terça-feira, 11 de agosto de 2015

Desigualdade social e a arte de pôr a mão na consciência

Como Nadina Gordimer nos mostra a importância de refletir acerca das desigualdades através de seu livro O Pessoal de July

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

"Ele girava o botão sintonizador do rádio e experimentava a antena em todos os ângulos permitidos por seu eixo. Os dedos se moviam numa concentração hesitante, como alguém tateando, prestando atenção para ouvir a combinação que abriria o segredo. A antena tremia como a de um lagostim machucado que ele uma vez pegara em Gansbaai. Ela atraiu sua atenção com uma pilha que segurava verticalmente entre o polegar e o indicador. Ele recusou. Não existe a música das esferas, a ciência eliminou esse mito juntamente junto com todos os outros; há apenas os sons do caos, rugindo, dilacerando, crepitando, e é a partir disso que a ordem do mundo acabou surgindo. Não há paz no além – nem aqui tampouco. Quando a barulhada cessou por um momento, apenas um suspiro cósmico; ouviram o sussurro do tempo e do espaço, a onda pairando sobre tudo o que existe"

Quem se interessa pela história da África do Sul ou pela história dos incessantes erros que a humanidade insiste em cometer, vai acabar se deparando em algum momento com o apartheid. O apartheid, um dos mais longos e cruéis regimes racistas do mundo, é uma infeliz lembrança do alcance da crueldade humana.

O apartheid começou em 1948 e acabou em 1994, ano em que Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul. Dentre as medidas legais vigentes estava a segregação de negros e brancos, ao ponto de negros não poderem frequentar lugares destinados ao público e de relações sexuais inter-raciais serem estritamente proibidas. Consequentemente, o apartheid gerou não apenas uma desigualdade social enorme entre brancos e negros, mas também desencadeou respostas à altura. Foi na busca de mudança que surgiram figuras importantes como o já citado Nelson Mandela.

Porém, além do grande nome que é o de Mandela, houve outra figura que participou ativamente do combate contra a segregação racial e ajudou a mostrar a dura realidade da África do Sul: Nadine Gordimer. A autora foi uma das vozes mais importantes na luta contra o apartheid, de modo que grande parte dos seus livros trata não apenas dos tempos do violento regime, mas também das injustiças e mudanças ocorridas na África do Sul depois do fim do apartheid.

Ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1991, a autora também recebeu mais de doze doutorados honoris causa por universidades espalhadas pelo mundo – desde Yale até Leuven (prestigiada universidade belga). E foi de dentro dessa mente brilhante que surgiu a história do livro O Pessoal de July, oitavo romance da autora. Escrito em 1982, o romance chegou a ser censurado pelo governo da época. Contudo, Gordimer nunca abandonou seu país de origem e continuou sempre lutando, fazendo parte do Congresso Nacional Africano (núcleo que reivindicava uma sociedade unidade e não segregacionista) e militando pela causa da libertação de Nelson Mandela – de quem foi grande amiga. 

Numa África do Sul habituada com injustiças e desigualdades, Nadine faz uma suposição curiosa: e se um dia os negros fizessem uma verdadeira revolução e tomassem o poder, como seria a vida dos brancos? E é justamente nesse ponto que começa o enredo do livro. Os brancos vêm sendo caçados e assassinados por negros revolucionários. Entre os brancos que estão fugindo para o interior do país, nos deparamos com os Smales. 

Os Smales são uma típica família rica e branca da África do Sul, que utilizam-se de todas as regalias que brancos podem ter em tal sociedade. Com a revolução pensada por Nadine e com a matança que começa a acontecer, eles se veem desamparados. Contudo, o criado que trabalha na casa da família há quinze anos, July, salva os patrões e seus filhos. Com a pick-up antigamente usada por Bam Smales para fazer safaris, July os leva para sua aldeia de origem, local onde eles correriam menos riscos de serem encontrados e assassinados. Os Smales passam a viver numa aldeia com tradições tribais e, com o pouco que conseguem levar, surge a necessidade de adaptar seus costumes aos da nova moradia.

Isso já é perceptível logo nos primeiros capítulos do livro. Contudo, apesar de muito intrigante, é necessário ter muita atenção para ler a história – que já começa com Maureen Smales dentro de uma choupana, deparando-se com a nova realidade de sua vida. Além disso, a construção do romance mostra grande profundidade através de cenas independentes, flashses, memórias e interiorizações em relação aos pensamentos das personagens que devagar vão formando um todo, nos ajudando a entender a história tanto da família dos Smales quanto da família de July.

Com o decorrer da narrativa, vamos nos familiarizando com a rotina não apenas dos que chegaram, mas também daqueles que passaram a vida toda numa aldeia tão semelhante a outras na África – a pobreza é onipresente e uma perspectiva maior de vida não é possível. A família branca e rica, então, passa a viver com negros que sofrem diretamente com a desigualdade social do país. E, o que é mais interessante, como a realidade dos negros não muda porque eles não ascendem socialmente, podemos acompanhar, assim, a grande mudança de realidade da família dos Smales. A vida deles é que sofre a maior reviravolta, principalmente porque eles devem se adaptar e encarar de frente a realidade da maioria dos africanos. Bam, Maureen e seus filhos Victor, Bryce e Gina sentem uma dificuldade notável diante da nova posição e dificuldades na vida. Apesar da parte inventiva do livro (a revolução que deu certo), é importante notar a inteligência da autora ao estruturar o enredo: colocando brancos na realidade de negros a crítica ficou muito mais real e palpável do que se ela tivesse prosseguido na imaginação e tivesse colocado negros vivendo no lugar de brancos.

Com uma linguagem seca e sem muitos floreios, a autora consegue realizar algo que é muito importante: ela faz com que a família abastada e rica se coloque (neste caso, literalmente) no lugar de uma família africana marginalizada e que sofre diretamente com a desigualdade e injustiças, deparando-se com o medo de perseguição e com a pobreza que milhares de sul africanos tiveram que encarar. Este, a meu ver, é o ponto alto da ideia do enredo que Nadine teve porque, muito mais do que achar que a família merece ou não tal tipo de destino, Nadine apenas cria uma possibilidade capaz de desencadear muita reflexão. 

Colocar-se no lugar do outro, de uma maneira saudável e de acordo com as perspectivas corretas, é um passo essencial para entender as dificuldades e necessidades do próximo. Num sentido político amplo, isso é essencial. E talvez a grande parte da população brasileira que critica planos sociais como Mais Médicos e Bolsa Família através dos argumentos mais mesquinhos e ingênuos, deveria ler livros como esse para aprender a pensar com a cabeça de outra pessoa em outa realidade e, assim, entendê-la (ou, pensando mais modestamente, poderiam pelo menos melhorar um pouco seus argumentos). Muitos de nós nunca passamos pela experiência horrível de passar fome ou de não conseguir um simples atendimento médico, e provavelmente isso se deve a uma constante e generalizada atitude egoísta de tapar os olhos para uma realidade triste, mas indubitavelmente presente. 

Para (não) variar, gostaria de deixar mais um apelo para nossas editoras brasileiras (neste caso, a Rocco): faltam notas explicativas para termos e questões culturais e históricas, que deixariam a leitura muito mais completa e interessante. De qualquer maneira, o livro de Nadine não é simples ou fácil, mas é o tipo de narrativa que nos ensina a colocar a mão na consciência. Portanto, vale a pena encarar suas intensas 165 páginas. 

Ademais, acredito que vale a pena mergulhar e se aventurar na obra de uma autora como foi Nadine Gordimer, que infelizmente veio a óbito no ano passado, mas que será eterna fonte de inspiração e coragem, deixando isso claro através de suas declarações inspiradoras: “Algumas coisas foram conquistadas, e foram conquistadas por meio da coragem de muita gente. O papel dos escritores é pequeno, comparativamente, mas, depois que a batalha acaba, depois que os mortos estão caídos, são os escritores, se houver escritores, que realmente contam como as pessoas chegaram àquele conflito e, depois, como elas negociam algum tipo de conciliação entre os dois lados em que a humanidade supere as diferenças”.

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