quinta-feira, 18 de abril de 2013

Cara Pálida, Cara-de-Pau


o selvagem e o inocente no progresso da civilização



A contar pelo famoso erro de Colombo na chegada às ilhas Guanaani - quando pensou ter chegado às Índias através da revolucionária pressuposição de que o mundo era redondo e, portanto, poderia encontrá-las navegando em direção constante a Oeste -, a relação da Europa com a América muito tem a revelar sobre sua já milenar relação com o Oriente. A partir de 1492, a noção de um império do diabo demonstra-se cada vez maior para Europa. Se até então o Maligno estava refugiado nas Índias desde a propagação do cristianismo no Velho Continente, a chegada dos espanhóis ao Novo Mundo definiu a América como verdadeiro palco do seu reinado absoluto.
Nas palavras de Edmundo O’Gorman, o verdadeiro nome da América deveria ser “Nova Europa”. Isso porque todo o entendimento a respeito do Novo Mundo esteve pautado num exercício constante de leituras sobre o então desconhecido território a partir de uma prática já exaustivamente conhecida do etnocentrismo europeu. Neste sentido, “a invenção da América” esteve muito mais ligada ao preenchimento de antigos dogmas cristãos do que a qualquer prática empirista.
Longe do contato entre iguais, o encontro entre Velho e Novo mundo esteve baseado no rechaço ao outro nativo, entendido por Colombo como categoria intermediária entre o homem e os animais. De acordo com Beatriz Pastor, havia nos europeus, antes de tudo, uma estratégia comercial de desumanização dos indígenas, comumente descritos como pobres, desnudos e desarmados.
Esse processo de “ficcionalização” esteve acompanhado, é claro, da ideia constante de demonização da população indígena, encerrada no universo bipolar da lógica cristã. Diante da luta radical de eliminação da idolatria, mesmo o uso de termos extraídos de idiomas indígenas ou simplesmente sua tradução eram evitados pelos europeus diante do "alto investimento do demônio" nelas.
Na língua, nas práticas, o fato é que compreensão alguma da Europa sobre a América repousou de outro modo senão na obcecada luta pelo fim da idolatria. Vice-rei de 1569 a 1581 no Peru, Francisco de Toledo redescobriu, sistematizou e reagrupou os argumentos teológicos sobre a prática como justificativa inequívoca da ação espanhola diante do “pecado contra a natureza humana”, responsável pela produção de barbáries indissociavelmente ligadas à idolatria, como a antropofagia, sacrifícios humanos, sodomia e bestialidade.
Para a Espanha, não restava outro caminho a não ser aquele imaginado por Aristóteles quando sentenciou à escravidão aqueles que naturalmente estão predispostos a obedecer aos outros. Consagradas ao diabo e não às divindades locais – pois a compreensão europeia não poderia interpretar de outra forma -, as oferendas incas, assim como outros desvios, justificam a soberania do rei ibérico, que passou a recebê-las.
Diante da concepção missionária do cristianismo em terras tomadas pelo mal, em pleno limiar do século XIX, François-René de Chateaubriand destaca que

Sin el cristianismo el naufragio de la sociedad y de las Luces habría sido total. [...] El cristianismo salvó a la sociedad de una destrucción total al convertir a los bárbaros y al recoger los despojos de la civilización de las artes, del mismo modo como habría salvado al mundo romano de su propria corrupción.

Como destaca Hurbon, pôr fim às superstições nativas significa pragmaticamente para o cristianismo o fim do infanticídio, da ausência de lei matrimonial, da anarquia e da ignorância. Ainda que distantes da superioridade europeia, os “cristãos selvagens” seriam pelo menos desbarbarizados por uma dose de civilização ocidental.
Antes de qualquer intervenção, no entanto, a imagem europeia do índio americano consiste na paisagem virgem de uma natureza selvagem, corrompida sobretudo pelas “imperfeições” do politeísmo:

El politeísmo, religión de todas maneras imperfecta, podia pues convenirle a esta estado imperfecto de la sociedad, puesto que cada amo era uma espécie de magistrado absoluto cuyo terrible despotismo sujetaba al esclavo em su obligación, y remplazaba com cadenas la carência de fuerza morla religiosa: el paganismo, desprovisto de suficiente excelencia para hacer virtuoso al pobre, se veia obligado a abandonarlo como um malhechor.

No século XVI, não faltam registros do náufrago Hans Staden, aprisionado em terras tupinambás e testemunha ocular de uma realidade pouco conhecida, mas há muito imaginada por uma projeção enraizada por séculos de “experiência” europeia em terras orientais. Com efeito, pode-se dizer que a compreensão incipiente do Velho Continente sobre a América esteve baseada pela imagem criada sobre o Oriente. Desta forma, Staden descreve os índios como selvagens, traiçoeiros, perigosos e briguentos:

[...] Depois começaram a brigar por minha causa; um deles dizia ter sido o primeiro a me achar, o outro, que tinha me capturado. Enquanto isso, os outros batiam em mim com os arcos, e finalmente dois deles me levantaram do chão, onde eu estava estendido completamente nu; um deles me segurou por um braço, o segundo pelo outro, alguns à minha frente, outros atrás de mim, e assim caminharam rapidamente comigo pela floresta em direção do mar, onde estavam suas canoas.

Alguns meses depois do edito de Filipe III, que em 1609 expulsava os mouros da Espanha, começava no Peru a grande campanha pela brutal eliminação da idolatria nas terras do “Novo Oriente”. De um lado ou de outro do Atlântico, o combate aos “traidores da Igreja” se desdobrou em tantas frentes quanto possível fosse no momento em que a Inquisição mais se tornou atuante. Não havia tempo para permitir-se que a idolatria tomasse conta da América como tomou nos antigos domínios europeus.


Às vésperas do 19 de abril, jorram veiculações sobre a condição do índio. Não raro - aliás, bem frequentemente -, é relacionado às origens duma natureza pura, tocada pela malícia do branco. A começar pelo fato de que "cultura indígena" diz tanto ao mesmo tempo em que não diz nada - afinal a pluralidade étnica indígena não permitiria a formação de uma cartilha formal do que significa ser índio, como é servida sobretudo pelas escolas -, aqueles que se opõem à ideia de índios selvagens ou vagabundos levantam, sem saber, a mesma bandeira que combatem.
De um lado ou de outro, a verdade é que todo exercício de compreensão sobre o índio americano concentrou esforços na famigerada ideia de natureza. No Dia Nacional do Índio, é o índio quem tem menos a comemorar. Não pela ausência de importância da data ou qualquer coisa nesse sentido, mas sobretudo pela incansável dicotomia que compõe sua imagem, em pleno século XXI, mais de 500 anos depois dos primeiros contatos estabelecidos pelo eurocêntrico (e ruim de geografia) Colombo. Ainda hoje, a ideia de índio flutua entre dois extremos que no fundo pertencem à mesma moeda de um jogo criado nos primeiros anos de colonização.
Do índio "selvagem", "briguento", ao índio "inocente", a régua é a ignorância. A primeira, rodeada por séculos de atribuição animalesca aos índios, entendidos como parte duma categoria intermediária e não completamente humana; e a segunda, cercada por uma pitada de controle travestida de proteção. Celebra-se o fato de que a data foi criada por Getúlio Vargas, curiosamente no mesmo Estado Novo que, através da "Grande Marcha Para o Oeste" - como os norte-americanos -, pisoteou como nunca as terras dos Guarani Kaiowás na região do Mato Grosso.
Cada vez mais confinados por terras do Governo Federal, foram reduzidos à condição de coisa no período militar e hoje, mesmo depois da Constituição de 1988, são vistos como entrave para o avanço do progresso - os "chatos do Belo Monte", como disse José de Abreu. Encurralados, perseguidos por fazendeiros, hoje o índice de homicídios na reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes, quase o dobro do Iraque, e 495% maior que a média brasileira. A cada 6 dias um jovem Guarani Kaiowá tira a própria vida.
"Selvagem" ou "inocente", o que a compreensão "civilizada" do índio fez não foi outra coisa senão reduzi-lo à condição de coisa. E como coisa, a violência ganha entornos de mero efeito-colateral.


Abraços, 
Murilo.

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