quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Civilização e Barbárie em The Walking Dead

A série que escancara os limites de uma civilização frágil como a carne de um zumbi em estado avançado de putrefação


Xerife de uma pequena cidade no interior da Geórgia, Rick Grimes desperta de um coma que durou meses. Levou a pior numa troca de tiros com bandidos e não viu o surto que mudou irreversivelmente a vida no planeta Terra. Aturdido, levanta da maca à procura de um simples sinal do mundo que conhecia antes de perder a consciência. Neste cenário pós-guerra, o policial não encontra outra coisa senão vazio e silêncio. 

Lançada há uma década por Robert Kirkman e o desenhista Tony Moore, a História em Quadrinhos The Walking Dead explodiu depois que virou série de TV a partir de 2010 e tornou-se a mais vendida de 2012 na América do Norte, alavancando como nunca as vendas da Image Comics

Engana-se quem acredita na ideia de que The Walking Dead é uma trama sobre zumbis. Na verdade, é possível dizer que The Walking Dead trata sobre qualquer coisa menos zumbis. Desde a volta de Rick à ativa, a HQ inscreve-se numa série de obras da ficção que, a partir de diferentes perspectivas, abordam o mesmo tema: a linha tênue que distingue a civilização da barbárie.

Como no "apagão às avessas" em Ensaio Sobre a Cegueira, The Walking Dead escancara os limites de uma civilização frágil como a carne de um zumbi em estado avançado de putrefação. Mais do que isso, os quadrinhos são um verdadeiro atestado de provisoriedade da civilité, que assume ares de barbárie nos momentos de pânico coletivo.

Na verdade, é possível dizer que o processo civilizador, originado há cerca de 12 mil anos, esteve umbilicalmente ligado ao controle do homem sobre a natureza e suas imprevisibilidades. E não por acaso, das primeiras barragens aos mais suntuosos palácios da Antiguidade, o fato é que a origem do Estado reside na organização desta força-tarefa, complexificada à medida que a expansão dos grupos tornou-se inevitável.

E é também verdade que nos tornamos relativamente mais dóceis conforme deixamos a vida menos condicionada ao limite e mais adaptada às regras do convívio social codificado por signos construídos. A partir daí, surgiram ou se aperfeiçoaram qualidades lentamente internalizadas no sujeito: beleza, bondade, felicidade ou qualquer um dos seus inversos. Quanto menos expostos aos riscos duma natureza implacável -  que competia espaço com o ser humano e a morte parecia nada menos que uma questão de tempo, adiada talvez apenas pela brutalidade da barbárie - mais a humanidade pôde caminhar ao que chamou de civilização, sinônimo popular até hoje de bom comportamento.

O que The Walking Dead oferece é um mergulho às origens e ao fim da própria civilização. Assim que deixa o coma, Rick perde lentamente cada uma das insígnias que o constituíram oficial da polícia. Isso porque o sentido delas é particularmente implodido pelo caos instaurado a partir da série de contágios que transformou a maior parte do mundo em mortos-vivos. Como o contágio é imediato - afinal, basta um arranhão ou uma mordida de um dos "walkers" para a transformação -, o desespero é a regra e não mais a exceção no comportamento dos poucos sobreviventes.

Pouco a pouco, tudo aquilo que constituiu a humanidade é ruído por novas investidas de zumbis famintos. Sem escolha, tudo o que resta é o caminho do puro horror. Como nos primórdios, a violência é justificada por um único fator: a própria sobrevivência. Desta forma, desfazem-se os paradigmas do que já foi um dia belo, bom ou feliz. 

Mais: a própria noção de infância é posta às claras como culturalmente forjada a partir do momento em que Carl assume esporadicamente as rédeas do grupo nos momentos de ausência do pai, Rick. Do amável e tímido garoto de apenas 12 anos de King County, Carl é o sujeito que poucos meses depois alveja a própria mãe com um tiro à queima-roupa na fronte. Mortos - com ou sem a mordida dos walkers - todos são ameaça potencial ao grupo, pois em questão de minutos também se transformarão em mordedores. "Eu atirei na minha mãe. Ela morreu e não tinha se transformado ainda. Eu pus um fim nisso. Aconteceu.", disse com segurança o mesmo menino que tempos atrás deveria adorar beisebol e sucrilhos pela manhã. 

A passagem dos personagens a este novo universo é determinada pelo instinto de sobrevivência acompanhado da dor inexprimível causada pelo aniquilamento de tudo o que fez sentido um dia e não faz mais graças aos incontáveis cercos dos parasitas. O amor não soa nada além de fraqueza e, de todos os elementos que compõem a condição humana, resta cada vez mais o instinto, visitado apenas às vezes pelo altruísmo, à beira do colapso originado pelo caos. 



Não apenas os zumbis, mas todo grupo alheio passa a encarnar papel potencialmente ameaçador pura e simplesmente por sua existência. Desde Freud, compreendemos o "Outro" não apenas como diferente, mas sinônimo de um espelho forjado pelo inconsciente arisco ao desconhecido. Sim, espelho, pois de acordo com o psicanalista o convívio com o Outro significa, na verdade, o encontro do "eu" com o próprio passado - neste caso, o bárbaro -, recalcado durante o processo civilizatório.

No século XVIII, Kant esboçou o que seria a tônica da Modernidade pós-Iluminismo. Através da separação metafórica entre maioridade e menoridade, dividiu a humanidade entre dois grupos essencialmente básicos: racionais e... não-racionais. Desta forma, a Europa civilizada, claro, justificou de antemão todo o processo "civilizatório" que colocou à força África e Ásia nas mãos do velho continente. Argumento corrente foi o de que o Oriente era habitado por seres não completamente humanizados e a intervenção territorial era, ali, mais do que necessária. 

Não é novidade, no entanto, o confronto entre a bandeira da civilização diante do que ela mesma classificou de barbárie. Desde pelo menos os gregos antigos, "bárbaros" eram aqueles que não compartilhavam o idioma grego e eram interpretados como não completamente capazes de reconhecer a própria humanidade e, sobretudo, a dos outros. Quando Júlio César levou ao senado romano celtas e gauleses, patrícios aos montes vieram à loucura com tamanha afronta. 

É mais ou menos a partir da mesma condição que esta nova humanidade fundada pelo surto de mortos-vivos justifica a brutalidade: a insegurança. Se a necessidade é a mãe das invenções, o medo é o pai da ditadura. Em estado de pânico, o ser humano permite-se o que não avalizaria em situações convencionais. De frente para o horror, o indivíduo está prestes a entregar de bandeja a própria liberdade em nome da segurança. 

Não por acaso, todo regime autoritário esteve justificado de antemão por alguma calamidade, seja ela econômica, social ou política. Antes da entrada dos militares aos pontapés em Brasília a partir de 1º de abril de 1964, já estava aberta há décadas uma campanha anti-comunista que transformou o que foi um golpe de Estado numa "revolução". Desta forma, o fim da democracia pôde paradoxalmente ganhar ares de libertação.
Impossível seria esquecer, é claro, a instauração do 3º Reich na Alemanha. Milhões de judeus, comunistas, homossexuais, ciganos e tantos Outros escravizados e mortos numa verdadeira blitz instalada pelo partido nazista liderado por Adolf Hitler. Desemprego e inflação recordes, anti-semitismo, anti-liberalismo e anti-comunismo em alta, e a fórmula para o totalitarismo estava pronta: medo, fome, e alguém para culpar.

É exatamente nestas condições que se encontram os personagens de The Walking Dead. Com o terror instaurado, são autorizados tribunais de exceção, execuções a esmo e, como no Paleolítico, a resposta é a mesma: matar para não ser morto. Não apenas os zumbis são estraçalhados como coisas, mas também qualquer outro grupo de humanos no caminho não significa nada além de um arqui-inimigo a ser batido. O medo constante da perda de suprimentos e do território iguala os seres humanos às condições mais precárias duma natureza tão leve e harmônica quanto uma composição dos Ratos de Porão. Mente por inocência quem diz que a natureza é perfeita, equilibrada e vive em paz. Bem por conta disso que o inimigo bom se transforma num inimigo morto - alguma semelhança com o discurso daqueles apresentadores sensacionalistas de telejornal policial?

Desta forma o circo está armado para o fascismo. Na 3ª temporada da série de TV, somos apresentados ao "governador", líder de Woodburry, uma comunidade de pouco mais de 60 pessoas, aparentemente dominada pela mais absoluta paz. Isso até qualquer rompante de ameaça, invasão de walkers ou chegada de estranhos. Dentro desta lógica, a principal defesa é o ataque, e qualquer fortaleza longínqua descoberta é sumariamente executada. À sangue frio, a milícia do povoado estraçalha toda possibilidade de resistência, interna ou externa.

Como todo déspota, o poder do Governador - chamado intimamente de Philip por quase ninguém - é concentrado por uma tríade composta por sobriedade, compaixão e força. Nesta recriação de um feudo medieval, o medo do "mundo lá fora" é tão intenso que nem os toques de recolher, os mistérios ou as expulsões importam mais aos membros. Participação popular ativa no poder, então, nem parece uma hipótese minimamente desejável. Descende daí todo o ódio contra Michonne, habitante não satisfeita com a ordem às custas do controle no povoado. Mais que o caso de uma rebelde sem causa - que a princípio incomoda qualquer espectador, tamanha a repulsa contra o governador -, a história da personagem transforma-se num símbolo de resistência e, principalmente, da reação do poder ditatorial a ela.

Tentativa de reviver o que constituiu até então uma civilização, Woodburry não é nada além de uma organização proto-fascista que exerce a ditadura sob a máscara da proteção. Seguros, nenhum dos seus habitantes têm com o que se preocupar. Vale até uma reprodução particular do pão e circo romano, quando gladiadores se enfrentam numa arena cercada por zumbis sedentos aprisionados e que se aproximam perigosamente dos lutadores. Show de horrores, o espetáculo ali não passa de uma comemoração coletiva mórbida da volta do controle do homem sobre a natureza. Com toda a docilidade do antigo "eu", Andrea - ao lado do governador - se revolta contra o próprio prazer em degustar o que sua moral civilizada jamais permitiria.

Mais que uma série sobre zumbis, The Walking Dead é um convite à habitação da fronteira que separou por séculos civilização e barbárie. Linha mais do que tênue, tem sido desmontada pela violência encapuzada de justiça ou proteção e jamais superada, como mostram as novas cruzadas vividas pela contemporaneidade. Uma a uma, as facetas da civilização têm sido derrubadas pelas recentes políticas de imigração na Europa, pela famosa PM de São Paulo e pelo esmagamento de civis na Palestina ou de comunidades indígenas no Ocidente "civilizado". No limite, a linha que separa civilização e barbárie não passa de uma invenção determinada pela própria violência como seu álibi.

Não assustam aqueles que ainda hoje insistem na ideia de que Hitler não passou de um maníaco. Como num conto de Edgar Alan Poe - aquele que se recusa em atribuir ao ser humano a autoria dos assassinatos na Rua Morgue -, parece o caminho mais fácil que a civilização encontrou para negar a própria barbárie. 



Abraços, 
Murilo

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A Maldita Qualidade de Vida

Uma discussão social do "fenômeno Herbalife"



Confesso que não conhecia 
Era tomado por preconceitos 
Um amigo me apresentou 
Minha vida mudou



Ainda que a ausência de aspas denuncie, a verdade é que as quatro sentenças acima bem poderiam se encaixar em parte substancial de qualquer cerimônia de apresentação da hoje megacorporação Herbalife, uma empresa de alimentos que, substituindo até duas refeições por dia, promete emagrecimento rápido e muito mais do que isso: algo que nos viciamos em chamar de "estilo" ou "filosofia de vida".

Parte talvez da crise moral contemporânea, a busca do homem por um sentido no Universo e na vida em si tem gerado um verdadeiro show de horrores diante desta necessidade convencional de alicerces referenciais de comportamento. Como não sabemos fazer outra coisa senão comprar, o consumo - ou melhor, o estímulo ao consumo - tem se adaptado a estas tendências de maneira avassaladora e o aparelho da compra hoje significa, ao fim e ao cabo, um mecanismo concreto de inscrição social.


Comprar um tênis Adidas, por exemplo, significa, além de adquirir simplesmente um sapato, inscrever-se numa categoria social específica que por algum motivo alista o sujeito consumidor na categoria própria de consumidores deste produto e automaticamente o aparta da categoria de não-consumidores dele. 

É mais ou menos a lógica da Herbalife. "Aqui é muito mais do que um lugar para se tomar o shake. É um espaço de amizade", anunciou um dos fundadores do mais novo "Espaço Vida Saudável". Explico: através do mecanismo de consumo, o sujeito consumidor inscreve-se num novo universo. O shake é mais do que um concentrado de vitaminas misturado ao leite com gelo que estimula o metabolismo; é uma chave de ingresso para o interior deste "estilo de vida" pautado na busca obcecada pela felicidade contemporânea.

No Réveillon, tive acesso à "Ditadura da Felicidade", brilhante contribuição de Rita de Cássia de Araújo Almeida a respeito desta doentia negação social à tristeza. Há um inconsciente coletivo de pressão sobre o indivíduo, que de uma forma ou de outra o torna sujeitado à lógica da felicidade insana - esta que repudia a qualquer custo a frustração, a tristeza, até mesmo o luto, e faz com que simples desilusões amorosas lotem consultórios psicológicos.

Há uma avalanche de felicidade: duzentos canais na TV à cabo, trezentos sabores de sorvete, novecentos pares de sapato, cinquenta tons de cinza. Mais do que isso, a felicidade também se tornou subordinada a questões médicas: academia pela manhã, cochilo depois do almoço, alimentação balanceada, sono calculado, tudo em doses cavalares para o que se convencionou chamar de "qualidade de vida".

E é isso que promete o tal shake: qualidade da vida. O "estilo de vida" Herbalife jura disposição para a rotina diária. Quer dizer, você consome e fica disposto. Não fica disposto porque tem um objetivo, mas tem um objetivo porque fica disposto. Lembro agora o ultra-potencializado Dostoiévski quando anunciou que "o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver".


Não é por acaso que o - mais uma vez - "estilo de vida" Herbalife esteja ancorado nos maiores espetáculos americanos de motivação. Nos coquetéis de inauguração, depoimentos, testemunhos, reza, aplausos, fotos que circulam como evidência do homem comum que era gordo e que hoje fala com propriedade; enfim, um sem-número de elementos persuasivos pautados na mesma lógica que compõe qualquer um destes programas neo-pentecostais da madrugada na TV. Alguém que fala diretamente para você e, por algum motivo, por você. Um verdadeiro show de terapia motivacional encabeçada pelo fundador, Mark Hughes. Confira aqui a o bizarro manual de auto-ajuda intitulado "Carta aos líderes" para entender melhor - ou confundir mais ainda. Além de tudo, bebendo o shake, veja bem, você será um vencedor!



Aliás tem sido esta a grande sacada da empresa. Não se trata de puro merchandising, exposição barata da marca e inundação de prateleiras no mercado - só não me perguntem como Beckham e Messi foram parar nessa. A chamada "venda direta" atrai também porque usa a medíocre máscara do bem-estar e desta maldita ideia de qualidade de vida testemunhal. De acordo com essa lógica estratégica, o fornecedor te parece qualquer coisa menos um empreendedor, alguém que vai lucrar com isso. Como perdeu peso e ficou mais feliz e disposto, ele se metamorfiza no seu espelho ideal imediato - e não te parece alguém que vai efetivamente ganhar dinheiro.

O negócio funciona como uma rede. Um que vende para o outro, que vende para outro, e outro... formando assim "laços", como dizem os vendedores. Como "vender" parece mesquinho, os adeptos preferem toda esta teorização que caminha para o sentido de "transferir uma experiência de vida saudável". Por isso os "espaços" não são "lojas", afinal não podem parecer um local de venda e lucros - ainda que no fim das contas se transformem nisto mesmo.

Se faz efeito, se emagrece, se cria disposição ou não, isso aqui não importa. O fato é que o "estilo de vida" que tanto buscam hoje se transformou num negócio tão rentável quanto aquele gorduroso McDonald's de carne processada. Além disso, promete a sua inscrição numa vida mais saudável, disposta e, é claro, muito mais feliz.

No coquetel do "espaço de amizade", perguntei se era permitida aquela cervejinha gelada para prosear. Não deixaram, mas fui agraciado com uma sopa de quatro queijos no final.



Abraços, 
Murilo.