou a nota do Mães de Maio, classificando-a como "infame" e "vergonhosa". O colunista do Brasil Post e doutorando em Direitos Humanas Raphael Tsavkko Garcia, por sua vez, chamou Maringoni diversas vezes de "pelego" por isso.

Diante de alguns dos compartilhamentos da programação do seminário no Facebook, Tsavkko comentou:

A programação é bem interessante, assim como a temática, mas duas "mesas" me chamaram atenção.
Uma, "Da Primavera dos Povos às cidades rebeldes: para pensar a cidade moderna" em que HADDAD estará presente. Beleza, ele é o prefeito da cidade, mas gente, Haddad vai falar de cidades rebeldes? O cara que disse o seguinte de Junho de 2013:
“O prefeito Fernando Haddad qualificou os movimentos de junho de 2013 de conservadores que culminaram com a eleição de Congresso Nacional de igual perfil no ano passado --segundo ele, o mais conservador desde 1988. As declarações foram feitas no fim de semana, em reunião da Open Society Foundation, do bilionário George Soros, no Rio” – Mônica Bergamo, jornalista – Folha de S. Paulo, 23-04-2015.
Mas não é o pior, calma, senta que lá vem.
A abertura do evento, cujo título é "Das Diretas Já às Jornadas de Junho: desafios para uma esquerda democrática" estará a cargo de.... LULA!
Sim, o camarada que não faz ideia do que seja esquerda democrática (nem a democracia do PT ele respeita, tendo imposto Dilma e nosso querido Haddad já citado) e cujo poste defeituoso - Dilma - e ampla maioria do PT - aquele partido em fase de metástase e que é um verdadeiro câncer - consideram Junho praticamente um levante fascista.
E vão botar esses dois palhaços? Um deles pra abrir o evento? Rapaz, a Boitempo sabe cagar um evento....
Ah, detalhe, o evento é PAGO. Não chamaram o Lula? Pede pra ele botar alguma grana que o partidinho dele roubou da Petrobrás pra financiar o evento, né?


A rejeição ao seminário no interior da esquerda, entendido e de antemão desqualificado como "petista", impediu que se visse, pro além das participações de Jean Wyllys, Gilberto Maringoni e Vladimir Safatle - grandes figuras ligadas ao PSOL, que faz dura oposição ao governo - a retumbância contundente das falas de Guilherme Boulos, Carlos Vainer e Jorge Luiz Souto Maior, críticos do legado excludente da Copa do Mundo e do aparelho estatal montado para sua efetivação. Boulos insistiu na questão da brutal injeção de crédito na economia, que, ao mesmo tempo em que serviu para endividar o brasileiro, impulsionou como nunca a especulação imobiliária nos grandes centros urbanos e expurgou os mais pobres cada vez mais para as margens.

Em que pese serem perfeitamente discutíveis as ausências de Movimento Passe Livre e o convite inapropriado ao Mães de Maio, o que chama atenção é a tendência de desautorização que ronda o desacordo. Quer dizer, o seminário, que nem se anuncia oficialmente como de esquerda, peca por abrir espaço de diálogo com representantes de uma esquerda que "não é de verdade".

O clima de sectarismo que circundou a realização do seminário contaminou o público. Convidado para compor a mesa sobre os megaeventos esportivos, o coordenador do Grupo Executivo da Copa do Mundo Luis Fernandes foi vaiado por parte da plateia, só freada com a intervenção de Vainer, que, apesar de crítico ferrenho das escolhas dos governos em função do torneio, precisou lembrar a importância da presença de um dos seus integrantes para simplesmente ouvi-lo. Isso tudo no mesmo evento que, antes de começar, foi taxado de governista.

Na quarta-feira, o mediador Sérgio Amadeu leu as questões do público, que fez menção à nota do Mães de Maio, aplaudida, e perguntou em tom de retórica, na mesa Cidade pra quem? Ganhar e perder a vida na periferia da periferia do capital, por que o seminário não era realizado na periferia. O auditório aplaudiu, até que o escritor Ferréz rebateu: "toda semana tem evento lá no Capão Redondo e eu nunca vi nenhum de vocês lá". Novas palmas, agora pro choque de realidade. Ao final, o coordenador da Boitempo destacou que a unidade de Pinheiros é a maior do Sesc em São Paulo e a única capaz de comportar aquele número de ouvintes.

Nada disso surpreende, afinal a emergência de uma esquerda moralmente superior e que jogou o debate político pro campo do fla-flu, reinante na história do tempo imediato, é mais um dos efeitos colaterais de um espaço público tomado pelo autoritarismo. Que seja - e é - o Mães de Maio um dos mais respeitados e respeitáveis movimentos da contemporaneidade, o recado dado pela nota original e pela resposta a Maringoni, que veio neste sábado, é muito claro: não há posição possível além da sua. E essa parece ser a tendência.

2015 vai ficar lembrado como o ano em que um dos mais importantes seminários de viés esquerdista do país nos últimos tempos foi repudiado pela própria esquerda. E enquanto ela, a esquerda, se racha no narcisismo das pequenas diferenças, quem diria, a direita cresce como poucas vezes se viu. Sinal dos tempos. Péssimos e sombrios tempos.



Pra quem está disposto a ouvir, o Sesc disponibilizou todos os debates no YouTube. O endereço é este aqui: https://www.youtube.com/user/portalsescsp

Abraços,
Murilo