quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Haddad e a Saga do IPTU em São Paulo

O que os mais de 10 anos que separam as gestões Marta Suplicy e Fernando Haddad não ensinaram à imprensa e aos governos petistas paulistanos


Brasília, 20 de dezembro de 2013. Com uma canetada, o Ministro Joaquim Barbosa recusou o pedido da Prefeitura de São Paulo para liberar o aumento do Imposto Predial e Territorial Urbano, o famoso IPTU. Na verdade, o episódio é apenas mais um de uma verdadeira saga que se instalou em São Paulo desde a apresentação de projeto de lei, encaminhado pelo executivo, que atualiza a Planta Geral de Valores. É a PGV que determina quanto custa o metro quadrado na cidade. De acordo com esses valores, o IPTU pode tanto subir como também descer, portanto. 

Verdade seja dita, o certame não era nenhuma novidade, nem para a Câmara de Vereadores - que aprovou o projeto em 24 de outubro -, nem para quaisquer meios de comunicação do país. O que faz a gestão Haddad hoje é basicamente cumprir o que determina a legislação municipal de 2009, que no governo Kassab ordenou a atualização bienal da PGV, até agora não cumprida.

Este ano, a execução da lei - ou melhor, seu projeto - virou escândalo. No dia seguinte à aprovação do projeto pela Câmara, o Brasil Urgente levou uma enquete ao ar com a seguinte questão: "você se sentiu traído pelos políticos?" Com todo o escândalo feito por Datena, a votação cravava "SIM" com pelo menos 70% dos votos.

Por incrível que pareça, a peça armada pelo programa da TV Bandeirantes também não foi nenhuma surpresa, pelo menos para quem tem uma memória razoavelmente vívida sobre a relação entre as administrações públicas petistas paulistanas e a mídia.

Marta Suplicy não foi a primeira mulher - e tampouco a primeira petista - a governar São Paulo. Antes dela, em 1989, Luiza Erundina começou uma queda de braço com a imprensa paulistana que resultou numa das primeiras frentes de oposição midiática após a redemocratização do país. É dela, Erundina, a tentativa de apresentar para a Câmara de Vereadores a lei do "IPTU Progressivo", rechaçada pelo legislativo e pelos meios de comunicação. Como não havia reeleição neste período, Eduardo Suplicy foi indicado pelo partido para a sucessão e, apesar de toda a bagagem política, foi derrotado nas eleições de 1992 para ninguém menos que Paulo Maluf.

Em 2000, foi o mesmo Maluf o derrotado, no segundo turno, para Marta. Com a maior cidade do país na mão, a prefeita foi alvo de uma das maiores campanhas jornalístico-publicitárias da história. 8 anos depois de um governo malufista - aquele que rouba mas faz -, seria natural que a rejeição da imprensa realmente fosse pública e notória, mas não de maneira tão avassaladora.

Fevereiro de 2003: mais exatamente no dia 10. 835 mil crianças da rede escolar recebiam, gratuitamente, material da prefeita através da Secretaria Municipal de Educação. 

A matéria da Folha? "Ex-secretários criticam pressão e marketing". Um deles, Nélio Bizzo, escreveu no dia seguinte para o Painel de Leitores esclarecendo: "Não concordei com o uso do meu nome na matéria, desvirtuando o que disse e invertendo meu posicionamento frente às políticas da Secretaria de Educação". Continua o ex-secretário: "considero suas políticas corretas e sinceramente continuo torcendo para que os programas surtam o efeito desejado". A outra secretária citada, Eny Maia, também foi ouvida novamente no dia seguinte, e com opinião francamente favorável à gestão. O Estadão, por sua vez, disse - sem citar fontes - que o déficit de educação infantil de alunos na rede pública municipal era de 200 mil alunos, quase 10 vezes menos que o aferido pela Secretaria Municipal de Educação, cerca de 2 anos antes.

Ainda que o número de unidades escolares construídas em 2 anos pelo governo Marta tenha sido quase igual ao do governo Celso Pitta em 4, a reportagem do Estadão diz que foi o Ministério Público Estadual quem, através de acordo, colocou 9 mil crianças na escola, mesmo que antes deste acordo a Secretaria tenha aberto mais de 40 mil novas vagas no município.

Em 2002, aliás, a Prefeitura Municipal de São Paulo investiu mais de 2,47 bilhões na Educação, algo em torno de 32% da arrecadação do município, e a maior soma já investida no setor em toda a sua história. Na imprensa, silêncio sepulcral sobre o assunto. Um editorial do Estado de S. Paulo, em janeiro de 2003, chegou a aventar que a gestão Marta Suplicy alterou a Lei Orgânica do Município, o que nunca aconteceu.

Um dos casos de maior repercussão aconteceu em novembro de 2002. A chamada de capa da Folha de S. Paulo dizia, em letras garrafais: "Prefeitura de São Paulo deixa de pagar R$ 3 bi à União". Resultado: o dólar fechou em alta, a bolsa em baixa e o risco-país subiu. Marta e seu secretário de finanças, João Sayad, correram para desmentir a falsa informação, que só foi esclarecida pelo secretário da Tesouro Nacional, Eduardo Guardia: "não existe calote. O município de São Paulo está absolutamente em dia com os seus compromissos, e tem pago as parcelas rigorosamente no prazo. O que a Prefeitura fez foi apenas uma opção prevista no contrato. Não existe nenhum descumprimento de contrato nem flexibilização". No dia seguinte, quase todos os veículos foram obrigados a corrigir a informação. O Jornal da Tarde - que pertence ao Grupo Estado -, no entanto, publicou manchete com os seguintes dizeres: "Marta dá um susto no Brasil. Foi um engano". 

A Folha de S. Paulo chegou a divulgar que a prefeitura estava pagando cinco vezes mais que o pre;o de mercado por palmeiras imperais, numa força-tarefa para arborização da cidade. Na semana seguinte, o jornal foi obrigado a se desmentir, constatando que, em algumas regiões, o preço do produto licitado correspondia a mais de 40% a menos que o preço de mercado.

Dezembro de 2002: o governo de São Paulo cumpria a sanção do Senado Federal que, em abril do mesmo ano, autorizava a cobrança de uma taxa de iluminação pública, já adotada em diversos municípios do Brasil.

O Estadão publicou um editorial intitulado "Fúria arrecadatória", em que afirma: "a prefeita ainda acha pouco esse festival de alíquotas e multiplicação de impostos".

Na mesma esteira, em janeiro de 2003, o editorial "A esperteza da prefeita", do Jornal da Tarde disse que "o IPTU foi o primeiro item de um pacotaço de dona Marta, que atacou logo em seguida com as taxas de lixo, de iluminação [...]".

No fim de janeiro de 2003, 8 pessoas morreram em Taboão da Serra em virtude das chuvas. O Estado de S. Paulo usou as mortes, que - grifo - não ocorreram em São Paulo, sob o título: "Morte expõe descaso com áreas de risco". Até 2003, a gestão Marta realocou 3.500 famílias que viviam em situação de risco. Também nenhuma linha sobre o feito.

Sobre uma série de medidas anunciadas pelo governo, o Jornal da Tarde chegou a publicar um editorial chamado "O Ato Institucional de dona Marta", em outubro do primeiro ano de administração da petista. Ainda, o editorial "IPTU enganador" afirmou que o aumento do IPTU na cidade seria bancado pelos 200 maiores contribuintes da cidade. O jornal errou por pouco: eram, na verdade, 200 mil.

O Jornal da Tarde mentiu também sobre a limpeza pública. Apesar de os serviços contratados terem sido iniciados em fevereiro de 2002, o veículo chegou a dizer que a licitação para o trabalho ainda não havia sido feita, mesmo que o próprio Estado de S. Paulo tenha divulgado, meses antes, um balanço sobre a limpeza na cidade, considerado "positivo", de acordo com ele mesmo.

Marta suportou o inferno astral até 2004, quando perdeu a reeleição para José Serra. Logo no início do mandato, o tucano fez um estardalhaço a respeito das contas da prefeitura, dizendo que o rombo nas finanças era de quase 2 bilhões de reais, apesar da aprovação do Tribunal de Contas do Município. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, com a ex-prefeita acusada de descumprir a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Diante da fragilidade das provas, o ministro Eros Grau arquivou o processo.

Apesar de não ter sido reeleita, Marta Suplicy foi recentemente escolhida como a melhor prefeita de São Paulo em 30 anos. No ano da reeleição, inclusive, seu índice de aprovação beirava os 50%.


  

Nesta década que nos separa da gestão Suplicy em São Paulo, pouca coisa mudou. Numa conversa com jornalistas, o prefeito Fernando Haddad confessa ter recebido, pessoalmente, ligação de "um dono de muitos meios de comunicação", dizendo que "não daria trégua à prefeitura e que colocaria todos os veículos contra o IPTU progressivo." Não precisou nem dizer quem, mas do outro da linha estava ninguém menos que Johnny Saad, dono do Grupo Bandeirantes e conhecido proprietário de uma enorme rede de imóveis em São Paulo. E olha que o grupo recebeu nada menos que a bagatela de R$ 900 milhões nos últimos 12 anos do governo federal, 9 deles sob o comando do PT.


Saad cumpriu a promessa. Haddad foi simplesmente massacrado não apenas pelos seus veículos mas por todos os outros. Mídia, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e PSDB articularam-se tão rapidamente que nem mesmo a legislação municipal foi capaz de deter a liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que ordenou a suspensão da lei do executivo. Não é segredo para ninguém que Paulo Skaf, presidente da Fiesp, é nome certo do PMDB na disputa pelo governo do estado de São Paulo em 2014.

O comunicado da prefeitura diz que o reajuste do IPTU seria diferenciado por tipo de imóvel e localização. Em média, 10,7% seria o aumento do imposto para os residenciais e 31,4% o de comerciais. Mas o aumento da média, não significaria, necessariamente, prejuízo no bolso do trabalhador. Pelo contrário: distritos do Parque do Carmo e do Campo Limpo, por exemplo, teriam reduções médias de 12,1% e 2,7%, o que beneficiaria a população mais pobre da cidade. 

Em resposta, o vereador Eduardo Tuma (PSDB) - sobrinho de Romeu Tuma, aquele que era delegado do DOPS na Ditadura Militar - disse: "não posso admitir um projeto como esse, que atualiza a PGV de acordo com picos da especulação imobiliária". Hoje, o valor venal dos imóveis - utilizado como base para a cobrança do IPTU - é de 30% em relação ao seu valor comercial em São Paulo. Se aprovada, a nova lei determinaria que este valor aumentasse para 60% (e não 100%), o que confirma a levianidade da acusação de Tuma.

Hoje, o IPTU é a principal fonte de receita de qualquer prefeitura. Em São Paulo, corresponde a cerca de 15% de toda arrecadação. Por coincidência, talvez, o UOL publicou reportagem justamente em 23 de outubro deste ano - um dia antes da aprovação da lei - sustentando que a Prefeitura de São Paulo não sabe para onde vai metade do IPTU arrecadado. Ora, qualquer especialista de meia-tigela em finanças públicas sabe que o recurso do IPTU é próprio e, como tal, pode ser aplicado em qualquer setor da administração, ao contrário de repasses específicos de outras esferas do poder público, como através da liberação de emendas ou da celebração de convênios.

Se todo mundo admite, por um lado, pagar cada vez menos o imposto do carro porque o seu valor comercial diminui, por que tanta gritaria a respeito da atualização - e não do aumento, portanto - do valor venal dos imóveis? A resposta pode ser mais complicada que se imagina, mas Fernando Haddad já deve ter descoberto um caminho mais ou menos lógico: não confiar na mídia tradicional.

Hoje, o prefeito de São Paulo admite que falhou no plano de comunicação, inclusive porque sequer tem um. A emissão de comunicados através do site da prefeitura e da imprensa oficial é realmente importante - aliás, legalmente necessária -, mas não substitui o contato com aqueles que vão sentir no bolso - e nos ouvidos - todo o impacto de qualquer medida. 

Comprar briga com a imprensa e sair em pé é uma tarefa para poucos. Na Argentina, Néstor Kirchner peitou os conglomerados de comunicação e se deu ao luxo de não sair candidato à reeleição para abrir espaço para sua mulher, Cristina. Foi eleita em 2007 e, apesar de ter ampliado a luta do marido, foi escolhida novamente para chefiar o país, em 2011, num massacre eleitoral histórico.

A edição de 12 de novembro deste ano do Clarín, que coincidia com a semana da volta da presidente argentina, internada por problemas de saúde, estampava na capa sintomas de uma crise aparentemente insolúvel: "Preços imparáveis: a carne subiu 10% em somente uma semana". Logo acima do título, o "Tema do dia: Inflação sem freio". Enquanto os jornais veiculam o alarde, diversas pichações, em todos os cantos da capital, dizem "Fuerza Cristina". Sua imagem ocupa o espaço público ao lado de Néstor, Perón, Chávez e outros ícones da esquerda latino-americana.  

É bem verdade que os argentinos são muito diferentes de nós em muitos sentidos. Mas a consciência histórico-social das ruas de Buenos Aires não foi forjada abruptamente, e em algum momento da história esse diálogo entre poder público e sociedade aconteceu. Mais do que isso, é constantemente atualizado através de debates que hoje muitas vezes sequer precisam ser mediados pelo poder público. Se entre lojistas e taxistas a visão sobre os Kirchner é a pior possível, nas ruas e centros culturais edições como estas do Clarín servem apenas para situações de emergência no toalete.

Além dos filmes e das carnes - ah, as carnes! - também é possível aprender um pouco de comunicação com os argentinos.  

Erundina perdeu. Marta perdeu. Desta vez, se Haddad perder, quem perde é o Brasil.




Abraços, 
Murilo 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A Prostituição e o Falso Progressismo

Na França, o governo diz que a prostituição faz mal à mulher e deve acabar. Só esqueceu de perguntar se é isso mesmo que ela quer


Ainda precisa passar pelo Senado, mas a Câmara Baixa do Parlamento francês acabou de aprovar, no último dia 04, uma lei que regulamenta a punição de clientes de prostitutas no país. Como o projeto foi encaminhado pelo próprio Partido Socialista, que é situação no executivo e maioria no Senado, provavelmente será posto em prática em breve, sem maiores problemas. 

1,5 mil euros - cerca de 4,9 mil reais - é a multa para aqueles que forem flagrados usufruindo dos serviços sexuais de alguém na terra dos perfumes. A prática da prostituição, no entanto, continua sendo legal, mas o seu consumo não. Sim, pode mas não pode.

A discussão é, quem sabe, tão velha quanto a profissão ou andar pra frente - ou, neste caso, majoritariamente pra trás -, e um consenso sobre o tema está tão distante quanto a erradicação da prática. O fato é que o Partido Socialista errou. E os sinais desta barbeiragem já foram anunciados há mais de um ano pela jornalista Eliane Brum.

Quando ainda escrevia às segundas-feiras para o site da Época, Eliane Brum levantou a bola do grande problema que acompanhava as então recentes declarações da ministra dos Direitos das Mulheres Najat Vallaud-Belkacem. Em julho passado, a porta-voz do governo admitiu que a questão sobre a prostituição no país não girava em torno das sentenças "sim" ou "não", mas de "como abolir" a prática. Sim, abolir.

Já em outubro, ainda do ano passado, Brum reproduziu a voz de algumas das reações às declarações da ministra. Uma delas foi de ninguém menos que a secretária-geral do Sindicato das Trabalhadoras do Sexo, a prostituta Morgane Merteuil.

Grifo a profissão de Merteuil por um motivo muito específico. O que Eliane Brum problematizou na fala da ministra, ano passado, serve de referência para uma porção de paternalizações que vez ou outra usam as minorias em favor de quaisquer interesses menos os das próprias minorias em questão: a quem pertence o corpo da mulher? 

No manifesto de Morgane Merteuil, certo feminismo é acusado de "impôr uma imagem mainstream e burguesa da mulher". E ela tem razão. Afinal, e se a mulher quer se prostituir? O álibi utilizado pelo governo francês para a radical decisão da semana retrasada está ancorado nos altos índices da rede de tráfico de mulheres e na exploração causada pelo mercado sexual.

O que o governo francês não leva em consideração é um raciocínio razoavelmente lógico de distinção entre as práticas, hoje correlacionadas pelo atual projeto de lei: a prostituição não é tráfico de mulheres. Tráfico de seres humanos é uma prática caracterizada pelo deslocamento involuntário de sujeitos que passam a viver em situação muito próxima da escravidão. Quer dizer, a sua marca está na involuntariedade. A prostituição não. Pelo contrário, a prostituição consiste na prática de sexo consensual, mediado pelo dinheiro. 

Se o problema está nas redes de tráfico ou mesmo na violência sexual contra a mulher, o tiro tem um alvo certo: ela mesma. Ao penalizar o consumidor, a França impõe ao mercado sexual - que não vai deixar de existir - o caminho da clandestinidade. Nela, tanto o tráfico de seres humanos como a violência sexual - que, claro, podem e muitas vezes estão ligados entre si - são tão bem-vindos quanto fugidios aos olhos do Estado.

O maior exemplo desta estupidez legal é o Brasil. Aqui a prostituição também é permitida, mas as casas de prostituição não. Pra ir "pra cama" com um cliente, a prostituta é obrigada a se expôr na rua. A justificativa? Mais ou menos a mesma: "proteger" as mulheres dos interesses masculinos, metamorfizados pelos temidos cafetões. 

Em alguns países da Europa, são comuns as casas de prostituição com botões de emergência nos quartos. Na segurança do seu ambiante de trabalho, as prostitutas podem reagir aos excessos de determinados clientes com mecanismos como estes, que têm apenas um fim: garantir o seu direito de ganhar o seu dinheiro com o que os seus recursos oferecem. Não é o mesmo que acontece em toda e qualquer profissão?

Tanto aqui quanto na França não se discutem ações para oferecer às prostitutas condições dignas de trabalho, como a regularização da profissão e a garantia de direitos trabalhistas fundamentais. Quer dizer, até se discute, mas quem o faz é massacrado pelos colegas de vida pública, como tem acontecido com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) depois da militância pelo projeto Gabriela Leite, que prevê a regularização das casas de prostituição, assim como do olhar do Estado sobre elas. 

O que se discute é como acabar com um problema moral nunca resolvido pela sociedade dita civilizada, obcecada pela privatização da vida pública e a estatização da vida privada. Numa tacada só, o partido socialista francês escancara o que existe de pior no falso progressismo que inunda o debate político no Ocidente: a demagogia.

Este fenômeno acontece também, claro, em outras pautas. Em plena cidade da pedra que o rio cavou, Itararé-SP, teve jornalista estufando o peito pra dizer que o feriado de 20 de novembro "envergonha" negros do país. De que cor ele é?

Antes de falar pelas prostitutas (ou pelos negros), o que o governo francês poderia fazer - assim como o brasileiro - é ouvi-las. E não o faz por um motivo muito simples: acredita que sabe tudo sobre elas, o que querem, o que desejam, o que precisam. O projeto de lei recém-aprovado do outro lado do Atlântico ainda prevê orientação e curso para que as profissionais do sexo entendam os malefícios da profissão. 

E quais são eles? Do alto do gabinete, com a ponta da caneta tinindo, um ministro responde: "eu sei".

Não sabe.



Abraços, 
Murilo

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A Hashtagzação da Opinião

Como a crítica acabou se tornando mais importante do que o seu próprio conteúdo





São novos tempos. Tempos em que, pra falar com aquele parente mais remoto, que vive experiências alternativas, vá lá, no Zimbábue, não se precisa de muita coisa além de uma conexão meia-boca ou um celular mequetrefe. 

É também o tempo do fast-food. Não são necessários mais do que 10 minutos pra comer aquele dogão que "enche bem". Além do mais, é barato e bem gostoso, principalmente se for feito sem todos os padrões da vigilância sanitária ocidental.

Esses tempos também são os tempos da zona azul. Não dá pra deixar os nossos Mercedes muito tempo parados na rua que já vem o guardinha multar.

Falando em zona, outra que tem chamado muita atenção é a zona da crítica, a internet. Não é bem verdade que a zona da crítica seja uma invenção dela, mas que a sua popularização foi responsável por reinventá-la, não há dúvidas.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou esse tempo de geração do fast-thinkin'. Quer dizer, esses também são tempos de ideias rápidas, chamativas, claras, "ilustradas" por imagens e, claro, críticas. Com a adoção da imagem, aliás, a crítica tornou-se tão poderosa a ponto de adquirir status de verdade documentária. Basta uma associação entre o que se vê e o que se acha que, pronto, eis uma capa de jornal das mais vendidas.

Por incrível que pareça, o fast-thinkin' é um fenômeno anterior à internet. Descende dos anos 80 e, principalmente, 90 do século passado, uma verdadeira revolução na maneira dos grandes jornais se comunicarem com o público. Com a popularização da TV, não restou outra alternativa aos impressos senão adotar o apelo à imagem como estratégia de contenção de leitores-desertores. E funcionou.

No Brasil, o primeiro grande espaço virtual de discussão foi o Orkut. Até então, todos os fóruns apresentavam caráter específico, e eram anexos de sites específicos. A sacada do Orkut foi permitir a criação de fóruns distintos dentro de uma mesma ferramenta de comunicação. Desta forma, era possível ter um perfil pessoal com álbuns de fotos, preferências - como livros, sabonetes e religião - e as tais "comunidades". Comunidades eram fóruns com administração própria, regras (normalmente apresentadas na descrição da página), mediadores e integrantes, que em alguns casos deveriam ainda solicitar a entrada (em alguns casos, a espera poderia demorar meses, como em comunidades de times de futebol).

O mais interessante é que as comunidades cresceram de tal forma que tornaram-se estruturas burocráticas complexas. Na comunidade "oficial" do Palmeiras, por exemplo, os administradores tinham perfil próprio para gerenciar o grupo, e as eleições - meio espartanas - para o cargo eram acompanhadas com afinco pelos usuários. Normalmente a tarefa de mediar a página era aceita com glórias pelos membros, que já adotavam postura diferente nas publicações, apagando pequenos incêndios, ameaçando outros membros com suspensão, expulsão e por aí vai. Uma vez fui suspenso de lá porque xinguei um cara que estava cornetando o ex-goleiro Sérgio. Com propostas reformistas, muitos dissidentes mais exaltados fundavam novas comunidades.

Mais do que exibir um conjunto de vínculos de identidades (afinal, era possível ser signatário de, por exemplo, "Anarquismo", "Grêmio", "Eu Sou Uma Joia Rara", "Tainá - O Filme"), as comunidades também serviam como zonas acaloradas de crítica, sejam quais fossem os assuntos veiculados. Inclusive porque eram permitidos assuntos alheios ao tema central do fórum, através dos chamados "OFF Topics", que também tinham suas regras específicas.

Como não havia o botão "curtir", o jeito de se mostrar participante do assunto, sem colaborar, mas atuante, era através do recurso da repetição personalizada. Por exemplo, se a primeira postagem do tópico "[OFF] - Parada Gay em São Paulo reúne milhares de participantes" dissesse "O JEITO É BOTAR FOGO NESSES VIADO TUDO", a postagem do próximo usuário poderia vir acompanhada de "O JEITO É BOTAR FOGO NESSES VIADO TUDO[2]" ou, ainda, com comentários anexos: "O JEITO É BOTAR FOGO NESSES VIADO TUDO kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk".

Ser colunista de jornal não é algo que todo mundo vai ser um dia. Neste sentido, o grande mérito das redes sociais foi o de dar volume a personalidades anônimas. Daí o poder de uma ferramenta democrática de amplificação dela, a opinião.

Nos tempos do fast-thinkin', dar a opinião acabou se tornando mais importante do que a opinião em si. Basta que um assunto apareça nas redes, e o tempo parece um contador de bomba-relógio para aqueles que precisam se manifestar, de qualquer jeito, a respeito de um assunto veiculado.

Como, ao contrário da opinião, o empirismo não está na moda, o ato de fazer a crítica inscreve o sujeito anônimo num seleto grupo de pessoas conscientes, rapidamente identificadas pelo posicionamento definido. Mas, afinal, conscientes do que?



Quando em junho o Brasil pipocava em manifestações, que ocuparam as ruas de grandes ou pequenos centros urbanos, as redes sociais foram inundadas por uma consciência que, acima de tudo, significou status. O slogan, acompanhado de hasthtag, #VemPraRua, foi parar em anúncio da Fiat e Bárbara Paz fez um ensaio sensual como black block. Fotografias de olhos roxos maquiados eram postadas com efeitos do Instagram: amaro, mayfair, rise, hudson, valencia, x-proII, sierra, willow, lo-fi, earlybird, sutro, toaster, brannan, inkwell, walden, hefe, nashville, 1977 ou kelvin. Só escolher.

Com o pedido de prisão dos envolvidos no caso do Mensalão, uma montagem de Giulliano Esperança (?), que fazia associação entre Hitler, Genoíno e Dirceu, foi compartilhada 36 mil vezes. Enquanto isso, pesquisa do Datafolha diz que 81% dos paulistanos assumem publicamente que são "mais ou menos informados", "mal informados" ou "totalmente desinformados" sobre o assunto. Ainda assim, 79% querem a prisão imediata dos condenados.

Ao ver o gesto do Genuíno e do José Dirceu, fiquei incomodado, senti um sensação muito ruim, me veio imediatamente a imagem do Hitler. Fiz uma breve pesquisa e logo achei Hitler fazendo este gesto em uma aparição pública. O mal que esse governo fez e faz ao povo brasileiro, não é nada diferente do que foi feito por Hitler. Vivemos em um campo de concentração petista, aliás a pronúncia muito parecida com nazista, assim como outras coincidências. Estamos aprisionados pela violência, iniciada pelo desrespeito praticado por toda essa cambada de corruptos. Vivemos sobre escassez, sem atendimento na saúde, sistema educacional falido, projetos culturais ridículos, estrutura fiscal medonha, segurança ZERO e infelizmente tem muito mais. Eu dúvido que essas prisões vão mudar alguma coisa. Espero estar enganado.
Ao ver o gesto do Genuíno e do José Dirceu, fiquei incomodado, senti um sensação muito ruim, me veio imediatamente a imagem do Hitler. Fiz uma breve pesquisa e logo achei Hitler fazendo este gesto em uma aparição pública. O mal que esse governo fez e faz ao povo brasileiro, não é nada diferente do que foi feito por Hitler.
Vivemos em um campo de concentração petista, aliás a pronúncia muito parecida com nazista, assim como outras coincidências. Estamos aprisionados pela violência, iniciada pelo desrespeito praticado por toda essa cambada de corruptos. Vivemos sobre escassez, sem atendimento na saúde, sistema educacional falido, projetos culturais ridículos, estrutura fiscal medonha, segurança ZERO e infelizmente tem muito mais. Eu dúvido que essas prisões vão mudar alguma coisa. Espero estar enganado.

Atualmente, a vedete da vez é a doença de Genoíno. Postagens exigem "justiça social" com o tratamento do deputado no SUS, com imagens degradantes de pacientes em hospitais públicos de algum lugar - talvez nem do Brasil.

Ao mesmo tempo em que esvaziam fóruns e debates sobre as questões das minorias, ~os conscientes~ ocupam as redes com postagens que condenam o feriado da Consciência Negra poucas semanas depois da santificação do Dia de Finados. Aliás, na zona da crítica falar com Deus também é permitido. O Facebook dEle deve estar forrado de atualizações, daqueles que amam e daqueles que odeiam. 

PS: Conheça o melhor Tumblr
de todos os tempos, o Chicas Xavier

Com a glamourização da vida cotidiana e privada, as redes esticaram Narciso e encurtaram Atena. Nisso de superproduzir a voz, o seu conteúdo foi completamente esvaziado.

Nesta mesma onda, a rede social Ask veio, aparentemente, para ficar. Através da ferramenta, é possível responder perguntas cotidianas ou polêmicas, como por exemplo "CARA O QUE VOSE ACHA DA DITADURA MILITAR NO BRASIL"; "Pq vc e a Samanta terminaram ? ://"; "minina vc è uma corna o jerfeson te trai com todo mundo kkkkkk"; ou mesmo mensagens de incentivo, como "Não dê bola pra esses otários, são pessoas invejosas que não acrescentam em nada. Não ligue pra opinião dos outros e continue sendo essa pessoa que é XD".  

Na zona da crítica, a opinião tornou-se um ingresso de entrada. Pra uns, na consciência. Pra outros, na piada.



Abraços,
Murilo

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Revolta da Vacina Animal

O ativismo de defesa dos animais ocupa uma estreita faixa entre a consciência e a burrice



Acontecimento raro, mas uma postagem curta parece necessária depois da polêmica em torno da invasão de ativistas num laboratório do Instituto Royal de São Roque. Nesta madrugada, integrantes do Movimento Frente Antivivisseccionista do Brasil e mais alguns curiosos entraram na sede do instituto para resgatar animais que, de acordo com denúncias, sofriam maus-tratos e como cobaias para pesquisas científicas na elaboração de cosméticos.

Não conheço o laboratório. E nem vocês. O que eu sei é que a promotoria pública se manifestou informando que duas inspeções foram realizadas na ano passado depois de denúncias, e nenhuma irregularidade foi encontrada. Antes de saber se o laboratório tinha licença da Anvisa, como argumentou em nota, milhares saíram em gritaria pelas redes sociais para defender os "direitos dos animais". E isso pode dar um pano pra manga lascado.

1) Testes em animais são realizados e necessários desde que a medicina é medicina. A ciência precisa dos testes pois sem eles as variáveis na fabricação de medicamentos e na condução de tratamentos seriam transformadas em meras especulações inseguras. Ninguém gosta de repetir essa informação, mas o código genético de mamíferos é extremamente similar. Nosso DNA é muito mais semelhante do que diferente do dos ratos, por exemplo. Neste sentido, os testes apontam prováveis hipóteses de erro, para que você não morra por efeitos colaterais depois de tomar um simples analgésico. 

2) Com toda essa histeria, a impressão que temos é que os pesquisadores ficam rindo nos laboratórios com aqueles óculos de fundo de garrafa de Tubaína enquanto assistem, com seus cabelos brancos espetados, um monte de animais gemendo em meio a sessões de tortura, acompanhadas por camadas de uma fumaça esvoaçante. E claro, também trovoadas. 

PS: nunca entendi por que, mas nestas cenas sempre têm trovoadas.

3) Este caso revela como poucos uma tendência curiosa do mundo contemporâneo que é a humanização dos animais, acompanhada também de outras um tanto quanto complementares, como a adultização de crianças. Com esse discurso, parece que estamos falando de nazistas torturando judeus em campos de concentração anteriores à Segunda Guerra Mundial. 


Se o Instituto Royal age de maneira antiética e desrespeita as normas exigidas para pesquisa científica nos seus laboratórios, é simples: fechem esse boteco. Mas a ciência não vai parar por causa da nossa geração de maricas

Este vídeo curto, mas esclarecedor, aborda o tema a partir de uma perspectiva muito mais - como vocês diriam - consciente: http://youtu.be/vWy_hziZYL8

Atenção para o comentário de uma usuária da rede social no vídeo:

Se as pesquisas todas dependem de sacrificar animais, que morram todos de câncer.

 · 



Estamos assistindo muito a Sessão da Tarde. Aliás, hoje tem Dr. Dolittle a partir das 15h57.


Abraços,
Murilo

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Vigiar e Proteger no Brasil da Democracia Militar

A verdadeira relação entre o poder de fogo da polícia e a segurança social





O debate sobre o armamento das polícias é tão antigo quanto o surgimento da própria civilização, mas nunca foi tão urgente discutir com números a real relação entre poderio bélico e segurança. Digo "polícias" exatamente porque me refiro à prática do policiamento como aquela que carrega duas funções complementares: vigiar e proteger. 

No Brasil, existem pelo menos 3 modalidades de polícias: a civil (que vigia e protege através das investigações), a militar (que vigia e protege nas ruas os direitos dos cidadãos) e o exército (que vigia e protege as fronteiras do país diante de invasores em potencial, como também costuma ser o caso da marinha e da aeronáutica). Numa epígrafe, seria possível dizer que enquanto o exército nos protege dos outros, a polícia nos protege de nós mesmos. 

Mas, afinal, vigiar e proteger exatamente o que e, principalmente, de quem? A história ajuda a responder. Na antiga Mesopotâmia, o policiamento esteve ligado ao que hoje podemos chamar descaradamente de poder judiciário, que neste caso carregava as marcas de uma fundamentação mágico-religiosa ditadora das interpretações dos fenômenos naturais e sociais. Como não acreditavam na causalidade, todos os acontecimentos eram entendidos como fruto da vontade ou dos atos de alguém. Desta forma, a solução pros impropérios da sociedade às margens dos rios Tigre e Eufrates era cortar os males pela raiz, através da relação entre o conhecimento do estado embrionário da História e o decretado - mas ainda não conhecido -  futuro. Descende daí a vitalidade do papel dos adivinhos: eram eles os responsáveis pela criptografação e interpretação das mensagens encaminhadas pelos deuses.

No século XVIII a.C., o Código Hammurabi delegou sobre as principais aflições da vivência em sociedade e, desta forma, inaugurou a transição do Direito Consuetudinário para o Direito Positivo. Resultado: dos 282 artigos, pelo menos 20 tratam de maneira direta e inequívoca sobre propriedade. O artigo 22 postula que "se alguém comete roubo e é preso, ele é morto".

Na Roma Antiga, praticamente não havia distinção entre entre polícia civil, militar e exército. As mesmas forças que protegiam as fronteiras do império eram as acionadas em casos de distúrbios populares. Em alguns momentos, aliás, a própria guarda pretoriana se encarregava de descer o sarrafo nas revoltas que mais abalaram um dos berços da civilização ocidental.

Com as invasões germânicas, o império romano rapidamente sucumbiu. Com ele também o senso coletivo de proteção. Tanto que uma das primeiras consequências deste processo foi a privatização da defesa das fronteiras, associada à ruralização da sociedade nos chamados feudos. Lealdade ao senhor - e não ao Estado -, era o lema dos cavaleiros medievais que fizeram fama de Capitão Nascimento na mal-apelidada Idade das Trevas. 

Cansado dos anacronismos, lembro apenas que é somente a partir do século XV que a máquina do Estado volta a burocratizar consistentemente o aparato policial diante de todas as preocupações do monarca na formação do Estado Moderno Absolutista. 

Nova guinada significativa observamos apenas no século XIX, quando a industrialização já é uma realidade irreversível em boa parte do mundo e as práticas de controle se complexificam para o mapeamento "inteligente" da criminalidade. É neste momento que surgem o RG, a fotografia e o uso investigativo da impressão digital.

Não seria surpresa de ninguém detectar que a função da polícia no desenvolvimento da Modernidade esteve ligada à proteção da propriedade privada, inclusive dos meios de produção - vide o caso dos ludistas.

Passadas as muitas gerações de polícias no mundo, o fato é que, apesar das atribuições delegadas pela Constituição Federal de 1988 no Brasil, todas elas têm caminhado no sentido da vigilância e da proteção da propriedade, e não da vida, e muito menos dos direitos. Se para alguns o armamento da polícia é sinônimo de segurança, para outros o que resta é correr para as colinas. 

Só a PM do estado de São Paulo, por exemplo, mata mais que a polícia dos EUA: de 2006 a 2010, são 2.262 mortos em "confrontos"; no mesmo período, a polícia de todo o país norte-americano executou 1.963 nas mesmas condições. Para cada 100 mil habitantes, a taxa de mortos pela polícia dos EUA é de 0,63, ao passo que a de SP executa 5,51. Metade dos PMs de São Paulo presos atualmente responde por homicídio.

De acordo com o sociólogo Michel Misse, a polícia do Rio de Janeiro mata um cidadão para cada 16 mil habitantes, enquanto que a polícia estadunidense executa um para cada 1,05 milhão. Mesmo comparados a países latino-americanos cujos históricos estão ligados a guerra civis e ao narcotráfico, os números da polícia do RJ são superiores. Entre 2001 e 2011, foram 10 mil mortos pelos cariocas fardados. Entre 2005 e 2007, dos 707 casos de auto de resistência com autoria reconhecida, foram obtidos registros em 510 deles. Destes, apenas 355 viraram inquéritos, 19 foram encaminhados para a justiça, 3 foram denunciados pelo Ministério Público, 2 foram pronunciados e somente 1 foi condenado. Até esta data, apenas 60% dos desaparecidos retornavam aos seus lares.

A violência da polícia tem cor e lugar

Do Observatório de Favelas, Raquel Willadino sustenta que 77% dos jovens que perderam a vida em 2010 eram negros, enquanto que somente 8% das políticas públicas de segurança apontam recortes específicos que levam em consideração a raça. Apesar de reconhecer a deficiência do foco, o superintendente da Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional Alexandre de Souza, Coronel da PM do RJ, sustenta que o elevado índice de homicídios contra negros corresponde ao "perfil demográfico do estado". 

Mas os números fornecidos pelo Mapa da Violência de 2012 desmentem a especulação. A população do Rio de Janeiro é composta por 47,4% de brancos e por 51,7% pretos e pardos. Ainda de acordo com o relatório, foram 736 mortos brancos para um total de 1899 negros, quase 2,6 vezes mais.

Desde o desaparecimento de Amarildo após interrogatório numa das UPPs no Rio, o debate sobre a atuação da polícia tem acalorado ânimos. Mas este problema representa uma constante nas comunidades cariocas: enquanto o número de homicídios tem caído (68%), o índice de desaparecimentos tem aumentado significativamente (56%). Somente este ano, são 5.900 no Rio de Janeiro. Aliás, no caso de Amarildo, foi o próprio inspetor da Polícia Civil, Halter Pitter, quem orientou o major Edson Santos para combinar os depoimentos dos policiais à Corregedoria.
  
Em 25 das 33 UPPs no Rio, há pelo menos uma denúncia contra algum policial. 62% dos entrevistados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada não confiam na PM e 51,5% atestam que suas abordagens são desrespeitosas e inadequadas. No morro, a principal arma que "protege" é o fuzil.

"Modelo" de segurança

Ao contrário do que pode se pensar, os EUA não são lá essa calmaria toda. Entre os países que ocupam a lista de desenvolvimento humano mais elevado, ocupam a 5ª colocação no quesito violência, sendo proporcionalmente mais seguros apenas que Barbados, Seichelles, Lituânia e Estônia.

Realmente não parece muito justo comparar o desempenho da polícia no Brasil com os exemplos dados por EUA e Europa. Mas se não adianta justaposicionar as polícias daqui e de lá, não custa nada lembrar que o atual modelo nacional de vigilância e proteção foi importado da França no limiar do século XX, e mesmo a divisão estadual das polícias militares parece corresponder a uma tentativa frustrada de federalizar a defesa civil como nos EUA.

Se a intenção é copiar de lá, é certo que mais de um século de defasagem não é o suficiente para cobrir a realidade atual do crime no Brasil. Quando o modelo atual foi implantado, o país tinha cerca de metade da população do Rio de Janeiro atualmente, e as favelas sequer existiam.

Tudo isso porque o engessamento operacional da polícia é apenas um dos sintomas de uma paralisia generalizada. Se nos EUA a opção de ingressar na corporação pode significar, de fato, uma ascensão profissional considerável, no Brasil os policiais de rua viram auxiliares de escritório, com 20 anos de espera por alguma promoção.

Ao contrário do sentido em que caminham as recomendações da ONU e os países europeus hoje, que apostam em gendarmarias nas áreas rurais e policiamento exclusivamente civil nas áreas urbanas, o Brasil insiste no argumento de que precisa de uma polícia mais poderosa do ponto de vista bélico para a vigilância e a proteção. Resta saber de quem. Da gente que não é.



Abraços,
Murilo

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A Função Social da Vida

Nas políticas públicas sobre o aborto no Brasil, o que está em jogo não é a vida do feto. E o juiz é todo mundo menos quem o carrega


Sancionada sem vetos pela Presidente da República Dilma Rousseff, em 1º de agosto, a Lei 18.845/2013, que tramitava no Congresso desde 1999, finalmente delega ao Estado uma série de obrigações em relação a vítimas de violência sexual. Dentre elas, determina que os hospitais forneçam às violentadas atendimento especializado e multidisciplinar: diagnóstico das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso e informações sobre direitos legais. Ainda, a lei determina que os hospitais forneçam as chamadas "pílulas do dia seguinte", como parte do direito à anticoncepção de emergência.

Ainda que a determinação soe como novidade diante do alto número de protestos encabeçados pelos movimentos "Pró-Vida" e "Pró-Família" (já falei um pouco sobre a náusea que esses movimentos provocam), o aborto em caso de estupro no Brasil é legal desde 1940. O único dispositivo acrescido à normativa consiste no fornecimento das pílulas, o que, de acordo com a Igreja, facilita a prática do aborto. De acordo com nota da CNBB, a distribuição favorece casais que não se preveniram na hora do coito - mas usar camisinha não era proibido? Enfim...

Não é de hoje que a discussão sobre o aborto toma as mídias como um todo. E também não é de hoje que as instituições religiosas tomam frente nela. Mas hoje é, talvez, o momento mais crucial na elaboração de políticas públicas que deem - e não substituam - voz às minorias.

Essa preocupação começa a fazer sentido cada vez mais alarmante à medida que as posições do poder público têm sido ocupadas por representantes de uma maioria ardida pra cacete. E quando digo maioria, atentem pro fato de que me refiro à maioria étnico-social, e não matemática. Por isso é possível dizer, por exemplo, que as mulheres são minoria, ainda que representem 51% da população brasileira e sejam, portanto, maioria numérica. Da mesma forma, não dá pra negar que os negros sejam minoria étnica, ao passo que representam 6,5% a mais do que os brancos na demografia racial do Brasil.

Na prática, não é difícil compreender o tamanho do estrago causado por essa confusão, causada pelo péssimo costume de entregar pautas de minorias nas mãos de maiorias muito pouco interessadas em transformações concretas em favor da diversidade - não é mesmo, Feliciano?

De qualquer forma, amanhã (28/09) é o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização do Aborto, e os rumos desta discussão são alarmantes em terras tupiniquins. Ao passo em que 1 a cada 5 mulheres já realizou algum aborto na vida e que uma mulher morre a cada dois dias no Brasil em decorrência de abortos inseguros, o Congresso Nacional hoje caminha no sentido da criminalização da prática:



PL 5.069/2013 - Encabeçada por Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e João Campos (PSDB/GO), a proposta tipifica como crime o "anúncio de meio abortivo", prevendo penas específicas para quem induz ao aborto.

PDC 42/2007 - A sugestão do deputado Henrique Afonso é de sustar a norma técnica de "prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes". Ou mais ou menos neste sentido: obrigar vítimas de estupro a darem à luz e, ainda, sem assistência. O projeto tem parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, elaborado pelo ex-deputado evangélico Henrique Afonso (PTB/RJ).

PL 4.703/1998 - Francisco da Silva (PPB/RJ) pretende transformar a interrupção da gravidez em crime hediondo, junto a tráfico de drogas e estupro.

RCP 21/2013 - Isso, os deputados João Campos (PSDB/GO) (esse é o mesmo que pretende revogar a decisão do Conselho Federal de Psicologia que proíbe psicólogos de tratarem a homossexualidade como doença) e Salvador Zimbaldi (PDT/SP) apresentaram o requerimento de uma CPI para investigar "a existência de interesses financeiros e internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil". 178 deputados assinam. Apenas 9 são mulheres.

PL 1.618/2013 - Roberto Brito (PP/BA) pretende criar um código de acesso telefônico para mulheres em situação abortiva (um "disque-aborto"). Quem estará do outro lado da linha? Eu não sei, mas o relator do projeto de lei é Secretário de Mobilização e Articulação da Frente Parlamentar Mista em Favor da Vida, Vice-Presidente da Frente Parlamentar Evangélica e Pastor da Igreja Evangélica Brasil Para Cristo. 

PEC 164/2012 - Eduardo Cunha e João Campos atacam novamente. O projeto pretende estabelecer a inviolabilidade do direito à vida no exato momento da concepção. Pingou, viveu.

PL 2.423/1989 - O projeto é velho, mas ainda tramita. Pretende tipificar o aborto como crime de tortura. O autor é o ex-senador Jamil Haddad (PSB/RJ).

PL 478/2013 - Este é o famoso projeto que institui o Estatuto do Nascituro. Proíbe o aborto em todos os casos, inclusive o terapêutico e o resultante de estupro. Além disso, criminaliza a prática como hedionda.



Das 34 proposições do legislativo federal com o tema "aborto", 31 caminham neste mesmo sentido.

Fruto em grande parte da tradição judaico-cristã, a vida parece muito mais do que um direito. Na verdade se tornou um dever tão cego quanto a obrigatoriedade do voto ou o serviço militar. De qualquer forma, tal qual a terra, a vida assume cada vez mais funções sociais, regulamentadas pela frágil - mas eficiente - máscara da proteção.

No Brasil, o índice de abortos é de 30 para cada 100 nascimentos. Um número extremamente alto, sobretudo para um país que ainda não conseguiu estabelecer parâmetros claros para a prática. Em países nórdicos, onde (como em 74% dos países no mundo) o aborto não é crime, são entre 15 e 20 abortos para cada 100 nascimentos. 

Não por coincidência, a figura da mulher é historicamente associada à natureza. Como se fosse ela fruto de uma continuidade inerte e o homem - esse sim - suscetível às transformações da história, como bom guardião da razão. Descende desse princípio a ideia de que cabe ao homem deliberar pelo seu futuro, assim como o seu presente e também o passado - desde pelo menos o Jardim do Éden, certo? 

Essa é uma das poucas questões que não deveriam ser debatidas nem pelo Estado, nem - e muito menos - pela Igreja. Defender o direito do aborto não significa instituir sua obrigatoriedade, tampouco ser favorável à prática abortiva em si. Quem é contrário ao aborto deveria lutar por políticas públicas de saúde e qualidade de vida que estimulem as mulheres a gestarem os filhos, e não por códigos penais que as coloquem atrás das grades.

Os números estão aí. E as mulheres não vão deixar de interromper a gravidez em função da condenação moral ou legal. A única coisa que está em jogo - e apitado por todo mundo menos elas - é o direito que elas têm de continuarem vivas depois do aborto.

Para quem tanto diz que a defende, os Movimentos Pró-Vida matam mais do que todos os abortos juntos. E vão continuar matando enquanto a barriga da mulher continuar sendo tratada como patrimônio público.



Abraços, 
Murilo

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

11/09: Segurança e Liberdade no Limiar do Século XXI

12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, como ainda enfrentamos o medo coletivo


Sociólogo de sensibilidade singular, o polonês Zygmunt Bauman diz que dois elementos fundamentais determinam a felicidade humana: liberdade e segurança. O que ele mesmo sabe, no entanto, é que a convivência simultânea dos dois é invariavelmente improvável, pelo menos de acordo com a experiência ocidental que se convencionou denominar de modernidade.

Se existe um grande legado deixado pelo 11 de setembro no mundo ocidental, trata-se da confissão coletiva de que cada vez menos importa esta tal liberdade, ao passo em que cada vez mais se luta pela segurança, a grande vedete do século XXI. Não por acaso, de todos os avanços na direção de políticas públicas internacionais de promoção humana e, portanto, liberdade, restou apenas a fumaça dos escombros do World Trade Center, implodido como um castelo de cartas em pleno centro nevrálgico do mercado econômico mundial numa terça-feira de 2001.

Especularam-se 60.000, 30.000, 10.000 e, por fim, 3.000 mortos foram confirmados no atentado que entrou pros anais da história como "o maior de todos os tempos". E pelo menos no quesito estético este dado é indiscutível. Com transmissão ao vivo simultânea em quase todos os países do mundo, os atentados de 11 de setembro nos EUA não inauguraram a espetacularização do terror, mas potencializaram como nunca um freak show na veiculação de imagens que nos levaram pro interior daquelas duas torres que se estatelaram no chão de Manhattan. Estadunidenses ou não, olhamos pro céu naquela manhã como se um boing fosse passar rasante pelas nossas cabeças e a correria se estendesse de Nova Iorque ao Capão Redondo, de Tóquio à Vila Osório.

Muito rapidamente, autoridades vieram a público para acalmar uma multidão de amedrontados que, no auge do desespero, recorreram a esconderijos de emergência que funcionam no Ocidente da tempestade na casa de Dorothy no Kansas aos ataques nucleares mais potentes. 

Nos EUA, a Lei Patriótica deu as cartas do que seria, afinal, a tônica deste século que enfim estava inaugurado. A grande força do mundo desde o fim da Grande Guerra assumia de vez que sem garantias de segurança, autonomia alguma fazia sentido. Tão orgulhosos dos princípios constitucionais que nortearam a construção da "terra da liberdade", aprovaram em tempo recorde um pacotão de medidas que cerceavam liberdades até então intocadas por uma das mais estáveis democracias do mundo contemporâneo.

Dentre outras medidas, a Lei Patriótica permite a emissão de ordem de busca sem que se apresente causa provável e a detenção por tempo indeterminado de suspeitos em locais de transição, como aeroportos e rodoviárias. De quatro para o executivo e as forças armadas, o Congresso americano voou como nunca na direção de um estado de guerra permanente.

Dos incontáveis presos confundidos com terroristas e "interrogatórios" promovidos pelos serviços de "inteligência" norte-americano e europeu, principalmente, restam histórias dramáticas de uma liberdade que dava sinais de falência em território familiar. Porque longe dali ela já havia morrido faz tempo.


Foi também num 11 de setembro, também numa terça-feira de manhã, que aviões sobrevoaram o Palácio La Moneda em Santiago depois da relutância do seu presidente, Salvador Allende, em deixá-lo depois de uma série de avisos vindos... de Washington. Foi com a guarnição da Casa Branca que o general Augusto Pinochet bombardeou não apenas o símbolo do poder no Chile, mas também o sonho de uma América Latina, pasmem, livre.

Eleito democraticamente em 1970, Allende nacionalizou terras e indústrias, enfrentou duma vez só a elite chilena e o primo rico das Américas, e pagou com a vida o preço de uma liberdade que o mundo ainda não estava autorizado a gozar. Em 11 de setembro de 1973, assinou com um tiro de AK-47 na própria cabeça a rendição que militares e americanos exigiam. 

A trajetória do Chile não é a única na América, muito menos no mundo: Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Peru, Paraguai, Vietnã, Coreia, Cuba e tantas outras nações, de grande ou pequeno porte, viveram experiências similares de usurpação de liberdade baseada numa segurança tão justificável quanto os mais de 200 mil mortos pela "Guerra ao Terror" do nosso tempo.

12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, o 11 de setembro de 2013 nos convida para uma inflexão inevitável após exatamente 10 anos de invasão sobre o Iraque, justamente no momento em que se coloca na mesa a decisão de bombardear a Síria para retirar do poder a dinastia al-Assad, eleita, aliás, décadas atrás não pelos sírios mas pela Casa Branca que estendia os seus interesses ao mundo árabe desde a descolonização.

Depois de um ataque de armas químicas lançado contra os rebeldes que ameaçam o presidente que exerce o mandato desde 2000 - e até agora sem comprovação de autoria -, os escoteiros da segurança mundial preparam nova intervenção que tem tudo para soar mais uma vez desastrosa. 

Em março de 2003, quando clarões de luz cortavam os céus do Iraque durante a madrugada que mudou os rumos da história do país, o principal argumento da invasão - e que ainda convencia - era a manutenção de armas de destruição em massa pelo governo Hussein. Antigo aliado de Washington, o líder sunita agora fugia como rato numa caçada que terminou quase um ano depois, num buraco perto de sua cidade natal.

As armas de destruição em massa nunca foram encontradas. Mas isso não impediu que, 10 anos depois do início da intervenção, 190 mil pessoas fossem contabilizadas mortas na operação. Deste montante, quase 140 mil são civis. 4,5 mil são militares norte-americanos e 3,5 mil são contratados. As forças de segurança do Iraque perderam mais de 10 mil vidas. Morreram ao todo mais de 300 jornalistas e prestadores de serviços humanitários. E estes são apenas os números oficiais registrados. Os reais provavelmente nunca saberemos.

Já são mais de 2,2 trilhões de dólares gastos num projeto que tinha tudo pra ser abortado com a eleição de Barack Obama: o melhor discurso, as melhores propostas, e certamente a maior esperança. Desde a sua eleição em 2008, perdeu a queda de braço com o Congresso e hoje não tem dificuldades em assumir que não deu conta de construir um novo conceito de liberdade, este que permite que as pessoas sejam... livres. Não fechou Guantánamo, não deixou o Iraque, não retirou o apoio a Israel contra a Palestina e hoje é protagonista de um dos maiores escândalos de espionagem pós-Guerra Fria, além de reivindicar o direito de intervir sobre um mundo árabe em caos.

Me lembro perfeitamente daquele 11 de setembro. O medo que senti era completamente diferente dos que normalmente me atormentavam como garoto: o valentão da escola, o chinelo da mãe ou os sapos que apareciam no quintal. Todos eles podiam ser enfrentados com recursos simples de proteção. Mas nem o diretor, nem a vó, nem o estilingue guardado no baú afastam o medo de aviões que podem a qualquer momento atingir um alvo tão comum como prédios comerciais de uma grande cidade.

O medo que senti não foi isolado. Todo mundo sentiu. E assim como não encontrei ninguém suficientemente capaz de me proteger contra ele, todo o Ocidente não encontrou. É neste momento que a liberdade está autorizada a descansar enquanto a capa defensora do Estado anuncia que os aeroportos estão fechados, você será revistado, retirado do show de sua cantora favorita, e ninguém mais se mexe porque uma caixa de sapatos em frente à Assembleia de Deus pode guardar uma bomba.

Neste caso, tudo bem não ser feliz. E muito menos livre. Nos entregamos à segurança de tal forma que a mesma liberdade que tanto desejamos se tornou a principal inimiga da felicidade que hoje, mais do que nunca, afasta seus dois elementos fundamentais constitutivos com a mesma naturalidade com que uma invasão é chamada de guerra.

Se Bauman está certo, estamos tão seguros quanto livres.

Abraços, 
Murilo  


domingo, 23 de junho de 2013

A Quem Pertence "A Voz do Povo"?

Como os meios de comunicação se apropriaram da onda de protestos no Brasil

por MURILO CLETO



Muitas memórias ficaram eternizadas dos tempos de graduação. Nos corredores do 2º piso do Bloco B da Universidade Tuiuti do Paraná, teoria, cornetagem e algumas tachinhas fincadas no teto compunham um ambiente nem tão exótico pra uma Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes. Mas por incrível que pareça, foi no aperto de uma das salas ao final deste corredor que uma das lembranças mais vívidas destes tempos marcou como poucas nestes 25 anos e alguma coisa de vida.

Era um dos primeiros encontros de orientação com o professor - hoje doutor - Clóvis Gruner. Fama de escroto, dava os trabalhos mais complexos e fazia as piadas mais ácidas sobre direita, esquerda, meio, tanto faz. Ainda meio nervoso, comecei a bisbilhotar suas anotações no canto das páginas escritas no que um ano e meio depois seria minha monografia de conclusão de curso.

Normalmente prolixo, o professor Clóvis começou um tanto quieto, até que cravou: "vamos fazer um acordo? Você não usa o termo 'massa' quando for falar em 'meios de comunicação em massa'". Esperei alguma fração de minuto pra ver se a fala continuava - afinal era um acordo, e isso não me parecia um -, o que não aconteceu. Depois do silêncio constrangedor, meu nada piedoso orientador continuou a comentar o restante do conteúdo escrito e assim voltei pra casa pensando no que diabos aquilo significava. 

Me lembro de ficar matutando sobre o que usar no lugar de "meios de comunicação em massa" pra não queimar meu quase inexistente filme diante do melhor orientador que eu poderia ter na academia: "grandes meios de comunicação", "grande mídia", e alguns outros quase sinônimos.

Quase mesmo, porque muito embora fosse difícil compreender naquele momento o que o veto de fato significava, foi só o tempo - e a pesquisa - que me mostrou que por "massa" o máximo que eu deveria entender era o que ensinava a tradição culinária italiana. Muito tempo passou depois deste encontro, e muitos outros vieram depois deste, mas a dificuldade em encontrar sinônimos pra definição que me atraía tinha muito mais a ver comigo mesmo do que com aquilo que eu estudava.

Na época, eu procurava entender um pouco melhor como os meios de comunicação em massa atuaram nas eleições presidenciais de 1989 no Brasil, pela primeira vez desde o golpe militar em 1964. Já era costume comum dizer que estas eleições foram manipuladas, ou melhor, que o povo brasileiro foi manipulado pela mídia em favor de Fernando Collor de Melo. 

O resultado da pesquisa, evidentemente, não foi bem esse. Mas a experiência da graduação me trouxe como lição ainda a questão da tal massa - manipulada ou não. 

"A voz do povo é a voz de Deus"

Não é a primeira vez que manifestações mais ou menos espontâneas têm sua voz roubada por interesses distintos. Os protestos que têm ocorrido por todo o Brasil e já se estendem há mais de duas semanas parecem mais um exemplo desta complicada relação entre voz e poder. Ainda que em tese o discurso preceda a ação, é muitas vezes a ação que o motiva e, ainda, que o conduz. 

Quando caiu a Bastilha em julho de 1789 e a França deu origem à revolução que teoricamente fundou a História Contemporânea, foram sans culottes e camponeses aqueles que deram a cara a tapa para as tropas de Luís XVI, mas foi a alta burguesia, representada pelos girondinos, que conduziu os poderes executivo e legislativo depois do enfraquecimento da monarquia absolutista.

Sem querer cair no tentador anacronismo, a experiência da Revolução Francesa revela o que todo mundo já está careca de saber: todo grito tem um dono. Mas o grande problema é que invariavelmente esse grito vem acompanhado de estratégias eficazes de marketing, como por exemplo a ideia de que "sim, isso é uma revolução popular", "aqui quem fala é o povo", "o meu partido é o Brasil", etc. 


Afinal, o que quer dizer "povo"? Algo como "massa", ou seja, quer dizer tudo ao mesmo em que diz nada. O que faz a concepção de "povo" é creditar às vozes uma legitimidade que transcende os limites locais, partidários, e por aí vai. Se "povo" significa "todo mundo", o silenciamento das vozes que destoam é legitimado pelo sentimento de "união".

Não causa muita surpresa o fato de que militantes dos partidos que justamente começaram as manifestações a partir da semana passada têm sido agredidos por militantes nacionalistas, que engoliram a causa com a bandeira do Brasil. Na Paulista, a bandeira do Movimento Negro foi queimada e na Augusta havia patrulha de neonazis espancando comunistas nos protestos. Em um bar da Turiassú, na Barra Funda, um sujeito me perguntou retórica e ironicamente, depois ver a cobertura ao vivo da TV: "agora os viados querem protestar pra dar também, é?" 

Hoje, aliás, só se fala em "babacas partidários" envolvidos nos protestos, como se a voz "do povo" fosse constituída por um uníssono, atrapalhado por sua vez por causas partidárias e reivindicações de minorias. 


Depois de um pequeno momento de desprezo pelas manifestações concentradas sobretudo em São Paulo pelo Movimento Passe Livre, os meios de comunicação (agora deu pra entender o motivo da proibição do "massa"?) passaram a insistir na legitimidade dos protestos, condicionada por sua vez a alguns itens: 1) eles precisam ser apartidários; 2) devem ser pacíficos; 3) têm que exigir o fim da corrupção.

Depois de condenar os protestos, os grandes meios de comunicação apanharam da opinião pública e apelaram para o discurso do óbvio. Teve jornalista dizendo que as manifestações "protestam contra tudo o que há de errado no país". Em pouco tempo, cenas do patético movimento Cansei, de 2007, vieram à tona como bala de borracha da Tropa de Choque - não mata, mas dói pra cacete. 


Como já disse o Papo de Homem, não há nada tão demagogo quanto movimentos "anti-corrupção". Eles funcionam a partir da mesma lógica dos movimentos "a favor da vida" e "em defesa da família". Isso porque, evidentemente, não existem movimentos a favor da corrupção ou contra a vida. O que este discurso clichê apresenta é um mecanismo interessante de colagem do movimento em questão contra alguma outra causa, nem sempre bem interpretada quando repelida. O que significa de fato o movimento "a favor da vida" é que o aborto deve continuar criminalizado e o que significa o movimento "em defesa da família" é que os homossexuais não podem ter seus direitos civis reconhecidos. Desta maneira, ganhar adeptos não é difícil quando a causa é nada além da intolerância coberta por uma camada de fofura.

Ainda hoje, recebi a notícia de que CRIANÇAS protestavam em frente ao Congresso. Oi? Quer dizer que crianças - isso, com 2 ou 8 anos - tomaram consciência dos problemas do país e foram ao Congresso exigir melhorias e - quem sabe - o veto à PEC 37? Aliás algumas delas foram entrevistadas.




Logo, a cobertura dos principais jornais insistia na mesma tecla, insuportavelmente pressionada a cada minuto de transmissões: "esses atos de vandalismo não representam a essência do movimento, que é pacífico e democrático", disse William Bonner, assim como quase todos os seus colegas em exercício. 

Por mais atraente que seja a ideia de "essência", o que ela nos apresenta é o que todo movimento minimamente articulado sente pavor: a sua domesticação. Talvez tenha convencido, mas parecia óbvio que os protestos não permaneceriam pacíficos, e nem sempre seriam democráticos.

A manobra desonesta dos meios de comunicação tem funcionado, e hoje as pessoas estão convencidas de que existe um inconsciente coletivo que por um lado legitima a onda de protestos e por outro contesta sua capacidade de dar voz à diferença.

O que resta de toda esta experiência é que se "O Gigante" acordou, ele é muito maior e mais diverso do que querem demonstrar os donos da sua voz nos meios tradicionais de comunicação e nas redes sociais. E que a ideia de "essência" é tão legítima quanto a de "povo" ou - ainda - "massa". 

Uma pena que o professor Clóvis não tenha orientado a todos eles.

Abraços, 
Murilo