segunda-feira, 22 de junho de 2015

Analfabetismo Funcional e Disciplina Industrial

Como a separação entre vida e trabalho denuncia a crise no ensino superior brasileiro

por MURILO CLETO



2015 tem sido um péssimo ano de abertura para o quadriênio da "Pátria Educadora". Se é verdade, por um lado, que os investimentos em Educação nunca foram tão altos quanto nos últimos doze anos, por outro a crise pós-eleições escancarou uma série de fragilidades em que se constituíram as diversas injeções de recursos, não apenas federais e não apenas no setor. Com o corte de R$ 9 bilhões somente do Planalto, repasses têm sido atrasados e a situação do Fies, no ensino superior, tornou-se nada menos que caótica. Pra piorar, as principais greves estaduais foram vencidas pelos governos com muita truculência.

No início do ano, a Unesco já anunciou que o Brasil não vai atingir todas as metas para educação estipuladas em 2000 para 2015. Pelo acordo, os países deveriam 1) expandir os cuidados na primeira infância e educação; 2) universalizar o ensino primário; 3) promover as competências de aprendizagem e de vida para jovens e adultos; 4) reduzir o analfabetismo em 50%; 5) alcançar a paridade e igualdade de gênero; e 6) melhorar a qualidade da educação.

Ao mesmo tempo em que o acesso ao ensino fundamental no Brasil atingiu 94% da população entre 7 e 14 anos, os vergonhosos índices de analfabetismo caíram muito discretamente. Em 2002, eles estavam em 10,9%. Doze anos depois, eles ainda eram 8,3%, pouco menos de 13 milhões de brasileiros. Some-se a isso o fato de que apenas 44,5% das crianças do 3º ano em 2012 mostravam alfabetização adequada, apesar dos índices de repetência terem diminuído de 24%, em 1999, para 9%, em 2011. 

Uma das principais bandeiras políticas do Partido dos Trabalhadores, o acesso ao ensino superior, que saltou 81% em dez anos, esconde uma realidade alarmante: 38% dos universitários são analfabetos funcionais. É o que dizem o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa em pesquisa divulgada em 2014. No Distrito Federal, o índice subiria pra mais da metade, segundo a PUC de Brasília.

Contribui pra essa paralisia a espessura do debate político sobre educação no país, que ainda insiste em desconsiderar as especificidades dos sistemas de financiamento e a distribuição de responsabilidades entre entes federativos, além da atuação do poder legislativo. Não faz muito tempo, um deputado tucano do Rio Grande do Norte apresentou projeto de lei pela criminalização da "doutrinação ideológica" nas escolas e é mais ou menos isso que defende o movimento Escola Sem Partido, que vem ganhando espaço consideravelmente no país. Mas, apesar de necessária, essa é uma outra conversa.

Enquanto isso, a educação básica sofre com um cenário que é massivamente ignorado. Os municípios, hoje os principais responsáveis pela formação dos estudantes no país, estão quase todos enforcados com os índices de gastos com o pessoal conforme previsto pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Governos federal e estadual orgulham-se, com méritos, dos seus programas. Mas quem os executam são os municípios, do Bolsa Família ao PAC, majoritariamente. E pra isso é preciso ter funcionários.

Criada na esteira do imaginário neoliberal de contenção do Estado na economia, a LRF estabelece um limite de 51,3% do orçamento global dos municípios para folha de pagamento e encargos trabalhistas. Mas o recurso do Fundeb, que constitui a esmagadora maioria do orçamento da secretaria, pode ser usado, via de regra, em apenas 60% pra garantir salários e encargos dos profissionais da educação. Na prática, isso significa muito dinheiro amarrado enquanto 1/3 dos professores no país é temporário e as prefeituras arcam com fortunas em multas graças às suas contratações provisórias, vedadas por lei e incansavelmente apontadas como irregulares pelo Tribunal de Contas. No entanto, como realizar concurso se o limite de gastos com pessoal já passou do pescoço faz tempo? Fora de autarquias, nada menos que impossível.

Dessas questões, revoltados on ou offline não querem saber. Mas é possível que causas e sintomas deste quadro estejam muito além de questões técnicas.

VIDA E TRABALHO NA MODERNIDADE

Em Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial, Edward Palmer Thompson discutiu com primazia os efeitos do processo de transição de um tempo "natural" para um tempo "artificial" no limiar duma modernidade que se anunciava através das máquinas. Na Inglaterra do século 18, o relógio já não era mais exatamente uma novidade, mas passou a pautar, a partir de então, a relação da classe trabalhadora com o tempo, algo, isso sim, inédito.

Até então, a medição do tempo esteve relacionada de alguma forma com os processos familiares no ciclo do trabalho ou mesmo das tarefas domésticas. Este tempo inexato era orientado através de afazeres cotidianos comuns a todos. Em Madagascar, por exemplo, o tempo podia ser medido pelo "cozimento do arroz" (mais ou menos meia hora) ou pelo "fritar de um gafanhoto" (um instante). Já no Chile do século 17, um terremoto durou "dois credos". O cozimento de um ovo durava aproximadamente uma Ave-Maria rezada em voz alta. Até pouco tempo atrás, na Birmânia, os monges se levantavam quando havia luz o bastante para ver as veias da mão. Na Inglaterra, já houve o pissing while - o tempo de uma mijada.

Tônica do contemporâneo, a pressa já foi vista como "falta de compostura combinada com ambição diabólica" entre os camponeses cabilas na Argélia, contou Pierre Bourdieu. Até a Revolução Industrial, o tempo parecia mais um instrumento que permitia e orientava a realização do trabalho do que qualquer outra coisa. Com a virada a partir do século 18, a relação umbilical entre vida e trabalho foi brutalmente rompida pra dar lugar a um processo de alienação que se materializa no assalariamento.

Invenção da Roma Antiga, que remunerava os seus soldados com sal, o salário anuncia o que é o trabalho na modernidade: um objeto passível de compra. Na leitura de Marx, o que caracteriza o proletário é não ter a propriedade privada dos meios de produção e vender a sua força de trabalho pra dela sobreviver. E descende daí o grande paradigma do trabalho no Ocidente contemporâneo.

"Bom dia, velho Wright, que Deus o ajude a terminar o seu trabalho", saudou certa vez um camponês o criado que consertava uma carroça na estrada. Com uma grosseria divertida, o velho lhe respondeu: "Pouco me importa se ele ajudar ou não, trabalho por dia". O relato está em The great law of subordination considered: or the insolence and insufferable behaviour of servants in England duly enquired into, escrito em 1724 por Daniel Defoe. A indolência, fruto quase inequívoco deste processo, precisou ser combatida com um empreendimento jurídico-moral de fôlego. E não dá pra dizer que não funcionou: criminalizada à direita e à esquerda, a vadiagem tornou-se objeto de tremenda repulsa fundamentada pela positividade do trabalho concebida por Smith e Locke. Neste sentido, o papel da escola foi vital: baseada na indústria - inclusive no formato -, sua função cívica e moral foi determinante para a expansão da educação, um privilégio de poucos, também às classes mais baixas.

Descende daí a invenção do lazer, resultado deste apartamento entre o que é a vida, de um lado, e o que é o trabalho, de outro.

A AVALANCHE DE PRIVACIDADE COMO SINTOMA

Apesar de todas as transformações econômicas a partir do fim da 2ª Guerra Mundial e da ascensão do neoliberalismo nos anos 70, é mais ou menos consenso que a escola no Brasil parou no século 19. Há quem queira, inclusive, enquadrá-la nos novos princípios do mercado, orientado pela meritocracia. Mas o fato é que a escola como espaço de produtividade e a escolaridade formal como mecanismo de ascensão social provocaram a multiplicação de uma legião de analfabetos funcionais no país.

Com a redução da carga horária mínima no ensino superior, especialmente nas licenciaturas, o processo de agravou. A ideia de obter melhores salários através da graduação provocou não necessariamente a aumenta na procura destes cursos, mas a venda do sonho da ascensão. Matriculam-se em História o policial militar que pretende subir de patente, a comerciária que quer prestar concurso público. Em ambos os casos, que diferença faz o engajamento na pesquisa? Não são poucos os que "caem" na sala de aula por falta de outra opção melhor. Neste mesmo sentido, são poucos os planos de carreira que oferecem condições de permanência, de dedicação exclusiva e de pesquisa.

Pelo Facebook, principal termômetro da vida pública contemporânea, estudantes e profissionais da educação, assim como os demais, estão promovendo uma verdadeira avalanche de privacidade. Entre selfies e correntes religiosas, a vida engole o trabalho. Não é de Michel Foucault que eles estão falando. Este é um lamento? Jamais, mas um sintoma que merece mais atenção do que a comumente destinada. Algo está sendo dito quando o início de uma leitura técnica significa a interrupção da vida cotidiana. E as hipóteses não são das melhores.

Ou a educação se reinventa ou o seu potencial transformador se reduz de vez às cinzas do carvão que move a locomotiva.

Abraços,
Murilo

2 comentários:

  1. Parabéns pelo primoroso e ponderado artigo, Murilo! Fruto de uma análise setorial muito sólida e consistente. Leva todos nós a uma séria reflexão sobre o Ensino e a Sociedade. Parabéns e obrigado por nos brindar com esse artigo! Abs

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