terça-feira, 20 de outubro de 2015

Noites das mil e uma noites: as reflexões que o mundo de Scherazade proporciona aos dias de hoje

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

“- Zarmabaha, este mundo está esfalfado de tanta ignorância”


Quem não conhece, mesmo que vagamente, a famosa obra árabe As mil e uma noites? É comum ler um romance do século XIX e encontrar lá, em meio às páginas, uma referência ao famoso livro. Scherazade, o sultão Shahriar e uma multidão de personagens estão tão longe e, concomitantemente, tão perto de nossa cultural ocidental. 

E é então que aparece Naguib Mafouz. Através de uma sacada genial, o autor egípcio, em seu livro Noites das mil e uma noites, utiliza os personagens e a atmosfera mágica da obra-prima As mil e uma noites, transferindo-a para outro tempos.

Assim, nos deparamos com uma cidade indeterminada, em plena Idade Média. A narrativa se inicia justamente a partir do momento em que termina o grande clássico da cultura árabe: depois de narrar histórias para o sultão Shahriar, Scherazade recebe a notícia de que ele quer sua mão – cessando definitivamente a matança diária de mulheres.

Nos três primeiros capítulos, há, além da situação de Scherazade, uma apresentação geral da sociedade da cidade, baseada nos personagens da obra clássica. E é interessante notar como no decorrer das várias narrativas que compõem o livro (também à maneira do grande clássico que serve de base), as histórias das pessoas vão se entrelaçando através de vários acontecimentos pessoais, ganhando vários focos e perspectivas.

Através desta estrutura, Mafouz consegue realizar uma crítica genial à sociedade moderna. O clima ainda é o das Mil e uma noites, ainda há a presença do fantástico. Contudo, ao trazer a história e as personagens para outro tempo, o enredo, inevitavelmente, ganha um clima de secularização e humanização. 

Os gênios que aparecem interferem, à maneira dos deuses da Ilíada e da Odisseia, nos destinos humanos. Mas, mistura-se a isso os sentimentos e as fraquezas meramente humanas, tornando possível (com tantas referências e fantasia) a crítica que se volta sabiamente para o hoje. A análise social abrange, através de diversas narrativas, o sistema político, as guerras, a ganância humana e sobretudo a religião. 

E, do próprio Naguib Mafouz, é difícil se esperar menos. Vencedor do Nobel de Literatura em 1988, o autor, formado em Filosofia pela Universidade do Cairo, cresceu numa família muçulmana devota, com uma educação islâmica restrita e regrada. E Mafouz nunca foi uma pessoa conformada com sua realidade. Crítico e audaz, chegou a levar uma facada no pescoço em 1994 de um extremista islâmico por seus livros serem “blasfemos demais”. 

Logo nota-se que a intenção de Mafouz não reside em criticar o islamismo em si, como religião. Inclusive, há no enredo incríveis passagens com o sheik Abdhala e belos pensamentos sobre fé. Mafouz foca no extremismo, resultado e fonte de muito mal. (Extremismo este que, inclusive, não cabe hoje apenas ao islamismo. Um pastor ou padre que prega preconceito atrás de preconceito não fica atrás, e aqui entra uma das belas máximas do livro: “A pior doença que alguém pode sofrer é a ilusão de ser deus”). 

Naguib, que morreu em 2006, escreveu um livro de atualidade surpreendente, capaz de prender a atenção do leitor. A narração flui bem, é simples e intrigante. Além disso, as histórias tomam rumos interessantes e surpreendentes. 

A meu ver, fica, por último, a interessante reflexão de como nós, seremos humanos, continuamos a ter inúmeros defeitos, a cometer crassos erros para com nós mesmos. Faz pensar para onde estamos indo, falhando cegamente nas mesmas coisas, tendo os mesmos preconceitos e extremismos, de uma maneira insistente, tola e egoísta. E é por isso que ler e pensar sobre este belo livro dói um pouco: afinal de contas, vamos do mundo antigo árabe diretamente para nosso mundo, onde fica inevitável reconhecer nossas grandes falhas.


Ficha técnica

Título: Noites das mil e uma noites
Autor: Naguib Mahfouz
Nacionalidade: Egípcio
Edição: Companhia das Letras (1997, 2008 e 2011)

Um comentário:

  1. Luisa, suas resenhas são muito boas mas gostaria de ter o prazer de ver um outro lado seu aqui no blog, seus ensaios, contos e crônicas. Muitos blogs e jornais online disponibilizam espaço para tal, o desafinado está perdendo em não aproveitar este outro lado seu...

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