quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR


Em 1549, a decisão de Dom João III de instituir o governo-geral no Brasil, dividindo-o em capitanias hereditárias "doadas" aos capitães donatários, deu início ao sistema econômico colonial de produção, em larga escala, de gêneros alimentícios para exportação. Baseado no trabalho forçado e na grande propriedade, tal modelo incidiu na constituição do sistema escravista. Segundo Bóris Fausto, o negro foi escolhido por três motivos: 1) a rentabilidade do tráfico e comércio de escravos; 2) a resistência dos indígenas ao trabalho forçado; 3) a rentável utilização dos negros na produção de açúcar nas ilhas do Atlântico. 

Desta forma, entre 1550 e 1855 foram trazidos para o Brasil 4 milhões de escravos. A proveniência destes escravos era distinta, de acordo com o contexto histórico. No século XVI, a Guiné (Bissau e Cacau) e a Costa da Mina foram os locais privilegiados de proveniência. No século XVIII, regiões mais ao sul, como Congo e Angola, foram as preferidas. No século XVIII, os angolanos foram trazidos em grande número, correspondendo a 70% dos escravos trazidos para o Brasil neste século. 

Os negros escravizados no Brasil provinham de muitas tribos e com culturas "próprias" que os distinguiam uns dos outros. Assim, de acordo com Bóris Fausto, "eram desenraizados de seu meio, separados arbitrariamente, lançados em levas sucessivas em território estranho". O navio negreiro, ou "tumbeiro", foi o meio utilizado para transportar os escravos da África para as colônias americanas. No trajeto, condições sub-humanas anunciavam o destino dos negros na América. 

Os escravos eram transportados em porões com altura de menos de meio metro. Presos pelos pés, mais de 500 escravos ocupavam um dos porões, ficando "como livros numa estante", segundo um traficante. Os negros se alimentavam de milho e só podiam beber meio litro de água. A sede provocava alucinações e até óbitos em alguns casos. As condições de higiene eram precárias: só podiam se lavar duas vezes durante toda a viagem e faziam gargarejo com vinagre para higiene bucal; além disso, viviam em meio às fezes, o que gerava uma série de doenças. Neste trajeto, negros eram castigados fisicamente e morriam "aos montes". 


As condições às quais foram submetidos não os impediu de resistirem ao sistema escravista. Fugas individuais ou em grupo, agressões contra senhores e, em menor escala, o suicídio eram as principais práticas de resistência. Os negros fugidos compunham o chamado Quilombo, comunidade que pretendia recuperar as formas de organização social africana. O mais conhecido deles foi o de Palmares. Situado em uma região que hoje corresponde ao estado de Alagoas, o Quilombo dos Palmares resistiu por quase 100 anos, até 1695. Zumbi, o líder dos palmarinos, foi enforcado e esquartejado no dia 20 de novembro de 1695. 

A data da morte foi escolhida, em 1978, pelo Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial para representar o dia de luta dos negros pelo reconhecimento do seu papel enquanto agentes históricos fundamentais na construção da sociedade brasileira, e também para colocar em discussão as desigualdades relacionadas às questões de cor. Em 2003, no dia 9 de janeiro, a lei nº. 10.639 criou o Dia Nacional da Consciência Negra, dia em que o feriado é facultativo nos estados e municípios. 


Passados mais de 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares e mais de 100 da abolição da escravidão, ainda não assistimos ao fim da violência contra os negros no Brasil. Simbólica ou física, os dados evidenciam que a marginalização dos negros na sociedade brasileira é uma permanência problemática. Em 1997, apenas 1,8% dos negros tinham concluído ou estavam cursando o Ensino Superior. Em 2001 eram 10,2%. Com o início das políticas de cotas raciais, em 2003, cresceu para 39,6% o número de negros que cursaram ou estão cursando o Ensino Superior, segundo dados do IBGE. Apesar da melhora, a disparidade para os 65,7% de brancos ainda é grande. A desigualdade se torna ainda mais latente em cursos mais "elitizados". No curso de Medicina, apenas 2,7% dos formados são negros. Outra forma de violência simbólica é o fato de que segundo os dados da Pesquisa Mensal de Emprego - PME –, do IBGE, um trabalhador negro no Brasil ganha, em média, pouco mais da metade, 57,4%, do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca. 

Outros dados reforçam a violência contra os negros no Brasil. A pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA –, em 2011, indicou que 66,1% das moradias nas comunidades carentes são chefiadas por homens ou mulheres negras. 

Entretanto, os números mais impactantes são os de assassinato e cárcere contra os negros. Números do Mapa da Violência 2012 indicam que 56.337 pessoas foram assassinadas, sendo 41.127 negros e 14.928 brancos. Enquanto o número de homicídios dos jovens brancos vem decaindo, as taxas envolvendo os negros só têm crescido, representando uma “mortalidade seletiva”, segundo o relatório. Conforme o IPEA, a chance de um negro ser assassinado é 3,7 vezes maior que a de um branco. Um estudo da Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR – indicou que o número de negros mortos pela polícia é 3 vezes o número de brancos. No Rio de Janeiro a realidade não é diferente. Com 715.655 presos, o Brasil ultrapassou a Rússia e tem a terceira maior população carcerária do mundo. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN –, os negros são 275 mil.

Dois casos exemplificam a mortalidade seletiva. Amarildo Dias de Souza, ajudante de pedreiro desapareceu depois de ser levado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora - UPP - da Rocinha, na Zona Sul, em operação realizada em 14 de julho de 2013. Declarado morto pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Amarildo nunca foi encontrado. Cláudia da Silva Ferreira, vítima de bala perdida durante tiroteio entre policiais e traficantes no Morro da Congonha em Madureira, foi arrastada por 250 metros por um carro da política militar e morreu antes de chegar ao hospital. Mesmo avisados pela população de que o corpo estava pendurado, os policiais não pararam o veículo. Em comum entre Amarildo e Cláudia, a cor da pele e a condição social, negros e pobres. 


Enfim, se no passado os negros morreram muitas vezes por resistirem à lógica perversa da escravidão, atualmente morrem por resistir à lógica tão ou mais perversa, porque "velada", da marginalização. 

Abraços, 
Osvaldo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário