Aspectos jurídicos e socioeconômicos no processo de formação de municípios na federação brasileira
por PAULO ROBERTO COSTA STRUMINSKI JUNIOR*
INTRODUÇÃO
O processo de formação de municípios é assunto típico do Direito Constitucional, pois afeta diretamente a organização do Estado e a divisão territorial do poder. Diante da importância do tema, será feita uma abordagem multidisciplinar. Primeiramente, será estudado o atípico modelo federativo brasileiro e a evolução dos municípios na federação.
Em seguida, serão analisados os requisitos jurídicos para a formação de municípios que constam na Constituição Brasileira de 1988. Também serão avaliados os requisitos socioeconômicos que devem orientar esse processo. A avaliação terá como foco os estudos de instituições públicas oficiais de pesquisa.
Dando continuidade, será verificado o posicionamento da Suprema Corte brasileira a respeito da omissão do Congresso Nacional em regulamentar o processo de formação de municípios e o recente projeto de Lei Complementar que visa solucionar a questão.
Após o estudo da legislação, será investigado como a criação exagerada de municípios inviáveis pode prejudicar as finanças públicas e como a transição demográfica pode influenciar nos repasses de recursos públicos. Por fim, serão sugeridos novos critérios para a formação de municípios.
1. O PECULIAR MODELO FEDERATIVO BRASILEIRO
A palavra federação, segundo o magistério de Michel Temer, origina-se de foedus, foederis, e tem por significado pacto, aliança, portanto, união entre Estados. Sendo o Estado Federal marcado pela autonomia política e se diferenciando do Estado Unitário que é caracterizado pela descentralização administrativa (TEMER, 2012, p. 59).
Em estudo sobre a evolução histórica da Organização do Estado brasileiro, Marcelo Novelino aponta que apenas a Constituição Imperial de 1824 adotou a forma unitária de Estado, por forte influência da Constituição Francesa de 1814. A partir da Constituição Republicana de 1891, por inspiração do direito norte-americano, o Brasil consagrou a forma federal de Estado (NOVELINO, 2014, p. 711).
Entretanto, em dois períodos históricos, no Estado Novo e no Regime Militar, o federalismo brasileiro foi tão somente formal, pois a centralização excessiva de poderes no Executivo federal e o desrespeito às autonomias estaduais, tornaram o Brasil, de fato, um Estado Unitário.
Para que haja autonomia política, segundo José Afonso da Silva, devem estar presentes dois elementos básicos: (a) a existência de órgãos governamentais próprios e (b) a repartição de competências (SILVA, 2012, p. 102). Esses elementos estão presentes no texto constitucional de 1988 e são observados pelos poderes constituídos.
Interessante observar que a Carta Magna de 1988 estende a autonomia política aos municípios, elevando-os a verdadeiros entes federados. No direito comparado, é comum o modelo dual de federação, com governo central e governos regionais. Entretanto, o constituinte de 1988 inovou e instituiu uma organização bastante peculiar. O artigo 1º estabeleceu a união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Mais adiante, no artigo 18, reafirmou a inclusão dos municípios na organização político-administrativa do Brasil, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, garantindo a todos autonomia (BRASIL, 1988).
Essa nova configuração federativa fez surgir, na visão de Paulo Bonavides, uma federação de dimensão trilateral, com o alargamento do raio de autonomia dos municípios (BONAVIDES, 2014, p. 352).
1.1 A AUTONOMIA DAS MUNICIPALIDADES ENQUANTO ENTES FEDERATIVOS
A elevação dos municípios ao status de ente federativo recebe críticas de José Afonso da Silva. Para o ilustre constitucionalista não existe federação de municípios, somente de estados; tampouco há representação das municipalidades no Congresso Nacional; outro problema é o compartilhamento territorial dos municípios com os estados; além do fato de que a intervenção municipal só pode ser efetivada pelos estados. Por todas essas características, os municípios se aproximam mais de divisões político-administrativas dos estados do que de entes federados (SILVA, 2012, p. 477).
Apesar das respeitáveis críticas, a maioria da doutrina entende que os municípios são entes federativos, pois possuem autonomia política consagrada pela Constituição. Nesse sentido, explica Marcelo Novelino que ao contrário de outras federações, no Brasil os municípios possuem âmbitos exclusivos de competências políticas, portanto há de se reconhecer seu status de ente federativo e consequente autonomia, a despeito das suas peculiaridades (NOVELINO, 2014, p. 756).
A preocupação com a autonomia municipal é tamanha que a própria Constituição Brasileira, em seu artigo 34, inciso VII, alínea “c”, prevê a intervenção nos Estados para assegurar a observância do princípio da autonomia municipal (BRASIL, 1988).
A descentralização política dos municípios, além de ser uma questão constitucional, pode desempenhar um relevante papel no fortalecimento da democracia, sobretudo por possibilitar maior participação popular, como observa André Ramos Tavares (TAVARES, 2014, p. 852).
2. O PROCESSO CONSTITUCIONAL DE FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS
O texto original da Constituição Brasileira de 1988 previa um processo simples para a formação de municípios, com a exigência de Lei Complementar Estadual. Essa facilidade propiciou “[...] a proliferação, sobretudo com fins eleitoreiros, de Municípios sem a estrutura necessária para o exercício de suas autonomias [...]” (NOVELINO, 2014, p. 724).
Para impedir a formação de municípios, que já se encontravam em quantidade alarmante, foi editada a Emenda Constitucional nº 15/96 (BRASIL, 1996), criando novo procedimento a ser observado na criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, notadamente a exigência prévia da edição de Lei Complementar Federal (TAVARES, 2014, p. 861).
2.1. REQUISITOS JURÍDICOS PARA A FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS
A nova redação do artigo 18, parágrafo 4º da Constituição Brasileira de 1988 prevê quatro requisitos para a formação de municípios:
§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei (BRASIL, 1988).
A Lei Complementar Federal irá determinar, abstrata e genericamente, o período para formação de municípios. Ressalte-se que até o momento, passados mais de 18 anos da nova redação do parágrafo 4º, tal legislação não existe.
Para os Estudos de Viabilidade Municipal – EVM, apresentados e publicados na forma da lei, deverá ser editada uma lei ordinária federal que orientará como devem ser elaborados e divulgados.
Sobre a consulta prévia, mediante plebiscito às populações dos Municípios envolvidos, José Afonso da Silva explica que o termo “populações” refere-se tanto a população da área que se deseja criar, quanto da área que irá remanescer, diferentemente do que sempre se fez no Brasil, apenas consultando a população daquela área e não desta (SILVA, 2012, p. 478).
A lei ordinária estadual de criação, incorporação, fusão ou desmembramento regulamentará as alterações decorrentes da alteração territorial.
2.2. REQUISITOS SOCIOECONÔMICOS PARA A FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS
Além dos requisitos jurídicos, a formação de municípios está vinculada logicamente à satisfação de requisitos socioeconômicos que devem ser analisados nos Estudos de Viabilidade Municipal – EVM.
A respeito de critérios socioeconômicos, a redação anterior do parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição Brasileira previa tão somente que a formação de municípios deveria preservar “[...] a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano [...]” (BRASIL, 1988). A nova redação não tratou desses aspectos, restando à Lei Complementar Federal detalhar quais requisitos socioeconômicos deveriam ser observados.
Recentemente, foi aprovado pelo Congresso Nacional e vetado pela presidente da República o projeto de Lei Complementar nº 104/14 (BRASIL, 2014). Da leitura do texto do projeto, é possível verificar que foram abordados os aspectos econômico-financeiro, político-administrativo, socioambiental e urbano.
Esse projeto será analisado mais profundamente em capítulo próprio. No momento, cabe ressaltar que o EVM deveria abordar a viabilidade dos municípios considerando questões econômicas, já que muitos dos atuais municípios brasileiros não possuem capacidade financeira; geográficos, uma vez que busca a melhor ocupação territorial; demográficos, pois questões como migrações, crescimento ou diminuição das populações são fatores a se considerar; histórico-culturais, visto que a população interessada deve ter uma identidade comum; sociais, porque a organização do território deve ter como fundamento melhorar a administração e, consequentemente, a qualidade de vida dos munícipes; e políticos, dado que haverá divisão de poderes e de recursos públicos.
A importância de essas questões serem abordadas no EVM ficou evidente em texto publicado pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, no qual se demonstrou, através de dados estatísticos, demográficos e econômicos que a intensa criação de municípios resultou em: (a) aumento de transferências de recursos dos municípios grandes para pequenos desestimulando a atividade econômica no país; (b) benefício financeiro das transferências para pequena parcela da população, pois a maior parcela da população vive em municípios grandes; e (c) que os recursos de transferências são gastos com despesas administrativas e do legislativo, em detrimento aos gastos sociais e investimentos públicos.
Dessa forma, a criação de municípios deve observar também aspectos não jurídicos e, nesse ponto é notório o benefício da utilização de dados produzidos pelo IPEA e pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que serão mais detidamente analisados em capítulo específico.
3. A OMISSÃO INCONSTITUCIONAL DO CONGRESSO NACIONAL
Nathalia Masson ensina que desde a edição da Emenda Constitucional nº 15/96 até a edição da Lei Complementar Federal exigida pelo artigo 18, parágrafo 4º da Lei Maior não poderá haver formação de municípios (MASSON, 2014, p. 411).
Trata-se o aludido artigo 18, parágrafo 4º de norma constitucional de eficácia limitada a depender, portanto, de regulamentação para operar a completude de seus efeitos. Como é sabido, o Congresso Nacional não se incumbiu de editar a legislação requerida, permanecendo inerte e omisso por longo período.
3.1. A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS EM DESACORDO COM A NORMA CONSTITUCIONAL
A omissão legislativa, em verdade, impossibilitava os estados de criarem municípios, no entanto e a despeito disso, vários estados editaram leis criando municípios, em flagrante desacordo com o procedimento descrito na Constituição Brasileira.
O problema desses municípios, conhecidos como putativos, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal – STF nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADI nº 2240, 3316, 3489 e 3689.
A Suprema Corte se deparou com um dilema, por um lado era indiscutível a inconstitucionalidade das leis estaduais que criaram municípios, por outro lado as municipalidades existiam de fato há anos, relações jurídicas surgiram com base nessa situação fática.
Depois de muito debate, decidiu-se em homenagem aos princípios da boa-fé e segurança jurídica, pela manutenção dos municípios e na ADI nº 3682 foi declarada a mora do Congresso Nacional, determinando-o a editar a Lei Complementar Federal exigida pelo artigo 18, parágrafo 4º, que deveria contemplar a realidade dos municípios putativos (BRASIL, 2007).
Mesmo após a determinação do STF, o Congresso Nacional, por razões políticas, optou em não editar a legislação necessária, e regularizou os municípios putativos através da Emenda Constitucional nº 57/08, acrescentando o artigo 96 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT e convalidando os municípios “[...] cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006 [...]” (BRASIL, 2008).
3.2. O PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR DE FORMAÇÃO DE MUNICÍPIOS
Há poucos meses, o Congresso Nacional ultimou a votação do projeto de Lei Complementar – PLC nº 104/14 (BRASIL, 2014). Em consulta ao sítio eletrônico do Senado Federal é possível verificar que o aludido projeto foi iniciativa do senador Mozarildo Cavalcanti em 2002, tramitou 12 anos até ser aprovado e encaminhado para sanção ou veto presidencial.
Ocorre que a presidente da República manifestou-se pelo veto integral do referido projeto, por contrariedade ao interesse público. As razões do veto são o impacto negativo do aumento de despesas com a manutenção dos novos municípios e a redução dos recursos destinados às atuais municipalidades em razão da pulverização das parcelas do Fundo de Participação dos Municípios – FPM (BRASIL, 2014). A apreciação do veto ainda está pendente.
Não há dúvida que a criação de entes federativos implica em redução das transferências dos entes já existentes. Por esse motivo o legislador deve encontrar um equilíbrio delicado para não engessar a estrutura federativa, e também não inviabilizar as finanças públicas com municípios que não possuam condições de subsistência.
Da leitura do PLC nº 104/14, constata-se que houve uma enorme evolução no novo procedimento, quando comparado ao anterior. Destacam-se alguns pontos interessantes: a conceituação dos termos criação, incorporação, fusão, desmembramento, município envolvido e preexistente. A estipulação do prazo para a tramitação do procedimento, respeitando o calendário eleitoral.
O projeto também prevê requisitos para iniciativa do procedimento, quantitativos populacionais mínimos por região geográfica, quantitativos de imóveis e dimensões territoriais.
Sobre os Estudos de Viabilidade Municipal – EVM determina que devam abordar: (a) viabilidade econômico-financeira; (b) viabilidade político-administrativa; e (c) viabilidade socioambiental e urbana. Também deverá estimar receitas, despesas, quantidade de vereadores e de servidores públicos. Definirá preliminarmente os limites municipais e potenciais impactos ambientais, entre outras questões.
Ao EVM deverá ser dada publicidade, após prazo fixado na lei ocorrerá o plebiscito que consultará as populações tanto da área a ser desmembrada quanto da área remanescente.
Pelo menos no que se refere ao quantitativo populacional, pode-se considerar o projeto bastante rigoroso, pois a maioria dos atuais municípios brasileiros não existiria se a eles fossem aplicadas as suas regras.
Tome-se como exemplo a região sudeste, onde os novos municípios deverão possuir vinte mil habitantes ou mais. Pela estimativa populacional de 2014 do IBGE, dos 645 municípios paulistas, tão somente 250 possuem mais de vinte mil habitantes (BRASIL, 2014).
Ao que parece, o EVM ganhou inegável valor. É com base nele que serão tomadas as decisões sobre a criação de municípios. Portanto, para que a União federal não venha a sofrer, sustentando municipalidades inviáveis, é necessário que a elaboração do EVM ocorra de forma técnica e isenta.
4. A EVOLUÇÃO DO QUANTITATIVO DE MUNICÍPIOS NO BRASIL
A evolução quantitativa de municípios no Brasil tem ocorrido de forma não linear, há momentos de forte expansão, intercalados de períodos de baixa criação de municípios.
Dados divulgados pelo IBGE apontam a existência de ondas emancipacionistas entre as décadas de 1950, 1960 e 1970. Entre 1991 e 2000, já sob a égide da Constituição Brasileira de 1988, surgiram 1016 municípios. Na década seguinte, entre 2000 e 2010, com as novas exigências da Emenda Constitucional nº 15/96, foram criados apenas 58 municípios (BRASIL, 2011).
A intensa fragmentação do território, em poucas décadas, é facilmente constatada ao se analisar os mapas de urbanização do IBGE, outra característica marcante dessa proliferação de municípios é sua concentração nos estados do sul e sudeste e litoral dos estados do nordeste (BRASIL, 2011).
Com esse aumento desenfreado das emancipações municipais, em 2014 o Brasil atingiu a marca de 5570 municípios, dos quais quase 70% possuem menos de vinte mil habitantes (BRASIL, 2014).
4.1. OS IMPACTOS FINANCEIROS DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS
O Fundo de Participação dos Municípios – FPM foi criado pela Emenda Constitucional nº 18/65 (BRASIL, 1965). Na época, 10% do total arrecadado pela União com o Imposto sobre Renda e Proventos de Qualquer Natureza – IR e o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, seria repassado aos municípios.
Entre 1969 e 1975, o montante foi reduzido a 5% e, desde então, vem sendo continuamente aumentado até atingir 22,5% em 1993. Estudo do IPEA demonstrou que o FPM tem forte componente redistributivo, pois retira recursos de regiões de maior arrecadação do IPI e IR repassando-os para regiões de menor arrecadação (BRASIL, 2006).
Porém, dada à forma como a legislação definiu a cota do FPM, sobretudo para os municípios de menor população, acaba ocorrendo um desequilíbrio nos valores repassados. Municípios menores e nem sempre mais pobres recebem mais dinheiro por habitante que municípios maiores. Nesse sentido, o IPEA sugeriu em nota técnica que:
“[...] mantidos os critérios de repartição do FPM, há um incentivo à emancipação que distorce todo o sistema. Apenas com a correção do atual viés existente em favor dos micromunicípios, derivado da atual forma de divisão do FPM, é que se terá a real dimensão dos movimentos emancipatórios que se baseiam em motivações não-fiscais. Assim, propõe-se que tal distorção seja sanada, ou ao menos amenizada, antes de se discutir e aprovar uma nova regulamentação da criação de municípios, seguindo o Artigo 18, §4º, da Constituição Federal” (BRASIL, 2013).
Na mesma nota técnica, o IPEA estimou que, com a entrada em vigor do PLC nº 104/14, a quantidade mínima inicial de emancipações seria de 363 municípios. Saliente-se que o número da estimativa considera apenas informações de 19 assembleias legislativas, já que em 7 os dados não estavam disponíveis. Isso tudo demonstra que não se sabe realmente qual será a dimensão do impacto dessas emancipações nas finanças públicas.
4.2. A INFLUÊNCIA DA DIMINUIÇÃO POPULACIONAL PARA A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS
Como explicado anteriormente, os coeficientes do FPM estipulados na Lei nº 5172/66, para os municípios de até 156.216 habitantes, consideram apenas as faixas populacionais para efeito de repartição de recursos.
Além dos recursos do FPM, muito programas, projetos e repasses voluntários dos governos estaduais e federal utilizam como critério a quantidade de habitantes dos municípios. O próprio projeto de Lei Complementar nº 104/14 baseia-se, para criação de municípios, entre outros fatores, no quantitativo populacional.
A lógica incutida na legislação é de que a população irá aumentar continuamente. Esse raciocínio fazia muito sentido no passado quando as taxas de fecundidade eram altíssimas, mas a realidade brasileira aponta para um processo de transição demográfica. Os estudos do IBGE constatam que a população tem crescido menos, entre outros motivos pela queda da taxa de fecundidade:
A redução na taxa de crescimento verificada nas últimas décadas é reflexo, em grande medida, da queda da fecundidade. As mulheres estão tendo, em média, cada vez menos filhos. De fato, a Taxa de Fecundidade Total (TFT), que era de 6,28 filhos por mulher em 1960 e 5,76 filhos em 1970, passou a 2,38 filhos em 2000 e 1,90 filhos em 2010. Estima-se que em 2014 a TFT esteja em 1,74 filhos e, em 2017, caia para 1,67 filhos, uma taxa comparável à de países como a Holanda em 2005 e o Canadá em 2009 (BRASIL, 2014).
Há projeções do IBGE que indicam que a população brasileira deve começar a diminuir a partir do ano de 2042 (BRASIL, 2013). Esse processo demográfico já está influenciando fortemente o crescimento populacional dos municípios menores.
De fato, nota técnica divulgada pelo IBGE demonstrou que os municípios que apresentaram a menor taxa geométrica de crescimento populacional entre 2013/2014 são os de até 10.000 habitantes (0,28%), seguidos dos municípios de 10.001 até 20.000 habitantes (0,51%). A média brasileira para o mesmo ano é de 0,86%. O IBGE explica que “[...] o baixo crescimento, ou até decréscimo em muitos casos, pode ser explicado pelo componente migratório, influenciado por seu baixo dinamismo econômico [...]” (BRASIL, 2014).
Interessante observar que essas faixas populacionais de menor crescimento são justamente o foco de emancipação do projeto de Lei Complementar nº 104/14. Ao mesmo tempo, são os municípios que recebem proporcionalmente mais recursos per capita do FPM do que quaisquer outros municípios.
4.3. ASPECTOS RELATIVOS À VIABILIDADE MUNICIPAL
Nos últimos anos, tem sido muito discutida a questão do financiamento do Estado brasileiro. Desde a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, o Brasil optou por universalizar o acesso a vários direitos sociais antes limitados a poucos.
Materializar esses direitos, como o acesso à saúde e à educação é um enorme desafio para os municípios, sobretudo para aqueles de menor arrecadação. Por isso, a fragmentação do território em municipalidades cada vez menores pode resultar em maiores dificuldades de garantir acesso a direitos.
Em audiência pública no Senado Federal, Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios – CNM apresentou dados da CNM demonstrando que em 3466 municípios os repasses do FPM importam mais de 50% da receita tributária. Esse número representa 63% dos municípios brasileiros (BRASIL, 2014).
Na mesma apresentação, em que debatia nova forma de partilha do FPM sugerida pelo IBGE, a CNM alertou que é necessário que a faixa inicial do FPM garanta recursos para os municípios menores:
Outro ponto relevante a ser considerado é que existe um custo inicial FIXO inerente a qualquer estrutura de administração local, independente do quantitativo populacional, que precisa ser garantido. Este papel é desempenhando pelo FPM, cujo recurso representa quase a totalidade da receita de municípios pequenos (BRASIL, 2014).
Esse custo inicial fixo é, em verdade, despesa com o custeio de prefeituras, câmaras de vereadores, salários de prefeitos, secretários e vereadores. São gastos resultantes da administração e representação políticas que aumentam continuamente a cada município criado.
Essas despesas desviam recursos que poderiam estar sendo alocados para realização de investimentos em obras e serviços públicos, gastos sociais e contratação de servidores para efetivação de políticas públicas sob a responsabilidade dos municípios como saúde e educação.
Diante da realidade apresentada e das projeções, é razoável supor que os municípios menores devem enfrentar sérios problemas de financiamento público nas próximas décadas se continuarem a depender de repasses de recursos estaduais e federais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se confrontar o antigo processo de formação de municípios com o idealizado pelo PLC nº 104/14, fica evidente uma inegável evolução, pois os novos critérios são mais rígidos.
No entanto, o quantitativo populacional mínimo exigido ainda é baixo, nesse sentido deveriam ser considerados quantitativos mais elevados. Um parâmetro coerente é a faixa populacional de municípios que, na média, tem uma dependência menor dos repasses do FPM.
Embora o Brasil possua um número elevado de municípios, não pode o Congresso Nacional tentar resolver a situação omitindo-se de regulamentar o artigo 18, parágrafo 4º da Constituição Brasileira, pois o STF já determinou que fosse dada solução e a inércia legislativa engessa a federação, em uma época de transformações sociais constantes.
Como o atual modelo de partilha do FPM induz a emancipação de municípios inviáveis, até que seja criada nova fórmula de rateio de recursos, o ideal seria facilitar apenas as fusões e desmembramentos de localidades que desejassem se unir a municípios limítrofes, de forma que casos pontuais e específicos pudessem ser atendidos, sem resultar em aumentos de despesas.
Essa pesquisa tem a singela pretensão de indicar possíveis caminhos. Certamente, o legislador deverá procurar um meio de equilibrar os desejos legítimos de emancipação com a necessidade de se resguardar os recursos públicos, no interesse da melhor administração das localidades e do país como um todo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Paulo Roberto Costa Struminski Junior é licenciado em Letras e bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Itararé e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera. Atua como técnico em informação geográfica e estatística, coordenador de subárea e líder de área na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
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