quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Estatuto da Família: um retrocesso que vai além da homofobia

por SANDRO CHAVES ROSSI



Na última quinta-feira (24/09), uma comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou o texto principal do projeto, que define família como a união entre homem e mulher. A comissão aprovou o relatório por 17 votos favoráveis e 5 contrários, mas quatro destaques ao texto ainda precisam ser aprovados. Logo depois da votação ser concluída, o projeto segue para o Senado sem precisar ser votado pelo plenário da Câmara. Porém, os deputados podem apresentar recurso para pedir que o texto seja votado pelo plenário antes de ir para o Senado. É o que os contrários ao texto do Estatuto da Família querem.

Mas o que tem de mais no texto do Estatuto da Família? Sem focar no objetivo claramente segregador do autor do Estatuto da Família, deputado federal Diego Garcia (PHS-PR), e dos defensores dessa medida, Marco Feliciano (PSC-SP), Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Pastor Silas Malafaia, o significado imediato dela é: somente a família formada por homem e mulher e filhos. Pelo seu artigo 2º, o Projeto de Lei estabelece que as famílias formadas por um casal heterossexual são as únicas dignas de proteção e direitos, afirmando no texto que “define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. O que, de fato, exclui famílias constituídas por casais homossexuais. 

A grande questão é que essa ofensiva contra os grupos LGBT que animou os setores mais conservadores da sociedade e do Congresso, foi uma ofensiva muito mais abrangente do que ela realmente parece. Limitar o conceito de família a apenas um casal heterossexual e seus filhos não excluiu somente casais homossexuais, mas também uma grande parcela da população que teve e tem sua família composta por mães e pais solteiros, ou até mesmo em outros diversos casos, que não são raros, quando a criação parte de outros membros da família. Por mais que o conceito de família previsto pelo Estatuto abranja uma parte majoritária da sociedade, ele atingiu muita gente que o apoia e, por mais irônico que isso pareça, a maioria ainda não percebeu isso. Não sei se o autor do projeto também teve a intenção de excluir pais solteiros, se teve, não foi surpresa nenhuma, se não teve, foi um tiro muito bem dado no próprio pé.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular em maio desse ano revelou que o Brasil tem 67 milhões de mães. Dessas, 31% são solteiras e 46% trabalham. Com idade média de 47 anos, 55% das mães pertencem à classe média, 25% à classe alta e 20% são de classe baixa. Pouco mais de um terço dos filhos adultos (36%) ajudam financeiramente as progenitoras. Entre as mães do século passado, 75% acreditavam que uma pessoa só pode ser feliz se constituir família. O percentual de verdade dessa premissa cai para 66% para as mães da nova geração. A pesquisa não revela os motivos que levaram as mães a criarem seus filhos sozinhos, talvez porque haja uma grande diversificação desses motivos, mas não é difícil de deduzir quais sejam esses motivos, como por exemplo, talvez o mais comum deles: o abandono paterno.

Com base no Censo Escolar de 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. Essa pesquisa se baseia em dados de 2011, mas que, em sua última atualização, feita ainda nesse ano, não mostrou nenhuma diminuição desse número. O programa "Pai Presente" do CNJ, que facilita o reconhecimento de paternidade no país, já existe há quase cinco anos e conseguiu o reconhecimento de apenas 40 mil casos, o que é muito pouco comparado ao número milionário de crianças sem registro paterno. É bom deixar claro que esse é só um exemplo de um problema social e familiar que não se encaixa no Estatuto da Família proposto pela ala conservadora do Congresso e que acarreta inúmeros problemas no desenvolvimento social do país, porém é sempre bom lembrar que as mulheres também sofrem com as políticas conservadoras de um grupo hipócrita que faz panfletagem ideológica para angariar votos.

Ainda sobre a violação dos direitos das mulheres, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) foi quem apresentou a emenda ao Projeto de Lei nº 6.583/2013, para incluir a ideia de que a vida começa na concepção:

“Art. 3º É dever do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à vida desde a concepção, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.”

O problema nisso é que, segundo especialistas, a inclusão do “direito à vida desde a concepção” pode ser uma ameaça ao direito ao aborto nas três circunstâncias em que é legal, ou seja, nos casos de estupro, anencefalia e risco de morte. Além disso, torna ainda mais difícil o processo da legalização do aborto no Brasil, até a 12ª semana de gestação, como é em outros países. Portanto, se engana muito quem acha que o Estatuto da Família restringe os direitos somente da comunidade LGBT, ele restringe outras formas de família e, além disso, retira direitos que custaram muito para serem conquistados e dificulta ainda mais a consolidação de outros novos.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Ondjaki: uma brisa luandense num dia de calor

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

“Sou irmão das estrelas, acendo as primas delas aqui na terra. Lá nos céus universais, elas me cumprimentam com brilhos sorridos; ou serão sorrisos brilhantes? Toda estrela é luz bonita que nunca soube descansar de alegrar a noite. Toda noite é palco de estrelas, candeeiros e olhos acontecerem”.

Hoje, vamos falar (com prazer) de Ondjaki. Nascido em Luanda, em 1977, ele é uma figura no mínimo interessante. Formado em sociologia, terminou em 2010 seu doutorado em estudos africanos, na Itália. Além disso, o luandense já conquistou, por aqui, o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Juvenil. E há, ainda, a honra de termos o autor em nossas terras: atualmente, ele reside no Rio de Janeiro.

Pensar em Ondjaki é a mesma coisa que recordar a célebre declaração de JD Salinger: “O que realmente me arrebata é um livro que, quando termina-se a leitura, você deseja que o autor que o escreveu fosse um grande amigo seu e que você pudesse ligar para ele quando sentisse vontade. No entanto, isso não acontece com frequência”.

Eu não sabia exatamente o que esperar quando me deparei com seu livro de contos, e se amanhã o medo, publicado em 2005. Apesar da belíssima edição feita pela Língua Geral (minha única certeza até então), o fato de não haver expectativas deixou a surpresa ainda mais agradável. 

Ondjaki sabe pintar belos quadros. Cada um de seus contos (cenas, pequenos acontecimentos) são escritos com uma delicadeza ímpar. O autor vai fundo. Atinge aquele tipo de escrita que toca e sensibiliza, te transportando para outra realidade de uma maneira tão brilhante que arranca suspiros dos mais duros. 

O autor luandense sabe escrever, eis um fato. Em língua portuguesa, atualmente, difícil encontrar algo tão bem trabalhado, tão comovente e honesto – dando o efeito da leveza de uma brisa num dia de calor. E, afinal de contas, não foi Hemingway quem disse (acertadamente) que uma boa história precisa de alguns destes atributos para ser boa?

O livro e se amanhã o medo é dividido em duas partes (partes estas inspiradas em A Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar): horas tranquilas e conchas escuras. A primeira traz histórias mais leves, enquanto que na segunda o clima já é de mais tensão. De qualquer maneira, o panorama final é incrível, a vista é única. E, de fato, o autor consegue criar um belo livro, montado uma espécie de quebra cabeça cujas peças são justamente suas pequenas obras primas. Assim, atinge a excelência em diversos contos: coração de porco, a confissão do acendedor de candeeiros, a esquina, a filha da sogra, madrugada etc. 

Fico feliz quando leio livros como este de Ondjaki. Não apenas pelas belas doses de reflexão, mas também por minha alegria ao ver algo tão bem escrita na nossa língua. Ondjaki e seus contos conseguem arrancar sorrisos discretos e verdadeiros. E só por isso já basta ler um livro seu. 


FICHA TÉCNICA

Título: e se amanhã o medo
Autor: Ondjaki
Nacionalidade: luandense
Edição: Língua Geral (2010) e Caminho (2005 e 2010)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O que Gilmar Mendes não disse

por SANDRO CHAVES ROSSI



No último dia 16, o Supremo Tribunal Federal voltou a julgar a permissão para doações de campanha por parte de pessoas jurídicas. O julgamento foi retomado após Gilmar Mendes ter liberado, na semana passada, após um ano e cinco meses depois, seu voto sobre o assunto, permitindo que o caso seja retomado pelo plenário. A ação judicial proposta pela OAB sobre a doação eleitoral por empresas foi a julgamento em 2013 no STF, mas em abril do ano passado foi interrompida por Gilmar Mendes. Quando o julgamento estava 6 a 1 pelo fim das doações, ele pediu vista - que nada mais é do que um tempo para que o juiz possa analisar melhor o processo para não ter dúvidas sobre o seu voto -, e então a sessão foi suspensa.

A questão é que na volta do julgamento, Gilmar Mendes foi um sofista do nível mais baixo até então visto no STF, não se limitando apenas a argumentos, mas também a acusações rasas e atitudes que mancham o debate político em uma das esferas mais incisivas da sociedade. Mendes começou seu discurso, que demorou 4 horas, com os seguintes argumentos:

Quer dizer, voltamos ao status pré-Collor, em que se tinha doação só de pessoas privadas. O Brasil sempre teve isso. É um amontoado de caixa dois. Que essa era a realidade.
Nós temos dificuldades na situação atual às vezes de fiscalizar 20 empresas – doadoras, etc e tal. Agora imagine o número de doadores pessoas físicas com esse potencial: sindicatos, igrejas, organizações sociais, todas elas, podendo ter dinheiro que vai ser distribuído por CPF.

Logo após isso, Mendes armou uma ofensiva contra todos que o questionaram, principalmente em cima da OAB e do PT. Ao questionar a decisão da OAB em proibir a doação de empresas para campanhas políticas, Gilmar Mendes disse que "ação da OAB contra doação empresarial teve como objetivo envolver STF em trama, em conspirata pró-PT". Além do mais, Gilmar explica "conspiração": OAB fez evento com participação do hoje ministro Barroso e propôs ação no STF para depois mudar sistema eleitoral. Ele ainda enfatiza que "essas ideias coincidiam por inspiração divina com os propósitos do PT e do governo". Basicamente, o que Gilmar Mendes fez foi acusar OAB e PT de conspiração com participação de Barroso e ainda dizer, sem prova nenhuma, que o partido tem dinheiro oculto.

Por fim, Gilmar Mendes teve uma atitude inesperada, ele deixou o plenário depois que Lewandowski permitiu que um advogado fizesse a defesa da OAB de suas acusações. Gilmar Mendes diz que o advogado não poderia falar, Lewandowski interveio e disse que Mendes falou por horas e que devia dar espaço para que o advogado também falasse, ao que Gilmar Mendes responde: "mas eu sou ministro e ele é advogado!". Então se levantou e abandonou a sessão.

Poderíamos discutir a influência dos mercados na democracia, a sua importância e as suas implicações, porém deixaremos isso para depois - fica como ideia para um próximo texto, talvez. O que nós temos que lidar é com a realidade que vivemos hoje no nosso sistema político que sempre sofreu influência do capital privado dos mercados e as consequências que eles trouxeram para a democracia até hoje. Empresas que têm por instinto natural visar o lucro, dificilmente se importam com as implicações que tais atos causam na democracia brasileira, é claro que não devemos generalizar, mas há sim um grande interesse de boa parte desses empresários em usar o aparato estatal para garantir seus ganhos.

A Lava Jato evidencia isso cada vez mais. É preocupante que não se veja problema algum quando alvos da Lava Jato doaram cerca de R$ 109 milhões só para Dilma e Aécio nas últimas eleições de 2014. Esse valor foi destinado a candidatos e não partidos. Quando o assunto é partidário, temos um dado ainda mais preocupante: empreiteiras da Lava Jato doaram R$ 277 milhões para 28 dos 32 partidos Oito empresas investigadas pela PF financiaram quase todas as siglas do país em 2014, sem distinção entre governistas e oposicionistas.

Há influência do capital dos mercados não pára por aí, a cada eleição cresce o número de empresários que compõem as bancadas do legislativo federal, hoje cerca de 280 deputados são empresários, maior número até então, isso sem contar outros políticos que se elegeram com dinheiro de empresários para proteger os interesses dos mesmos, é o caso do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Cunha teve uma das campanhas mais caras para o legislativo no ano de 2014, declarou no TSE ter recebido R$ 6,8 milhões de doações de empresas, dentre elas estão empresas do ramo de exploração de minérios, bebidas, planos de saúde e telecomunicações.

Há quem ache tudo uma grande coincidência, mas as pautas defendidas por Eduardo Cunha nesse ano foram todas visando o favorecimento dos empresários, como a terceirização do trabalho, que permite a empresa contratar um empregado sem seguir a CLT; a PEC 451 que visa diminuir os recursos federais repassados ao SUS e a aprovação na doação de empresas para campanhas eleitorais, esta última votada duas vezes através de uma manobra irregular, mas que parece não ter relevância para Eduardo Cunha. Além dessas pautas, Cunha também disse que a regulamentação da mídia, algo que é de suma importância para a democracia brasileira, só será votada "por cima do seu cadáver". O que Gilmar Mendes não disse nessa última quarta-feira, está sendo dito por Eduardo Cunha desde o começo do ano: empresa não faz doação, faz investimento.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Comissão de recursos do PT adverte publicamente o vereador Willer

Decisão mantém em aberto a situação do político no que diz respeito às próximas eleições. A definição pode estar nas mãos da presidenta Dilma

por MURILO CLETO

Foto: Câmara Municipal de Itararé


Conforme manifestação apresentada no último dia 24, A Comissão de Recursos do Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores decidiu advertir publicamente o vereador itarareense Willer Costa Mendes depois da reclamação apresentada pelo Diretório Municipal diante da postura do legislador frente ao poder executivo, comandado pela sigla. De acordo com o documento, o legislador está proibido de se manifestar em nome do partido a respeito de qualquer questão que o envolve. Na prática, no entanto, a atividade parlamentar continua normalmente em vigor.

A decisão mantém em aberto a situação de Willer no que diz respeito às próximas eleições em 2016. Isso porque, se permanecer no partido, o vereador não será lançado, por razões óbvias, à reeleição. Se for desligado por vontade própria, deve perder o mandato em vigor, considerando o entendimento da Justiça Eleitoral de que a cadeira pertence à coligação e não ao político. Por isso, há quem aposte na hipótese de que a vontade do vereador era de ser expulso do partido, o que poderia permitir a transição para outra sigla sem a ameaça de perda do mandato.

Seja como for, a lei eleitoral em vigor determina que, para lançar candidatura, o proponente precisa ter no mínimo um ano de filiação. Portanto, o prazo máximo para uma transição seria o próximo dia 2 de outubro. Isso, claro, se a presidenta Dilma não sancionar até esta data a minirreforma eleitoral aprovada pelo Congresso e que reduz esse prazo para apenas 6 meses. A tendência é a do veto, considerando a posição da bancada do partido diante do conjunto de propostas.

Confira, na íntegra, a decisão da comissão:

A Comissão de Recursos, PT SP, reunida em 24 de agosto de 2015, em sua sede estadual, na Rua Abolição, 297 – Bela Vista, São Paulo/SP em face do relatório da Comissão de Ética e Disciplina do Diretório Municipal PT Itararé, encaminhado ao Diretório Estadual PT SP pela Comissão Executiva Municipal e a NÃO APRESENTAÇÃO das Contra Razões pelo Vereador Willer Costa Mendes e considerando o Art.70 do Estatuto do PT que diz "O partido concebe o mandato como partidário, e os integrantes das Bancadas nas Casas legislativas deverão subordinar sua ação parlamentar aos princípios doutrinários e programáticos, às deliberações e diretrizes estabelecidas pelas instâncias de direção partidária, na forma deste Estatuto”, por UNANIMIDADE decide: aplicar ao Vereador Willer Costa Mendes as penas de: ADVERTÊNCIA PÚBLICA com base no Art. 228, inciso I e SUSPENDER OS DIREITOS POLÍTICO- PARTIDÁRIOS DO VEREADOR por 90 (noventa) dias a partir da data do recebimento da notificação via AR, conforme Art. 228, inciso IV, § 4º, por infringir o art. 227 incisos I e II do Estatuto do Partido dos Trabalhadores, estando impedido de utilizar e ou se manifestar em nome do Partido dos Trabalhadores, conforme o estabelecido no art. 13, incisos I, II, VII-a, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XVI.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Não haverá mudança no FPM", diz coordenador do IBGE sobre Itararé com 50 mil habitantes

por MURILO CLETO



Em entrevista ao Desafinado, o coordenador de subárea do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Paulo Roberto Costa Struminski Junior esclareceu dúvidas importantes a respeito da notícia, recentemente veiculada no município, de que Itararé havia finalmente ultrapassado a marca de 50 mil habitantes. Como pesquisador em Direito Constitucional, também avaliou a realidade da região no que diz respeito aos índices populacionais e repercutiu o artigo recentemente publicado no blog sobre a proliferação de municípios a partir de um precedente aberto pelo Fundo de Participação dos Municípios. 

Confira o diálogo na íntegra:

Desafinado: O último censo no país foi realizado em 2010. De que maneira o IBGE realiza as estimativas populacionais que são anualmente veiculadas?

Paulo: Realmente, o Censo Demográfico mais recente refere-se ao ano de 2010. Esse foi o 12º Censo Populacional Brasileiro. Normalmente, o IBGE realiza os Censos a cada 10 anos, sempre nos anos de final 0. É, portanto, decenal.

Em um país de dimensões continentais, como o Brasil, realizar um Censo é uma tarefa gigantesca. Em 2010, evolveu cerca de 240 mil pessoas, foram visitados mais de 67 milhões de domicílios, e totalizou um investimento de aproximadamente 1,4 bilhão de reais. Por esses e outros motivos, os Censos não são realizados anualmente.

Nos anos em que não há Censos Demográficos, são realizadas Estimativas Populacionais. Conforme a Lei Federal nº 8.443/1992 e Lei Complementar Federal nº 143/2013, anualmente o IBGE deve elaborar estimativas populacionais para todos os municípios e estados. Essas estimativas são divulgadas no mês de agosto e se referem à população residente em 1º de julho. O cálculo estatístico observa o Método das Componentes Demográficas.

Explicando de forma bastante simplificada, essa metodologia considera a tendência de crescimento de uma área maior e já conhecida (estados), considerando-se o censo demográfico mais recente e informações de nascimentos e óbitos. Subdivide-se essa área maior em áreas menores (municípios).

Os coeficientes de crescimento dessas áreas menores são obtidos observando-se dois Censos, assegurando-se que a somatória das áreas menores coincida com o valor já determinado para a área maior.


D: No caso específico de Itararé, como foi possível chegar ao número de 50.105 habitantes?

P: Para o município de Itararé foi aplicado o mesmo Método das Componentes Demográficas, considerando-se os Censos Demográficos de 2000 e 2010. O percentual de crescimento de Itararé foi de 0,28% entre 2014 e 2015. Percentual que observa a tendência de crescimento populacional do município verificada nos últimos censos.

Interessante salientar que nessa estimativa houve 1364 municípios onde a população diminuiu. A população brasileira, como um todo, cresceu 0,87%. Esse percentual já exprime uma queda quando comparado ao percentual do ano anterior.

O fato é que a população brasileira está crescendo em um ritmo mais lento. As projeções do IBGE indicam que a população brasileira aumentará até o ano de 2042, quando começará a diminuir anualmente.

Essa transição demográfica é comum e já foi observada em diversos países, resulta basicamente na queda de taxa de fecundidade, ou seja, de as mulheres estarem tendo menos filhos. Dentre outros motivos, isso é influenciado por fatores e políticas públicas como educação, saúde e cultura, além de questões relativas ao mercado de trabalho.

Todos os municípios acabam sendo impactados por essa nova realidade. Capão Bonito e Itaberá já estão apresentando diminuição populacional nessa estimativa, apenas para citar alguns municípios vizinhos de Itararé.

Essa mudança no perfil demográfico brasileiro, com o aumento da expectativa de vida, é característica de países mais desenvolvidos, portanto essa notícia deve ser festejada, demonstra um avanço civilizatório.

D: Por muito tempo, foi alimentada certa expectativa quanto alcance da marca de 50 mil habitantes. Mas o que o índice efetivamente pode trazer de positivo para o município?

P: É verdade que havia, por parte da população, esse desejo de superar a marca de 50 mil habitantes. Muitas vezes, recebemos consultas sobre a divulgação das Estimativas Populacionais. Ocorre que a elaboração e divulgação dessas estimativas compete à Diretoria de Pesquisas do IBGE no Rio de Janeiro.

A Agência do IBGE em Itararé/SP não participa desses cálculos. Nós recebemos a informação junto com restante da população quando o IBGE divulgou os dados no site em agosto.

Sabemos que tanto a iniciativa privada, quanto os governos municipais, estaduais e federal utilizam esses dados para a tomada de decisão para investimentos ou implementação de políticas públicas. Nesse sentido, dados estatísticos precisos colaboram para a melhoria da eficiência na gestão dos recursos públicos e privados.

Há vários programas de órgãos públicos que são definidos considerando-se o quantitativo populacional. O aumento de habitantes pode incluir o município em algum desses programas ou retirá-lo dependendo da regra de cada programa.

No caso do Fundo de Participação dos Municípios – FPM não haverá nenhuma mudança. A faixa do FPM muda em 50.941 habitantes, portanto, está ainda muito distante. Para mudar de faixa, a população de Itararé teria que ter crescido em um ritmo muito mais rápido do que o ritmo brasileiro e também muito mais rápido do que cresceu na última década.

Por outro lado, o município mudará de faixa para o cálculo do número de vereadores. Segundo a Constituição Brasileira, Itararé estava na faixa de no máximo 13 vereadores, agora está na faixa de até 15.

D: Além dos pontos positivos, no que diz respeito a recursos, o que há de potencialmente negativo com a nova marca?

P: Como foi dito, no que se refere ao FPM, não haverá mudanças. Eventuais benefícios ou prejuízos dependerão exclusivamente das regras de cada programa ou política pública. Normalmente, municípios menores podem receber maior apoio na implementação de ações públicas. Por outro lado, municípios maiores podem atrair mais investimentos privados. Evidentemente, tudo isso depende de vários fatores socioeconômicos e das regras específicas de cada programa ou política pública, que são definidos pelos órgãos responsáveis pelo fomento dessas iniciativas.

D: Em artigo recentemente publicado aqui no blog Desafinado, você sustentou que existe certo incentivo à proliferação dos pequenos municípios por conta de um precedente legal relacionado ao FPM. Quais são os desdobramentos desta lógica para a estrutura das cidades e a qualidade dos serviços públicos?

P: Como o IBGE não opina, nem se manifesta sobre avaliações políticas a respeito da legislação, não posso responder essa pergunta como servidor do IBGE. Vou respondê-la como estudioso do assunto.

Você se refere a um estudo acadêmico que eu elaborei para minha pós-graduação. A análise da legislação e de dados socioeconômicos demonstra que atualmente as faixas do FPM induzem o surgimento de municípios inviáveis, apenas por questões financeiras.

A criação de municípios deveria observar, além da legislação pertinente, características histórico-culturais, socioeconômicas, geográficas e populacionais. O atendimento a todas essas questões evidenciaria o legítimo interesse de uma população para criar um município.

No meu estudo, utilizo várias pesquisas que apontam que o FPM retira parte dos recursos que poderiam ser utilizados para a melhoria de serviços públicos, como educação e saúde, além de obras e investimentos em municípios economicamente viáveis e distribui esses recursos aos municípios economicamente inviáveis, onde são utilizados para manutenção da estrutura administrativa e de representação política, como custeio das prefeituras e câmaras de vereadores.

D: O que existe de alternativa pra mudar este cenário?

P: Novamente, vou expor a minha avaliação acadêmica sobre o assunto. Deixo claro que o IBGE não se manifesta a esse respeito.

No meu estudo defendo a alteração da legislação sobre o FPM, acabando com as faixas. Os valores seriam calculados por habitante e não por faixa de habitantes. Isso deixaria de induzir a criação de municípios inviáveis, pois retiraria a vantagem financeira.

Até que a legislação do FPM fosse alterada, julgo que só deveriam ser autorizados a fusão de municípios ou o desmembramento de localidades que desejassem se fundir a municípios limítrofes.

Estudar uma nova forma de financiamento dos municípios que já preveja a diminuição da população é muito importante, pois o Brasil está passando por uma transição demográfica e já se sabe que no futuro o quantitativo populacional diminuirá. Repasse de receitas calculadas por faixas de habitantes pode deixar muitos municípios com problemas financeiros.

D: Hoje você acredita possa haver algum desmembramento em Itararé, como, por exemplo, a autonomização do Distrito de Santa Cruz?

P: Hoje a emancipação é impossível. Santa Cruz dos Lopes é um distrito do município de Itararé. Normalmente, uma localidade é elevada a distrito e, posteriormente, emancipada em município. Neste momento, está proibida a formação de municípios no Brasil, pois não há legislação que a autorize.

O artigo 18, parágrafo 4º da Constituição Brasileira rege a formação de municípios. Lá está prevista, dentre outros requisitos, a criação de uma Lei Complementar Federal estipulando regras para a formação de municípios.

Essa legislação ainda não existe. Portanto, só depois que essa Lei Complementar Federal estiver em vigor, poderão ser emancipados novos municípios.

No entanto, isso não impede que as administrações municipais estudem formas de melhorar a gestão dessas localidades. No Brasil há experiências de administrações municipais descentralizadas, como por exemplo o caso das subprefeituras. Compete aos municípios analisar a viabilidade dessas experiências.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O que está acontecendo na Síria?

por SANDRO CHAVES ROSSI



A todo momento vemos notícias sobre os refugiados sírios que estão tentando a todo custo entrar na Europa, mas o que acontece na Síria para que haja tantos refugiados de lá? Quem tem acompanhado o noticiário internacional nos últimos anos já deve ter percebido que a crise na Síria apenas se agravou desde o início da revolta contra o regime do ditador Bashar al-Assad, em 15 de março de 2011. Houve inúmeras mudanças dentro do que caracteriza o conflito, mas a maior delas foi a transformação de uma revolta de caráter popular e pacífica em uma guerra civil.

A Primavera Árabe de 2011, no Egito e na Tunísia, inspirou os sírios a tomarem as ruas, em março de 2011. Os sírios expuseram seu descontentamento com o processo político estagnado pela ditadura e pediram uma reforma política democrática. Como era de se esperar, os protestos não foram bem aceitos pelo governo ditatorial, que respondeu com medidas extremas. Inúmeros manifestantes foram sequestrados, torturados e mortos. As tropas do governo começaram a abrir fogo contra civis, foi o estopim para que uma luta armada fosse tramada.

A atual situação da Síria pode ser explicada com melhor exatidão pelo passado, precisamente 1962. Naquele ano, foram suspensas as medidas de proteção para os cidadãos do país que estavam previstas na constituição anterior. Então Hafez al-Assad, através de uma manobra ditatorial, manteve-se no poder da nação durante três décadas, que teve como sucessor o seu próprio filho Bashar al-Assad, que iniciou seu governo em 2000. As manifestações da população síria foram iniciadas em frente às embaixadas estrangeiras da capital Damasco, para chamar a atenção do cenário político internacional, e ao parlamento sírio. 

Desde março de 2011, a guerra civil síria já deixou cerca de 130 mil mortos, destruiu a infraestrutura do país e gerou uma crise humanitária regional. Somente três anos depois, as partes envolvidas e a comunidade internacional tentaram fazer estabelecer em conjunto os termos para paz. Uma segunda conferência de paz, chamada de Genebra II, foi realizada em janeiro de 2014 na Suíça. Porém, depois de mais de uma semana de negociações, os avanços foram ínfimos. Uma nova reunião começou em 10 de fevereiro do mesmo ano e teve término no dia 15, novamente sem decisões e com acusações mútuas entre governo e oposição. Uma terceira rodada será feita em data ainda não definida.

A revolta armada foi se diversificando cada vez mais, pois diversos segmentos da sociedade se mostraram insatisfeitas com o governo, com um grande destaque para a questão religiosa: Bashar al-Assad, da minoria étnico-religiosa alauíta, enfrenta há quase três anos uma rebelião armada que tenta tirá-lo do poder. Tudo isso somado com o apoio dos militares desertores do governo e por grupos islamitas como a Irmandade Muçulmana, do Egito e radicais com o grupo Al-Nursa, grupo ligado a rede terrorista Al-Qaeda.

Mesmo com muita pressão de todos os lados, Assad se recusou a renunciar, porém fez concessões para tentar acalmar os manifestantes, pelo menos os menos exaltados. Ele encerrou o estado de emergência, que durava 48 anos, fez uma nova Constituição e realizou eleições partidárias, fatos que foram considerados grandes avanços pelo cenário político internacional, mas insuficientes para a oposição, que diz não cessar até que Assad renuncie o poder.

Assad não se cala perante as acusações que sofre, ele diz que a revolta é camuflada por terroristas internacionais, cujo objetivo é criar o caos, e que está apenas se defendendo para manter a integridade nacional. A oposição alega que as acusações de Assad são mentirosas, porém desde o fim de 2013 e o início de 2014, confrontos entre rebeldes islamitas e jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e Levante (EIIL, ligado à Al-Qaeda) deixaram milhares de mortos na Síria, tais conflitos ainda se estendem até hoje - fator principal para a fuga de cada vez mais civis do país.

Existem propostas de paz para o conflito sírio desde novembro de 2011. Em março de 2012, o enviado especial da ONU, Kofi Annan foi até Moscou para assegurar apoio da Rússia, maior aliada do regime de Assad juntamente com China, Irã e também o movimento xiita libanês Hezbollah, aos esforços para promover um cessar-fogo e tentar chegar a um consenso político. Uma missão da ONU se estabeleceu em Damasco, mas, em junho, foi suspensa por conta da "violência escalante". O fracasso do cessar-fogo provocou a renúncia de Kofi Annan ao cargo e a entrada do diplomata argelino Lakhdar Brahimi em seu lugar.

Desde então, a ONU não viu outra solução que não fosse o apoio dos países do Ocidente para tentar cessar a guerra na Síria, porém quase nunca obteve uma resposta concreta vinda de nenhum país. Isso ocorre porque é muito difícil achar uma solução viável. As opções militares não ajudam: enviar armas aos rebeldes, mesmo que ajude a derrubar Assad, acabaria dando poder aos islâmicos fundamentalistas e intensificaria ainda mais a briga entre os rebeldes, o que levaria a caos generalizado e, possivelmente, uma segunda guerra civil. Uma intervenção como a promovida pelos Estados Unidos no Iraque aceleraria as mortes, custaria a vida de muitos soldados estrangeiros e exacerbaria o antiamericanismo no mundo árabe. Barack Obama, juntamente François Hollande e David Cameron, planejam uma "intervenção cirúrgica", com bombardeios em áreas militarmente estratégicas na Síria. Porém a melhor solução ainda seria um acordo entre governo e oposição sírios - o que está longe de acontecer.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O teatro Wole Soyinka como meio de reflexão social

Como o autor nigeriano, através de suas peças teatrais, reflete sobre questões essenciais para a África pós colonial e para a nossa realidade 

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

BAROKA: (...) Eu não odeio o progresso, apenas sua natureza
Que leva todos os tetos e rostos a ficarem iguais.
E o desejo deste velho é que, ao menos aqui e ali,
[Avança progressivamente em direção a Sidi, até curvar-
se sobre ela, e a seguir senta-se na cama ao seu lado.]
Entre as pontes e essas estradas assassinas,
Abaixo dos beija-flores que formam cortinas
Diante da face de Xangô, dispensador
Do relâmpago com língua de serpente;
Que entre este momento e aquele em que chegar
A vassoura descuidada que seja manejada
Durante os anos vindouros, possamos deixar
Locais virgens de vida, a rica decomposição
E o cheiro do vapor que se ergue
Das pilhas aquecidas de adubo, permanecendo
Ser ser perturbados... Mas a pele do progresso
Mascara, sem se notar, o lobo malhado da igualdade...
A igualdade não revolta o seu ser, minha filha...?


Hoje vamos aos palcos de Wole Soyinka, primeiro Prêmio Nobel da história da África. Nascido na Nigéria, Soyinka tem uma atuação política importantíssima em seu país (como grande parte dos autores africanos, tenho notado com surpreendente alegria). 

O autor também luta contra o militarismo e o autoritarismo que assolaram o país após o período colonial. Wole Soyinka foi preso em 1967 ao ser acusado de conspiração juntamente com rebeldes. Ficou na cadeia por 22 meses, até ser solto em 1969.

Além disso, o nigeriano também é um grande pensador a respeito das questões da África pós colonialismo. E é justamente esse caráter que fica evidente na sua peça O Leão e a Joia

A edição que li (única disponível no Brasil) é a da editora Geração Editorial. A edição é belíssima, com notas explicativas e fotos da peça quando encenada. O trabalho é cuidadoso e me surpreendeu de uma maneira muito positiva.

O tema central, com humor leve e longe de ser ingênuo, é um triângulo amoroso composto por Sidi, a “joia” e beleza da aldeia da nação iorubá. A bela jovem se vê assediada por dois opostos, que querem casar com ela: Lakunle, professor progressista que cultua valores ocidentais e cujo objetivo é estabelecer costumes europeus contra as tradições ancestrais da tribo; por outro lado, temos a figura de Baroka, o chefe da aldeia, exaltador dos costumes tradicionais. Baroka, o “bale” (chefe), também quer, ao se casar com a jovem, manter seu prestígio e poder.

Soyinka, apesar do tema recorrente, mergulha sua história nos costumes nigerianos, dando uma pincelada colorida e interessante, com música, dança e linguagem popular. E nota-se, através do contraste dessas duas opções, uma representação essencial de uma questão muito importante para a África de uma maneira geral: após o período colonial e todas as mudanças acarretadas pelos europeus (e, depois, pelos ditadores africanos), é necessário repensar os rumos culturais e políticos de um continente que sofre até hoje com os resquícios de um passado violento e injusto.

No meio desse conflito (não apenas amoroso, mas também em relação aos destinos culturais da aldeia), está Sidi. A figura da jovem é essencial para a ação, uma espécie de mediadora que, ao mesmo tempo em que valoriza a tradição, não aceita a submissão. Apesar de ela estar em meio ao conflito ideológico dos dois pretendentes, nota-se que sua expressão é fraca – senão nula. 

Pensando num sentido mais amplo, tal representação não é importante apenas no âmbito africano, mas sim para o papel social da mulher em âmbito mundial. Como diria o professor Ubiratan Castro de Araújo, no excepcional prefácio que fez para a obra: “Voltando à história contemporânea africana, podemos ler esta belíssima fábula O Leão e a Joia como uma busca alternativa para as sociedades africanas do pós colonialismo. A mera substituição de brancos por negros nas mesmas estruturas de poder colonial fracassou. A simples manutenção das culturas tradicionais não responde mais aos desafios da África contemporânea. A escolha de Sidi pode ser a saída para a incorporação de novos personagens sociais (a mulher, por exemplo) em processos de modernização que respeitam as identidades tradicionais. Talvez este seja o verdadeiro sentido do ‘renascimento africano’.” 

O papel da mulher é negligenciado muitas vezes com uma frieza que espanta. As mulheres, no meio de conflitos sociais e culturais, podem apontar soluções, mas nem sempre sua representatividade é levada em conta. E isso não é uma grande surpresa em uma sociedade patriarcal como a nossa, onde a violência contra a mulher muitas vezes é voltada contra ela própria - e os receios e inseguranças pelos quais uma mulher passa durante sua vida são uma pequena prova desse comportamento opressivo.

Deveríamos, como Wole Soyinka, repensar o papel essencial da mulher na sociedade. E, com isso, analisarmos como podemos alterar não apenas o machismo nosso de todo o dia, mas também os valores que temos – principalmente quando a questão diz respeito ao gênero. Antes de aceitarmos a cultura do próximo, devemos melhorar a nossa própria estrutura social. Se não o fizermos, independentemente de nosso progressismo ou de nosso culto à tradição, não passaremos de tolos primitivos. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Imigração em xeque na Europa

por SANDRO CHAVES ROSSI



Não é de hoje que vemos nos noticiários diversos países desenvolvidos sofrerem com a questão da imigração ilegal. Imigrantes se sujeitam a condições desumanas para conseguir entrar em um país, enfrentam fome, sede, condições climáticas adversas e, por muitas vezes, abusos de quem supostamente devia ajudá-los - como em diversos casos em que imigrantes acabam se tornando vítimas de algum trabalho escravo. Mas o que leva essas pessoas se arriscarem tanto para viver em um país diferente? 

A questão da imigração ilegal é muito mais complexa do que se imagina. À primeira vista, sabemos que esses imigrantes buscam melhores condições de vida e subentende-se que isso esteja atrelado a questões como melhores condições de trabalho, moradia, saúde e educação. Nada mais o que todo cidadão almeja de seu país. Porém, o que faz um país ser tão superior em relação ao outro nesses quesitos? Existem vários motivos, desde pobreza, falta de oportunidades e guerras. Porém a questão é: o que esses países que estão recebendo milhares de imigrantes estão fazendo para lidar com essa situação? 

A Europa é porta de entrada para 560 mil imigrantes ilegais todos os anos. Muitos acabam sendo vítimas de fatalidades. Os mais prejudicados são os africanos: estima-se que dois mil africanos morrem ao tentar atravessar o Mediterrâneo, é o que aponta o relatório da Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais (CMMI). Hoje em dia, vivem um pouco mais de 56 milhões de estrangeiros no continente europeu, o que representa 7,7% da sua população. Uma pesquisa feita pela CMMI em 2005, chamada Migration in an interconnected world: new directions for action, pretendia constituir um plano de ação para controlar os fluxos migratórios, dos quais as mulheres (48,6% dos imigrantes) e as crianças são as principais vítimas. 

Hoje, 10 anos depois, a situação se intensificou. Só no primeiro trimestre de 2015, quase 57.300 imigrantes ilegais chegaram à Europa. Esse número representa praticamente o triplo do mesmo período de 2014, ano em que foram quebrados todos os recordes, inclusive os atingidos durante as primaveras árabes. A Frontex, agência que controla as fronteiras externas da União Europeia, monitora as diferentes rotas usadas por imigrantes e como essas pessoas chegam aos limites do continente. Segundo o órgão, cerca de 340 mil foram detectados nas fronteiras desde o começo do ano. No mesmo período do ano passado, foram 123,5 mil. 

O maior grupo de imigrantes é de sírios, que fogem da violenta guerra civil em curso no país. Afegãos e eritreus vêm em seguida, geralmente tentando escapar da pobreza e de violações aos direitos humanos. Os grupos originários da Nigéria e do Kosovo também são grandes. Na Itália, pessoas que chegam da Eritreia formam o maior grupo, seguidas por aquelas que vêm da Nigéria. Na Grécia, porém, os sírios formam a maior população, seguidos pelos afegãos. Apesar desses países sofrerem grandes impactos pelo fluxo migratório, a Alemanha é o país que mais recebe pedido de asilo e tem uma estimativa de que receberá cerca de 800 mil imigrantes só esse ano. 

A Frontex tem respondido pela maioria das operações de resgate. Depois de muita discussão, em abril os líderes da União Europeia concordaram em triplicar o financiamento da operação Triton, que visa resgatar os imigrantes que não conseguem ultrapassar as fronteiras, para cerca de 120 milhões de euros. Em abril, líderes da União Europeia prometeram reforçar a patrulha marítima no Mediterrâneo, onde o fluxo migratório é mais intenso, para acabar com as diversas redes de tráfico de pessoas e tomar e destruir barcos antes que imigrantes embarquem neles. Porém, apesar do aumento dos investimentos nas operações, ainda é pouco e alguns países diminuíram o retiraram os investimentos feitos a essas operações, alegando que seria muito caro continuar mantendo esses serviços. Os países do Reino Unido foram os que mais cortaram seus custos. 

A União Europeia não consegue chegar a um consenso sobre uma política sólida de asilo. Isso acontece porque há muitas divergências entre os 28 Estados-membros, cada um com suas forças policiais e judiciárias. Defender os direitos dos imigrantes se torna difícil em um ambiente que se acostumou a uma boa saúde econômica e que agora passa por uma crise que parece nunca cessar. Muitos europeus estão desempregados e temem a concorrência com os trabalhadores estrangeiros, e os países da União Europeia não se entendem sobre como dividir o problema dos refugiados. 

Outra via que aparece em meio a essa discussão é o problema demográfico que a Europa sofre há alguns anos. Com a população diminuindo a cada ano, a Europa se mostra carente em algumas áreas de trabalho e precisa resolver isso com urgência para que não sofra no futuro. Alguns países concordam com essa via por já estarem sofrendo com a falta de profissionais, como a Alemanha, porém, com a crise, boa parte dos governantes ainda está bastante receosa.