quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Amadou Hampâté Bâ: uma sabedoria ancestral

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


Meu avô explicou mais tarde que, se Tidjani tivesse permanecido naquele dia à sombra da grande acácia, e se a oração de ASR (momento da tarde quando o sol anuncia seu declínio) ali houvesse surpreendido, jamais teria se tornado chefe, nem fundado seu reino neste local. Certamente, esta não é uma lógica muito cartesiana. Mas para nossos anciãos, sobretudo para os “homens de conhecimento” (silatigui para os fulas, doma para os bambaras), a lógica apoiava-se em outra visão de mundo, em que o homem se ligava de maneira sutil e viva a tudo que o cercava. Para eles, a configuração das coisas em determinados momentos-chave da existência possuía um significado preciso, que sabiam decifrar. “Esteja à escuta”, dizia-se na velha África, “tudo fala, tudo é palavra, tudo nos procura comunicar um conhecimento...


Amadou Hampâté Bâ apareceu em minha lista de autores a serem lidos por acaso, em pesquisas aleatórias. Seu livro, Amkoulelel, o menino fula, consequentemente, veio parar no meu colo de paraquedas e acabou se tornando uma agradável surpresa.

O livro consiste, basicamente, no autor contando sua história até a fase em que começa a se tornar um adulto, conseguindo seu primeiro trabalho. Hampâté Bâ, contudo, não começa contando sua história a partir de si. No início do livro, o autor conta sobre sua linhagem familiar de uma maneira muito elucidativa, explicando fatos não apenas de sua família, mas também aqueles que envolveram a história da região em que nasceu – atualmente, o Mali. 

O autor tem suas primeiras lembranças, desconexas e breves, apenas na página cinquenta e cinco, enquanto começa a ter uma consciência maior do mundo apenas na página cento e vinte. Pode soar chato ou arrastado pensar em um livro onde a personagem principal entra tão demoradamente. Contudo, esta não é a intenção de Hampâté. Em sua narrativa, ele quer justamente mostrar um tipo de tradição que está se perdendo, e é por isso que escreve sua história como se estivesse narrando oralmente – como era costume em sua juventude. Seu livro pode parecer difícil, quase denso demais, porque não tem justamente a pressa do mundo de hoje, tudo se desenrola detalhadamente, com uma calma e paciência que raramente se testemunham em nosso mundo turbulento. 

E esses fatores tornam o livro do malinês extremamente rico – não apenas porque serve-se dos mínimos detalhes, mas também porque, para tanto, mostra os costumes através de explicações históricas e culturais muito ricas. E as explicações englobam costumes à mesa, guerras civis, religião, educação, circuncisão, obediência aos pais e por aí vai. De forma que, muito mais do que uma simples autobiografia, Bâ faz com que mergulhemos num determinado tempo e época que parece tão distante e tão ricamente diferente do qual temos hoje. Ler seu livro ao mesmo tempo em que se vive num mundo globalizado, com uma cultura cada vez mais comercial, dá um aperto, um medo do que pode vir pela frente – e, além disso, uma necessidade de parar no meio de toda essa correria e respirar demoradamente, contando até dez e ter paciência, olhar ao redor.

Com uma técnica puramente mnemônica, Hampâté realiza uma narrativa única, diferente daquilo que se lê normalmente. Há, no livro, uma mistura de antropológico, social, histórico e, ainda, literário. Inclusive, às vezes, lendo o livro, esquecia que era de fato o relato sobre uma vida real e mergulhava no livro como se fosse um belo romance – provavelmente pela maneira como é contado (sem esquecer o fatos de que é um cotidiano diferente, longínquo e quase inimaginável quando comparado ao mundo de hoje). 

E em tempos como os nossos também é importante notar os relatos de Bâ sobre a educação islâmica que teve ao longo de sua infância – até entrar na “escola dos brancos”, onde esse tipo de educação não acontecia. A imagem que se passa do islã é a de um lado humano que a religião trás – apesar de toda demonização que vem sofrendo hoje, não deixa de ser uma religião como qualquer outra, com elementos bons, ruins e, claro, passíveis de distorção. E depois da chocante notícia (não tão divulgada, claro), de um ataque terrorista no Mali no último dia vinte e um, Amkoullel, o menino fula, mostra-se um livro importante não apenas para que se veja o outro lado de uma religião que tem 1,5 bilhões de fiéis, mas também para que não esqueçamos da importância cultural que tem um país como o Mali. O terrorismo não vai em direção apenas a países como a França, mas também a outros cuja maioria é muçulmana (no Mali, eles representam 90% da população). A diferença estaria, a meu ver, na quantidade de atenção que se dispende para determinados lugares do planeta.

A edição brasileira cuja edição eu li, da Palas Atena, é de ótima qualidade, com bom papel e belas fotos no fim do livro. Vale a pena procurar uma edição pela internet não apenas pela boa qualidade da edição e do texto em si, mas também pela mensagem que o livro nos deixa: devemos olhar mais para o próximo, prestar atenção em outras culturas – que também merecem ter a atenção dos olhos do mundo. E, claro, andar devagar, sabiamente, diante de um mundo tão conturbado.


Ficha Técnica

TÍTULO: Amkoullel, o menino fula
AUTOR: Amadou Hampâté Bâ
NACIOLIDADE: Malinês
EDIÇÃO: Palas Atena (2003)

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