quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Mito do Carnaval Inocente

Como o discurso conservador forjou um passado ideal para uma das festas mais populares do mundo




Não se trata de nenhuma novidade. Às vésperas do carnaval, documentários, entrevistas e bate-papos com os vizinhos resgatam uma interessante máxima a respeito de uma das maiores festas populares do mundo: "naquele tempo era tudo muito inocente".


Um texto atribuído a Danilo Gentili tem varrido as redes sociais com um discurso que delega ao Carnaval a culpa por uma série de problemas no país:



Em 2011, Rachel Sheherazade foi promovida da TV Tambaú para o SBT depois de atribuir ao Carnaval responsabilidades como acidentes de trânsito e um aumento brutal da devassidão moral, representada, segundo ela, pelas doenças sexualmente transmissíveis ou o batalhão de jovens engravidadas durante o feriado.




A origem do Carnaval remonta à Antiguidade. Entre hebreus, gregos e romanos, os festejos celebravam o sucesso nas colheitas com muita comida e muita bebida. Já na Idade Média, a Igreja passou a incorporar alguns destes eventos "pagãos" ao calendário oficial, também com o objetivo de conquistar novos fiéis não apenas através da porradaria. Assim como o Natal, o Carnaval foi incorporado ao calendário cristão com algumas adaptações. Deveria acontecer logo antes da Quaresma - os 40 dias sem carne antes da Páscoa.

Existe um significado simbólico nesta escolha. O Carnaval não foi criado, mas refeito sob a insígnia cristã por um motivo razoavelmente simples: o de um poder que percebeu que, pra poder dizer não, também precisava dizer sim. Pra negar os prazeres da carne durante os 361 dias restantes, em especial os 40 depois da festa, era preciso celebrar como nunca uma liberdade provisória, condenada por um intenso controle religioso teocêntrico.

Já no século XIII, surgiram os bailes de máscara, protagonizados exclusivamente pela nobreza italiana. No século XIX, a festa já estava razoavelmente popularizada no continente europeu, com personagens presentes até hoje nos salões, como Pierrô, Arlequim e Colombina.

No Brasil, existe Carnaval desde pelo menos o século XVII, algum tempo depois da chegada dos portugueses. O século XIX trouxe a onda carnavalesca europeia para o país, mas ela era restrita a entrudos familiares ou populares. O Entrudo Popular tinha brincadeiras grosseiras e violentas, como o lançamento de urina, sêmen ou água nos participantes.

É somente na década de 1920 que o Carnaval ganhou as ruas, com os sambas e as marchinhas. Aliás, as próprias marchinhas já nasceram como uma subversão descarada à ordem das tradicionais marchas militares. Hinos oficiais e cânticos de disciplina e ordem foram transformados versos descontraídos e desafiadores.

Verdade seja dita, as marchinhas nunca foram conhecidas exatamente pela inocência. A primeira delas, composta por Chiquinha Gonzaga, celebrava o pertencimento à lira, ou seja, à boemia e à farra. Em 1920, logo depois da maior pandemia do século, causada pela gripe espanhola, a marchinha de maior sucesso bradava os seguintes versos, indicados conforme o sexo do cantor:

Cavalheiros
Na minha casa não se racha lenha!
Damas
Na minha racha! Na minha racha!
Cavalheiros
Na minha casa não há falta d'água!
Damas
Na minha abunda! Na minha abunda!
Damas
Na minha casa não se pica fumo!
Cavalheiros
Na minha pica! Na minha pica!

No Carnaval de 1954, a marchinha "Saca Rolha" dizia: eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha, bebo até me afogar. "Me dá um dinheiro aí" celebra a mendicidade para fins exclusivamente etílicos. E se não der... você vai ver a grande confusão. Sucesso com Carmen Miranda, em 1941, "Mamãe eu quero mamar" também não precisa ser entendida exatamente um antro de bons modos com as mamães. 

Na letra de Mirabeau Pinheiro, sucesso no Carnaval de 1953, pode me faltar o amor / Há, há, há, há! / Isto até acho graça / Só não quero que me falte / A danada da cachaça.

Pode ser realmente que o Carnaval tenha sido melhor num passado distante. Mas se o argumento pra essa conclusão for a inocência de outrora nos salões, acho que na verdade fomos nós que nos tornamos um tanto mais caretas.

Abraços,
Murilo

Nenhum comentário:

Postar um comentário