domingo, 2 de junho de 2013

Bolsa Histeria

As farsas que mais têm a revelar sobre o que há de mais podre no chorume da internet


Não é de hoje que o chorume na internet me seduz. E nem a primeira vez que falo a respeito aqui. Mas o que os meses anteriores têm demonstrado a respeito do poder de voz das multidões nas redes sociais é que não basta ser intolerante, como também - e sobretudo - desonesto no trato com informações a respeito das políticas públicas de assistência, sejam elas quais forem.

Talvez nenhum evento tenha chamado tanto a atenção nesse sentido quanto a veiculação da falsa notícia de que o governo havia suspendido o "Bolsa-Família", na segunda quinzena do mês passado. Tumulto, desespero, revolta, e a multidão tomou agências da Caixa e lotéricas de todo o país. Enquanto o provável candidato do PSDB ao governo federal em 2014, Aécio Neves, "lamenta" que o Estado não tenha pedido desculpas pela confusão, seus correligionários inundaram a rede com a repercussão do caso, que evidentemente gerou todo tipo de frutos - aliás, um mais podre que o outro.

Na verdade a história começou mesmo pela internet. Na quarta-feira, dia 15, um perfil líder disseminou pelo Twitter a mensagem "Bolsa família começa sexta", e mais nada. Mesmo não dizendo efetivamente coisa alguma, ela foi compartilhada e ganhou corpo no microblog. Na sexta-feira, as mensagens se multiplicaram e somente a partir do sábado (18) a movimentação nas agências e lotéricas foi intensificada, curiosamente depois dos seus comentários. 

E o que mais chama a atenção foi a repercussão. Muito rapidamente a página "Anonymous Brasil" no Facebook postou um meme que atingiu mais de 70 mil compartilhamentos. A analogia? O clássico comparativo entre auxílio e vadiagem:


Pra quem não conhece, o Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do mundo, que privilegia 13 milhões de famílias com renda mensal per capita inferior a R$ 140 com a concessão de, no máximo, R$ 360/mês, de acordo com tabela de possíveis beneficiários. Adotado no México, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, África do Sul, Gana, Egito, Bangladesh, Turquia e Paquistão, o programa tirou da extrema pobreza mais de 22 milhões de brasileiros, a partir das seguintes exigências de contra-partida das famílias que o recebem: o comparecimento das consultas de pré-natal para as gestantes; a manutenção em dia do cartão de vacinação para os que têm filhos entre 0 e 6 anos; e frequência mínima escolar de 85% (10% a mais que a comumente exigida).

Aliás, na conta do Bolsa Família, estão inclusos também índices escolares superiores dos beneficiários do programa em relação aos demais, além de frequência mais regular, como noticiou O Globo. Ainda assim, que tal essa petição no Avaaz exigindo o fim do voto para quem recebe assistência? 

Independentemente dos efeitos sociais do programa, no entanto, a classe média grita diante do que ela tanto repudia: a desigualdade. Eu explico. Desde a Revolução Francesa, o que o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" tem feito é radicalizar a ideia smithiana de não-intervenção do Estado na economia e, consequentemente, na vida dos sujeitos. A partir da compreensão de que a propriedade privada dos meios de produção é um bem natural, portanto inegociável, essa mesma classe média da igualdade hoje é a principal porta-voz do desnível. 

Desde então, a ética do trabalho confere ao indivíduo - e ninguém mais - a responsabilidade sobre o seu sucesso na competição que se tornou o espaço público, ainda que a utilidade do solo seja compreendida como social

E é por isso que você tanto odeia pagar imposto. Porque odeia admitir que o seu trabalho seja de certa forma usado em benefício de outros, inclusive daqueles que pagaram o preço pelo seu sucesso: aquele seu funcionário que não recebe 13º nem do salário mínimo, seu vizinho que não tem onde dormir porque sua fazenda improdutiva ocupa mais hectares que encarnações nesse mundo e a prefeitura que você engana com um valor venal 100 vezes menor que o comercial do imóvel que negocia.

Ser ilegal pra essa turma opera em dois sentidos muito interessantes: se você é pobre, você é bandido; se você é classe média, você está reparando uma injustiça do governo. E da-lhe correria em abril atrás de atestado de dentista pra abater no Imposto de Renda.

Mas a compreensão do Bolsa Família não é a única forjada por uma classe média tão desonesta quanto "reparadora de injustiças". Talvez o exemplo mais clássico desse chorume que tanto me atrai seja a velha farsa da "Bolsa Bandido". Isso, "Bolsa Bandido" é como costumam chamar o auxílio-reclusão, que pouco tem a ver com o que sua biografia não-oficial tem declarado na rede. 

O auxílio-reclusão é atualmente regido pela Portaria nº 15 de 10/01/2013 e estabelece a concessão de R$ 971,78 para os dependentes - veja bem, dependentes - do sujeito que por algum motivo foi parar atrás das grades. Muito embora sua compreensão a respeito dos fatos seja de responsabilidade exclusivamente particular, o que os familiares do preso têm a ver com o ato praticado pelo sujeito? A princípio e em concluso nada, pois se o envolvimento na prática criminal for comprovado, o destino dos familiares vai ser o mesmo: a cadeia. De acordo com a Constituição, a pena não pode, em hipótese alguma, ultrapassar o condenado; ou seja, mesmo em pequena escala, a comunidade não pode perder com a reclusão de qualquer um.


Mas ainda tem mais. Pra receber o auxílio-reclusão, a família do dependente precisa que ele tenha cumprido as exigências mínimas estabelecidas na condição de segurado: ter contribuído com o INSS enquanto trabalhador regularmente registrado e não receber qualquer remuneração enquanto cumpre pena sob regime fechado ou semi-aberto.

Agora vamos às proporções. Independentemente da gritaria, parece mais ou menos óbvio que o número de trabalhadores contribuintes no sistema prisional seja ínfimo. Se não for, eu conto: dos 549.577 presos no país, 38.362 - mais de 14 vezes menos - deles têm as famílias (é bom frisar pro objetivo não se perder ao longo do texto) beneficiadas com o auxílio. E tem mais, não recebem as famílias cuja renda ultrapasse o teto de R$ 4.149,00. O valor repassado (R$ 971,78) é baseado no cálculo médio de 80% dos maiores salários de contribuição, e pode ser inferior caso o trabalhador tenha contribuído menos que o salário base do teto.

Tem causado igual histeria a chamada "Bolsa Crack". Muito embora a função do programa seja custear o tratamento de viciados em crack em clínicas especializadas, seu objetivo tem sido comumente associado à ideia de "estímulo" ao seu consumo. De doente a criminoso, o usuário de drogas pertence hoje ao grupo mais odiado de sujeitos - logo ao lado dos ateus - e representa o símbolo máximo da delinquência. Enquanto um parente próximo é condenado à escravidão do consumo de entorpecentes, "fulano é drogado" continua sendo uma das principais expressões de repúdio sobre os usuários.

Além de reinventar as bolsas que já existem, o chorume da internet é também criativo nas invenções. O que dizer da "Bolsa Puta", como carinhosamente batizaram o auxílio recentemente inventado por um tal de Joselito Müller e reproduzido aos gritos pela classe média nas redes sociais que, além de corrigir as injustiças do governo - aham - também carrega o estandarte do moralismo, digo, moralidade? R$ 2.000,00 seria o valor repassado pelo governo às profissionais do sexo de acordo com a notícia veiculada. Resultado: o blog aumentou as visitas em 1.700% e a gritaria foi intensa. 



Nada tem enfurecido tanto Congresso e classe média quanto os recentes desafios dessa moral mais hipócrita que sua reclamação a respeito dos programas sociais. Exemplo disso são as reações violentas aos projetos de lei do deputado Jean Wyllis (PSOL/RJ), que estabelecem direitos básicos negados pelo Estado aos cidadãos diante de impeditivos morais, como a questão da prostituição e da homossexualidade. Recentemente, o Projeto de Lei Gabriela Leite ganhou repercussão ao ser compreendido pela turma do chorume como "estímulo à prostituição".

Hoje o Brasil é um país que convive com a prostituição e permite sua existência, desde que condicionada ao universo do sub-trabalho. Prostituir-se pode. Só não pode se for numa casa própria pra isso - o que garantiria em muito a segurança das garotas - e se as "putas" forem compreendidas como trabalhadoras. Qual o critério que distingue essa prestação de serviços de outra? O chorume explica.

O que as experiências entre bolsas e redes sociais tem demonstrado é o que já se conhece desde quase sempre: quem tem boca fala o que quer. Acredita quem precisa.

Saludos, 
Murilo.

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