segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quem tem medo de Emma Bovary?

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA



Há alguns dias, relendo o sublime livro de Flaubert, Madame Bovary, deparei-me com um trecho já anteriormente grifado. Ei-lo: 

“Seus hábitos amorosos fizeram com que a Sra. Bovary mudasse logo suas maneiras. Seus olhares tornaram-se mais ousados, seu falar mais livre; cometeu mesmo a inconveniência de passear com o Sr. Rodolphe com um cigarro na boca, como se quisesse escarnecer do mundo; enfim, os que ainda não duvidavam não duvidaram mais quando a viram, um dia, descer da Hirondelle com o corpo apertado num colete, à moda masculina; e a sra. Bovary mãe, que após uma assustadora cena com o marido, viera refugiar-se na casa do filho, não foi a burguesa menos escandalizada. Muitas outras coisas lhe desagradaram: em primeiro lugar, Charles não seguira seus conselhos quanto à interdição dos romances; em seguida, o estilo da casa desagradava-lhe; permitiu-se fazer observações e houve atrito, sobretudo uma vez, a propósito de Félicité.”

À luz de um mês tão conturbado para as mulheres brasileiras como foi o mês de outubro, encaro este trecho. Nele, o livro já percorreu a história de Emma Bovary e de suas desilusões. A protagonista está envolvida, então, em seu primeiro caso, com Rodolphe.

Contudo, quando passo meus olhos novamente por essa beleza de texto, noto que Emma não incomoda no romance e não incomodou fora do romance apenas porque era adúltera (Flaubert, ao escrever o livro, foi julgado por atentado à moral e à religião). Se o problema se resumisse a isso, é possível que Emma encontrasse uma saída que não o seu fim trágico.

O que incomodou e incomoda em Emma Bovary é seu lado, digamos, quixotesco. A personagem não trai pelo simples desejo de trair, mas sim porque compara sua realidade com outras (livrescas, mas que não deixam de ser imagináveis). Em suma: na sua essência, ela questiona a realidade em que está imersa. Vai contra o que as burguesas e burgueses da época viam com bons olhos. 

O que incomoda em Emma Bovary não é apenas o fato de ela ter se cansado de seu marido e, então, traí-lo. Não. O que incomoda em Emma Bovary é que, como diz o narrador, ao se portar como se porta, é “como se ela quisesse escarnecer do mundo”. Eis sua maneira de confrontar uma realidade a qual, no fundo, não se adequa. Porque Emma não apenas trai o marido, Emma passa com um cigarro na boca, Emma usa colete à moda masculina, Emma enfrenta e contraria a mãe de seu marido. Emma não se cala, Emma não se reprime, Emma não se contenta em ser parte passiva de uma sociedade que é naturalmente opressora, que entra em pane quando uma mulher ameaça abalar barreiras tão duramente estabelecidas.

Como já disse, pauto-me no hoje, no meu presente (e aí estaria o porquê de Madame Bovary ser um clássico: até hoje encontramos questionamentos neste maravilhoso livro, até hoje ele dialoga conosco). Não acredito que Flaubert tinha intenção de representar uma figura feminina imersa em alguma espécie de luta social engajada. Contudo, Emma, que permanece em seu mundinho de província, escandalizou uma sociedade que não estava acostumada a ver mulheres que “saem das rédeas”. Neste pequeno trecho, encontro uma chama incandescente dentro da personagem, algo notável e sublime à sua maneira. 

E apesar dos rumos que a história toma, poderíamos dizer que Emma, assim como Dom Quixote, teve momentos em sua vida que foram verdadeiras apoteoses de felicidade – pequenos momentos que podem ter sido tão intensos como várias “mães de Charles” nunca tiveram. E depois de ter provado esse tipo de sentimento, Emma, de alguma maneira, solta suas amarras, torna-se um pouco mais livre. Não é à toa que, em um dado momento da narrativa, Rodolphe exclama: “Será possível pedir a tal tipo de mulher que se conforme?”

Emma Bovary não se conforma. Por isso, assustou a sociedade no século XIX e assustaria muito conservadores de hoje - assim como Simone de Beauvoir impressionou muitas pessoas de sua época e ainda as impressiona hoje (vide a enorme repercussão em que ela foi envolvida por ter caído na prova do ENEM). 

O fato é que ambas as figuras não alarmam porque estão erradas, não amedrontaram porque são loucas. Assustam porque, em algum momento, tomaram as rédeas de seu próprio ser e foram atrás do que queriam (mesmo sendo mulheres). É isso que assusta nossos compatriotas machistas de hoje. Mas, infelizmente, para eles, nós chegamos cada vez com mais firmeza, nós estamos cada vez maiores e mais unidas. Desde o século XIX, estamos cada vez mais dispostas a fumar o que quisermos, vestir o que quisermos. Leremos, contestaremos e, claro, seremos donas de nós mesmas. Naturalmente, os opressores entram em crise, tomam uma posição de defesa. (E aí entram as apelações, acusações e distorção de um discurso que pensam que conhecem.)

Madame Bovary é lido assiduamente até hoje porque é, no mínimo, instigante. Simone de Beauvoir é reconhecida no mundo todo e cai no ENEM, por exemplo, porque grande expoente de uma voz que as mulheres vêm criando. Está dado o recado: nós vamos lutar por nossos direitos e por nossa liberdade. Nós conhecemos nossa verdadeira força interior e nós não iremos embora. Acostumem-se. Ou, então, terão que nos engolir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário