Como o sucesso de público na sessão de cinema deste sábado em Itararé revela algumas das maiores contradições em política cultural no país
por MURILO CLETO
Público muito superior ao habitual compareceu ao Teatro Municipal Sylvio Machado, em Itararé, neste sábado, que quase o lotou pra acompanhar o longa-metragem "Um caipira em Bariloche", dirigido e estrelado por Mazzaropi nos anos 70, grande mestre do cinema nacional. Em Itararé, o programa Pontos MIS exibe pelo menos duas obras por mês desde 2013. Nunca com tanta audiência.
O sucesso da sessão é também, no entanto, sintoma de uma porção de fracassos na condução da política cultural no país. No mês retrasado, por exemplo, o belíssimo filme "Hoje", de Tata Amaral, expôs a dura realidade de uma nação que ainda não foi capaz de reconciliar-se consigo mesma depois de 21 anos de mais um regime militar que ainda tem sequelas expostas no cotidiano. Havia pouco mais de 10 espectadores no teatro. E tudo isso com, rigorosamente, a mesma estratégia de divulgação pra este fim de semana. A pergunta que não quer calar, óbvio, é: por quê?
Em primeiro lugar, há de se ponderar que obras tão diferentes não devem ter exatamente a mesma forma de anunciar, considerando que distintos públicos-alvo precisam de diferentes abordagens. Isso é bem verdade. Mas é verdade também que só isso não explica o fenômeno das ausências, comuns e agoniantes, em espetáculos e oficinas por todo o Brasil.
Na minha experiência como gestor cultural do município há mais de 2 anos, pude participar de uma infinidade de seminários, workshops e eventos que procuravam discutir a formação de público de cultura, maior preocupação do setor, além da falta de investimentos. E, como ninguém tem um remédio imediato, o diagnóstico deste paradigma precisa ser debatido com urgência, a começar pelo óbvio.
O óbvio esconde uma questão fundamental que é muito mais negligenciada do que deveria se se busca por alguma sustentabilidade na área da cultura. Trata-se do fato de que as pessoas vão quando a programação interessa. Os mesmos que anteontem estiveram no teatro devem ter visto a divulgação de outros filmes e não saíram de casa pra vê-los. Alguns ainda nem conheciam o espaço. E o que está escondido nisto? Pra mim, a capacidade de filtragem que o repertório do sujeito estabelece a respeito das suas próximas escolhas.
Acontece fenômeno semelhante com os espetáculos de dança, por exemplo. No ano passado, casa cheia pra receber a Companhia Brasileira de Danças Clássicas, enquanto grupos de dança contemporânea encaravam públicos significativamente menores. Ainda em 2014, era possível ouvir, do teatro, o barulho da Festa do Peão que bombava enquanto um monólogo era apresentado para poucas dezenas de pessoas.
A despeito das aparências, se houver, nada disso tem a ver com nível ou qualidade artística. Tem a ver com linguagem. A linguagem da dança contemporânea é específica demais pra quem se habituou ao modelo conduzido pela clássica. E o molde também serve pra outras expressões. O que está em jogo aqui é a recepção das pessoas a uma linguagem outra que não a de costume. Daí a necessidade de uma relação umbilical e verdadeiramente construída entre Educação e Cultura. Em 2014, o programa Mais Cultura nas Escolas, do governo federal, assumiu esse distanciamento e tentou, ainda que timidamente, encurtá-lo.
Some-se a esse panorama a decadência da relação do homem com o espaço público no Brasil desde pelo menos os anos 70. Sinônimo do ruim, do ineficiente, do moroso e do obsoleto, o espaço público não foi apenas confundido, mas brutalmente engolido pelo privado em todas as esferas. Seja no controle de áreas estratégicas do país, como se fez como nunca nos anos 90, seja no desenho das cidades, esculpidas pra abrigar confortavelmente carros e não pessoas, ou, ainda, no exercício do lazer, menos praça e mais shopping.
Aliás, quantas são as praças que têm condições de receber espetáculos no seu interior? Quantas são as praças que têm condições de receber gente pra passar uma tarde prazerosa? Em Itararé não é diferente. Erguido há 28 anos, o Teatro Municipal até hoje não foi plenamente concluído. Antes disso, veio asfalto, Festa do Peão (uma delas chegou a custar oficialmente o preço de mais de duas reformas do teatro), portal - qualquer coisa menos ele.
Hoje, a média de investimentos em cultura é de 0,3% dos orçamentos nas diferentes esferas do poder executivo no Brasil. De acordo com a Unesco, 70% da população nunca assistiu, ao vivo, a um espetáculo de dança. Se quer mais público, a política cultural precisa entendê-lo mais. E esse exercício passa por uma necessidade imensa de autocrítica que a velocidade das gestões que vivem sempre e apenas em função da próxima eleição não permite.
Ou a política cultural se reinventa, ou vai acabar de uma vez.
Abraços,
Murilo
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