quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A Capoeira e os empecilhos da valorização cultural no Brasil

por LUCAS SANTOS*

Não é desconhecido que atualmente o Brasil é um dos países com a maior população negra fora do continente africano. Este fator, então, não deve ser ignorado, pois se assim o fizermos, boa parte dos traços culturais brasileiros corre o risco de perder seu sentido. 

A Capoeira brasileira, apesar de estar longe de ser uma das artes marciais mais praticadas, mesmo em seu berço, é conhecida em todo território nacional, até mesmo excedendo as fronteiras, visto que boa parte dos países latino-americanos possui contato com ela e grandes academias estadunidenses, canadenses e do continente europeu a fornecem como uma opção. 

Comumente a Capoeira é tratada como uma expressão africana, porém os próprios grupos praticantes e alguns trabalhos historiográficos que se debruçam sobre o assunto apontam o Brasil como lugar de origem desta, sendo os negros escravizados pertencentes ao grupo linguístico banto apontados como seus genitores. 

Não existe a possibilidade de se afirmar certamente em que período a Capoeira começou a ser praticada, devido ao meio marginalizado em que estava inserida, porém podemos trabalhar com alguns pontos interessantes envolvendo suas origens. 

Entre os estilos da arte marcial que são praticados atualmente, pode-se dizer que o menos sobressaliente é o da Capoeira Angola, pois é comum se pensar na Capoeira como uma apresentação malabarística, com movimentos rápidos e acrobacias, o que não faz parte do repertório angoleiro. 

A Capoeira Angola, introduzida pelo baiano Vicente Joaquim Ferreira Pastinha, tradicionalmente tratado por Mestre Pastinha, dentro do contexto do Estado Novo, tinha o intuito de resgatar a "velha Capoeira" praticada nas senzalas e nas ruas por escravos e libertos que marcava a resistência negra, mesmo após a assinatura da Lei Áurea. A iniciativa de Pastinha foi motivada pela grande desvalorização da tradição envolvida na Capoeira, pois em seu contexto o uso da arte marcial era feito meramente a título de exercício para o corpo. Neste sentido, a Capoeira Angola foi erigida através de tradições não apenas da prática física, com seus movimentos lentos e embolados lembrando uma dança vagarosa, mas também nas marcas espiritualistas das tradições negras envolvidas. 

Deste modo, Pastinha buscava passar para seus discípulos o que seus mestres, que segundo consta tinham contato direto com ex-escravos, o passaram, no que se refere a ética, moral e costumes. 

A designação Capoeira Angola se relaciona ao nome tradicional, de origem banto, atribuído à dança que serviu de base aos primeiros difusores do que se conhece por Capoeira dentro do contexto escravista. A dança chamada n'golo, trazida da região subsaariana do continente africano, de um território correspondente à região da Angola, pode ser traduzida como dança da zebra, pois possui seus movimentos inspirados nas brigas ocorridas entre estes animais, que se utilizam de coices e cabeçadas em suas ofensivas. Vem daí o uso predominante das pernas para golpear o adversário dentro do jogo da Capoeira. 

Apesar de registrada, em 2008, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio cultural brasileiro, a Capoeira sofre com a desvalorização em âmbito nacional, o que notamos com a trajetória do próprio Mestre Pastinha, que, mesmo desenvolvendo trabalhos em sua academia, para a preservação deste patrimônio, durante mais de 20 anos, sobreviveu em grande parte com a ajuda de doações de amigos e parentes e morreu na miséria. 

Mestre Pastinha
Esta desvalorização faz com que o Brasil perca grandes representantes desta marca cultural como o caso do Mestre João Grande, discípulo de Pastinha, que para poder ter seu trabalho como capoeirista reconhecido e valorizado deixou o país e abriu uma academia na cidade de Nova York nos fins da década de 1980, o que lhe rendeu, além de diversos discípulos interessados em conhecer não só a arte marcial, mas toda gama cultural envolvida nesta, a conquista de diversos prêmios, como a titulação de Doutor Honoris Causa em Letras Humanas pela Upsala College em 1995 e o National Heritage Fellowship em 2001 pelo National Endowment for the Arts, principal prêmio destinado às artes tradicionais nos Estados Unidos. 

Podemos atribuir a desvalorização da Capoeira enquanto elemento da cultura brasileira não apenas a sua origem negra e escrava, mas também ao longo período de criminalização de sua prática que se estendeu da Primeira República até a década de 1930, onde o varguismo tentou, através de sua descriminalização torná-la um de seus símbolos de identidade nacional, apesar de permiti-la apenas em espaços específicos. 

A situação da Capoeira atualmente, após o reconhecimento como patrimônio cultural tem melhorado com investimentos, ainda que baixos e, na maioria dos casos, indiretos, das diversas esferas de governo, porém ainda não recebe seu devido valor, pois é utilizada, ainda, a partir de ideias do senso comum que a tomam apenas como uma luta utilizada pelos escravos para defesa contra o sistema punitivo escravista.


* Acadêmico de Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas de Itararé. Atua como estagiário na Assessoria de Imprensa da Prefeitura Municipal de Itararé. No Desafinado, assinou os artigos 'Bagunça ou organização?' e 'Gayzismo ou saúde pública?'.

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