segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Tiro de Guerra desativado em Itararé já não é mais tão indispensável

por MURILO CLETO

Foto: Prefeitura de Itararé


Há poucos dias a prefeitura de Itararé anunciou a suspensão das atividades do Tiro de Guerra, responsável aqui pela manutenção do serviço militar obrigatório no município. Suspensão porque, segundo a administração, é possível que o serviço retorne após o exercício de 2016. Na verdade a medida soa emergencial, considerando a péssima situação orçamentária pro ano que vem. 

De acordo com informações da Secretaria de Finanças, os custos da instituição giravam entre 30 e 40 mil reais por ano. Não é nada assombroso, mas é preciso avaliar que o papel dela pro município já não é mais exatamente o mesmo que de outras épocas. E não convém aqui, nesta oportunidade, discutir a legitimidade de uma educação militarizada pra jovens sem expectativa alguma de seguir carreira no exército.

Enquanto alguns insistem que a medida integra um plano comunista de desarticulação do exército para implantação da ditadura bolivariana (sim, Itararé também é Brasil), muita gente lamentou a decisão considerando a importância da instituição para a educação dos adolescentes no município. Alega-se, não sem grau algum de razão, que encontra-se no exército uma oportunidade única de instrução disciplinar numa juventude por vezes desorientada e sem muitas perspectivas pro futuro.

Nesta percepção sobre o papel do exército há, claro, uma dosagem de saudosismo. E, como todo saudosismo, carregado por uma leitura um tanto idealizada do passado. Em sua maioria, hoje quem lamenta a suspensão das atividades do TG em Itararé tem entre 40 e 50 anos. No período que corresponde à sua idade de serviço, é importante considerar que, além do exército, não havia mais opção alguma de integração educacional e disciplinar, quando o abandono dos estudos no Ensino Médio (ontem colegial) era a regra, e não a exceção.

Hoje o município de Itararé conta com entidades como a Guarda Mirim, que também reproduz parte desta lógica disciplinar de ensino, além de um Ensino Médio ampliado e programas exclusivamente voltados a jovens em situação de vulnerabilidade. Se, de alguma forma, estas opções não estão à altura da importância que a atenção sobre a idade exige, está na hora de participar mais ativamente da organização das ações educativas no município. 

Não tem segredo.

Mas, mais uma vez é preciso destacar: até agora a prefeitura não se manifestou oficial e abertamente a respeito do assunto. Foi através do jornal O Guarani que a notícia passou a circular. Nenhuma nota em imprensa e site oficiais, nem nas redes sociais geridas pela administração. Ninguém pra dizer claramente o que o município pode oferecer pra jovens na faixa etária correspondente. Aí fica muito difícil.

Abraços, 
Murilo

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Amadou Hampâté Bâ: uma sabedoria ancestral

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


Meu avô explicou mais tarde que, se Tidjani tivesse permanecido naquele dia à sombra da grande acácia, e se a oração de ASR (momento da tarde quando o sol anuncia seu declínio) ali houvesse surpreendido, jamais teria se tornado chefe, nem fundado seu reino neste local. Certamente, esta não é uma lógica muito cartesiana. Mas para nossos anciãos, sobretudo para os “homens de conhecimento” (silatigui para os fulas, doma para os bambaras), a lógica apoiava-se em outra visão de mundo, em que o homem se ligava de maneira sutil e viva a tudo que o cercava. Para eles, a configuração das coisas em determinados momentos-chave da existência possuía um significado preciso, que sabiam decifrar. “Esteja à escuta”, dizia-se na velha África, “tudo fala, tudo é palavra, tudo nos procura comunicar um conhecimento...


Amadou Hampâté Bâ apareceu em minha lista de autores a serem lidos por acaso, em pesquisas aleatórias. Seu livro, Amkoulelel, o menino fula, consequentemente, veio parar no meu colo de paraquedas e acabou se tornando uma agradável surpresa.

O livro consiste, basicamente, no autor contando sua história até a fase em que começa a se tornar um adulto, conseguindo seu primeiro trabalho. Hampâté Bâ, contudo, não começa contando sua história a partir de si. No início do livro, o autor conta sobre sua linhagem familiar de uma maneira muito elucidativa, explicando fatos não apenas de sua família, mas também aqueles que envolveram a história da região em que nasceu – atualmente, o Mali. 

O autor tem suas primeiras lembranças, desconexas e breves, apenas na página cinquenta e cinco, enquanto começa a ter uma consciência maior do mundo apenas na página cento e vinte. Pode soar chato ou arrastado pensar em um livro onde a personagem principal entra tão demoradamente. Contudo, esta não é a intenção de Hampâté. Em sua narrativa, ele quer justamente mostrar um tipo de tradição que está se perdendo, e é por isso que escreve sua história como se estivesse narrando oralmente – como era costume em sua juventude. Seu livro pode parecer difícil, quase denso demais, porque não tem justamente a pressa do mundo de hoje, tudo se desenrola detalhadamente, com uma calma e paciência que raramente se testemunham em nosso mundo turbulento. 

E esses fatores tornam o livro do malinês extremamente rico – não apenas porque serve-se dos mínimos detalhes, mas também porque, para tanto, mostra os costumes através de explicações históricas e culturais muito ricas. E as explicações englobam costumes à mesa, guerras civis, religião, educação, circuncisão, obediência aos pais e por aí vai. De forma que, muito mais do que uma simples autobiografia, Bâ faz com que mergulhemos num determinado tempo e época que parece tão distante e tão ricamente diferente do qual temos hoje. Ler seu livro ao mesmo tempo em que se vive num mundo globalizado, com uma cultura cada vez mais comercial, dá um aperto, um medo do que pode vir pela frente – e, além disso, uma necessidade de parar no meio de toda essa correria e respirar demoradamente, contando até dez e ter paciência, olhar ao redor.

Com uma técnica puramente mnemônica, Hampâté realiza uma narrativa única, diferente daquilo que se lê normalmente. Há, no livro, uma mistura de antropológico, social, histórico e, ainda, literário. Inclusive, às vezes, lendo o livro, esquecia que era de fato o relato sobre uma vida real e mergulhava no livro como se fosse um belo romance – provavelmente pela maneira como é contado (sem esquecer o fatos de que é um cotidiano diferente, longínquo e quase inimaginável quando comparado ao mundo de hoje). 

E em tempos como os nossos também é importante notar os relatos de Bâ sobre a educação islâmica que teve ao longo de sua infância – até entrar na “escola dos brancos”, onde esse tipo de educação não acontecia. A imagem que se passa do islã é a de um lado humano que a religião trás – apesar de toda demonização que vem sofrendo hoje, não deixa de ser uma religião como qualquer outra, com elementos bons, ruins e, claro, passíveis de distorção. E depois da chocante notícia (não tão divulgada, claro), de um ataque terrorista no Mali no último dia vinte e um, Amkoullel, o menino fula, mostra-se um livro importante não apenas para que se veja o outro lado de uma religião que tem 1,5 bilhões de fiéis, mas também para que não esqueçamos da importância cultural que tem um país como o Mali. O terrorismo não vai em direção apenas a países como a França, mas também a outros cuja maioria é muçulmana (no Mali, eles representam 90% da população). A diferença estaria, a meu ver, na quantidade de atenção que se dispende para determinados lugares do planeta.

A edição brasileira cuja edição eu li, da Palas Atena, é de ótima qualidade, com bom papel e belas fotos no fim do livro. Vale a pena procurar uma edição pela internet não apenas pela boa qualidade da edição e do texto em si, mas também pela mensagem que o livro nos deixa: devemos olhar mais para o próximo, prestar atenção em outras culturas – que também merecem ter a atenção dos olhos do mundo. E, claro, andar devagar, sabiamente, diante de um mundo tão conturbado.


Ficha Técnica

TÍTULO: Amkoullel, o menino fula
AUTOR: Amadou Hampâté Bâ
NACIOLIDADE: Malinês
EDIÇÃO: Palas Atena (2003)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Não tem defesa

por MURILO CLETO

Foto: Wagner https://www.flickr.com/photos/wagnerphn/6134432987


No ano passado, a prefeitura de Itararé interrompeu uma sequência histórica de adiantamento da primeira parcela do 13º salário aos funcionários municipais. A medida gerou reações desproporcionais, considerando que não havia nada que obrigasse o executivo a realizar os pagamentos no mês de junho, como vinha acontecendo. Isso talvez se explique pelo fato de que boa parte do barulho foi realizado por quem sequer era funcionário, mas queria tumultuar. 

Em meio a tanta histeria, a verdadeira e legítima reclamação dos trabalhadores acabou passando despercebida: tudo bem não adiantar, mas não dá pra avisar assim, tão em cima da hora. 

Com a chegada de 2015, todo mundo já era capaz de prever que o adiantamento não viria. Mas, mais uma vez, o aviso veio em cima da hora em junho, acompanhado da promessa de que a primeira parcela do 13º seria paga em 20 de novembro. A promessa não apenas não foi cumprida como também desfeita em comunicado emitido no dia 19, só um dia antes.  Não tem desculpa. Não dessa vez.

Além disso, situação dos estagiários é similar a de funcionários todos os meses. Tão recorrente que os atrasos já não são mais nem novidade. É bem verdade que se, por um lado, o estágio não é vínculo empregatício, a remuneração é necessária inclusive, e muitas vezes, pra garantia da manutenção dos seus estudos. E o impacto dos atrasos é grave demais com as altas taxas de juros na atualidade. Mas, mais do que isso, o mesmo problema além do atraso: a comunicação, sempre urgente e improvisada.

Todo mundo sabe que a situação da prefeitura é calamitosa. Se não está nada bom pra governos federal e estaduais, pros municípios é ainda muito pior. Mas a crise também poderia ser uma oportunidade de articulação com população e quadro de funcionários, em grande medida porque já ficou bastante claro que a solução não vai vir de gabinetes fechados. Até aqui não veio. O orçamento participativo, grande promessa de campanha, é qualquer coisa menos uma realidade próxima. E ninguém sabe o porquê.

É natural que, depois de 2 anos insanos de mentiras e a atuação vergonhosa de uma oposição que nunca foi a Cristina mas a Itararé, o governo municipal evite o desgaste de um capital político que hoje sequer existe e faça anúncios negativos como este em cima da hora, acreditando talvez que o problema seja solucionado e a arrecadação aumente como por milagre pouco antes dos pagamentos. Mas agora o quadro está sério demais pra que o descaso continue persistindo. 

Descaso que, verdade seja dita, não é exclusividade dos funcionários de carreira, como muitos, sem saber, alegam. Há meses os comissionados têm recebido com atraso, frequentemente sem qualquer aviso. A ideia feita de que comissionados não são produtivos, comum no imaginário médio brasileiro, desconsidera que muitos abandonaram outras atividades pra assumir a gestão provisoriamente e precisam, portanto, tanto dos pagamentos quanto, pelo menos, da sensibilidade do gabinete.

Há muitos motivos pelos quais tantos boatos pululam acerca da gestão municipal em Itararé. Mas um deles, sem dúvida alguma, é a sua própria insistência em confirmá-los da pior forma possível: sempre em cima da hora, no improviso e sem qualquer capacidade comunicativa. Assim fica muito difícil frear outros.

Um desdobramento inequívoco disso é que as trapalhadas da administração têm servido de palanque pra charlatões de toda ordem. A maioria não tem ideia do funcionamento da máquina pública e diz apenas pra pagar. Não diz como nem por onde. O próprio legislativo, por onde passam as questões envolvendo arrecadação, majoritariamente ainda não aceitou a diplomação da prefeita em 2012 e segue firme em campanha pra 2016. E o fato de a gestão não ser capaz de reagir à altura deveria servir como ponto de inflexão. Até aqui não serviu. E não há mais quem acredite que algum dia vá servir.

Abraços, 
Murilo

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quem tem medo de Emma Bovary?

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA



Há alguns dias, relendo o sublime livro de Flaubert, Madame Bovary, deparei-me com um trecho já anteriormente grifado. Ei-lo: 

“Seus hábitos amorosos fizeram com que a Sra. Bovary mudasse logo suas maneiras. Seus olhares tornaram-se mais ousados, seu falar mais livre; cometeu mesmo a inconveniência de passear com o Sr. Rodolphe com um cigarro na boca, como se quisesse escarnecer do mundo; enfim, os que ainda não duvidavam não duvidaram mais quando a viram, um dia, descer da Hirondelle com o corpo apertado num colete, à moda masculina; e a sra. Bovary mãe, que após uma assustadora cena com o marido, viera refugiar-se na casa do filho, não foi a burguesa menos escandalizada. Muitas outras coisas lhe desagradaram: em primeiro lugar, Charles não seguira seus conselhos quanto à interdição dos romances; em seguida, o estilo da casa desagradava-lhe; permitiu-se fazer observações e houve atrito, sobretudo uma vez, a propósito de Félicité.”

À luz de um mês tão conturbado para as mulheres brasileiras como foi o mês de outubro, encaro este trecho. Nele, o livro já percorreu a história de Emma Bovary e de suas desilusões. A protagonista está envolvida, então, em seu primeiro caso, com Rodolphe.

Contudo, quando passo meus olhos novamente por essa beleza de texto, noto que Emma não incomoda no romance e não incomodou fora do romance apenas porque era adúltera (Flaubert, ao escrever o livro, foi julgado por atentado à moral e à religião). Se o problema se resumisse a isso, é possível que Emma encontrasse uma saída que não o seu fim trágico.

O que incomodou e incomoda em Emma Bovary é seu lado, digamos, quixotesco. A personagem não trai pelo simples desejo de trair, mas sim porque compara sua realidade com outras (livrescas, mas que não deixam de ser imagináveis). Em suma: na sua essência, ela questiona a realidade em que está imersa. Vai contra o que as burguesas e burgueses da época viam com bons olhos. 

O que incomoda em Emma Bovary não é apenas o fato de ela ter se cansado de seu marido e, então, traí-lo. Não. O que incomoda em Emma Bovary é que, como diz o narrador, ao se portar como se porta, é “como se ela quisesse escarnecer do mundo”. Eis sua maneira de confrontar uma realidade a qual, no fundo, não se adequa. Porque Emma não apenas trai o marido, Emma passa com um cigarro na boca, Emma usa colete à moda masculina, Emma enfrenta e contraria a mãe de seu marido. Emma não se cala, Emma não se reprime, Emma não se contenta em ser parte passiva de uma sociedade que é naturalmente opressora, que entra em pane quando uma mulher ameaça abalar barreiras tão duramente estabelecidas.

Como já disse, pauto-me no hoje, no meu presente (e aí estaria o porquê de Madame Bovary ser um clássico: até hoje encontramos questionamentos neste maravilhoso livro, até hoje ele dialoga conosco). Não acredito que Flaubert tinha intenção de representar uma figura feminina imersa em alguma espécie de luta social engajada. Contudo, Emma, que permanece em seu mundinho de província, escandalizou uma sociedade que não estava acostumada a ver mulheres que “saem das rédeas”. Neste pequeno trecho, encontro uma chama incandescente dentro da personagem, algo notável e sublime à sua maneira. 

E apesar dos rumos que a história toma, poderíamos dizer que Emma, assim como Dom Quixote, teve momentos em sua vida que foram verdadeiras apoteoses de felicidade – pequenos momentos que podem ter sido tão intensos como várias “mães de Charles” nunca tiveram. E depois de ter provado esse tipo de sentimento, Emma, de alguma maneira, solta suas amarras, torna-se um pouco mais livre. Não é à toa que, em um dado momento da narrativa, Rodolphe exclama: “Será possível pedir a tal tipo de mulher que se conforme?”

Emma Bovary não se conforma. Por isso, assustou a sociedade no século XIX e assustaria muito conservadores de hoje - assim como Simone de Beauvoir impressionou muitas pessoas de sua época e ainda as impressiona hoje (vide a enorme repercussão em que ela foi envolvida por ter caído na prova do ENEM). 

O fato é que ambas as figuras não alarmam porque estão erradas, não amedrontaram porque são loucas. Assustam porque, em algum momento, tomaram as rédeas de seu próprio ser e foram atrás do que queriam (mesmo sendo mulheres). É isso que assusta nossos compatriotas machistas de hoje. Mas, infelizmente, para eles, nós chegamos cada vez com mais firmeza, nós estamos cada vez maiores e mais unidas. Desde o século XIX, estamos cada vez mais dispostas a fumar o que quisermos, vestir o que quisermos. Leremos, contestaremos e, claro, seremos donas de nós mesmas. Naturalmente, os opressores entram em crise, tomam uma posição de defesa. (E aí entram as apelações, acusações e distorção de um discurso que pensam que conhecem.)

Madame Bovary é lido assiduamente até hoje porque é, no mínimo, instigante. Simone de Beauvoir é reconhecida no mundo todo e cai no ENEM, por exemplo, porque grande expoente de uma voz que as mulheres vêm criando. Está dado o recado: nós vamos lutar por nossos direitos e por nossa liberdade. Nós conhecemos nossa verdadeira força interior e nós não iremos embora. Acostumem-se. Ou, então, terão que nos engolir.