por LUISA DE QUADROS COQUEMALA
É um dia agradável e você entra numa livraria ou num sebo. Inconscientemente, vai parar na seção de “literatura universal”. Você anda, vasculha, dá uma olhada em um e outro exemplar. Neste ínterim, é muito difícil não cruzar com Dostoiévski. Então, você que já ouviu esse nome em algum lugar, olha para aquela brochura (geralmente grande) e, talvez, acabe não levando o exemplar porque não sabe, de fato, o que um autor russo do século XIX pode mudar concretamente na sua vida. Hoje, estou aqui para contar-lhes brevemente que ler Dostoiévski diz respeito a mim, a você, a todos nós; vim para dizer-lhes que Dostoiévski é um daqueles autores universais e atemporais, que passam raramente pelo mundo, como cometas, e que sabem deixar sua marca.
Dostoiévski foi, desde sua primeira obra, uma figura marcante. Gente Pobre, seu romance de estreia em 1846, logo já trouxe fama para o autor através dos elogios de Bielínski, crítico mais importante de então. A tendência literária da época, a “escola natural”, tinha uma grande preocupação com o romance social. Gógol já havia, de fato, representado as classes oprimidas em O Capote, contudo, Fiódor Dostoiévski deu um passo além: desde o início de sua carreira, ele buscou falar sobre os funcionários pobres, pessoas teoricamente sem importância, de uma maneira profunda e humana – algo inédito naquele círculo até então e que marcaria toda a obra do autor.
Em 1849, Dostoiévski e outros membros de um círculo que frequentava, o Círculo Petrashevski, foram presos sob acusação de conspiração contra o czar. A pena para o autor russo foi o fuzilamento. E, de fato, foi por pouquíssimo que obras como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov não foram escritas: antes do fuzilamento, o czar mudou a pena de Dostoiévski, de modo que este foi cumprir prisão com trabalhos forçados na Sibéria.
Por pior que tenha sido a experiência e o abalo psicológico da prisão, foi dentro dela que Dostoiévski mergulhou ainda mais fundo na complexidade humana. Assim, adquiriu uma profundidade difícil de se encontrar quando o assunto é realizar um retrato íntimo da consciência de alguém. Através de todas suas experiências, Dostoiévski construiu o retrato do seu famoso homem do subsolo e, também, deu para suas personagens uma autonomia nunca antes vista na história dos romances (a base da tão famosa teoria polifônica de Bakhtín), onde o autor expõe várias ideias e vozes que não têm necessariamente a ver com a sua, ou seja, a do próprio autor. A discussão dessas ideias seria a base para o caminho que se segue ao longo de suas intrigantes histórias.
Em Recordações da Casa dos Mortos, podemos ver sinais dessa visão dostoiévskiana do mundo: “Apesar das controvérsias, encontrei as mais delicadas almas nas pessoas mais miseráveis, pobres e ignorantes. Às vezes você despreza alguém, como um animal, uma pessoa que você conhece há alguns anos, mas chega o momento em que a alma dessa mesma pessoa se abre para o mundo e você pode conhecer o tesouro, a sensibilidade que vive dentro dela, quando o seu coração tem empatia pelo sofrimento de outras pessoas. Alguns têm muita educação mas a alma é violenta, então, você pode questionar qual é o benefício da educação”.
É por isso que apesar de ter sido preso, condenado por ser um conspirador revolucionário, chegar muito perto de ser fuzilado, não são propriamente as opiniões políticas de Dostoiévski que fazem a sua obra ter a importância que tem. O que é crucial em Dostoiévski (e que, acredito, já foi repetido e ainda vai o será infinitas vezes) é a análise que ele faz da alma humana. Eis onde está todo o encanto e honestidade da obra de Dostoiévski em relação à vida. E, talvez, seja por isso que todas as pessoas ao redor do mundo sintam-se tão tocadas e emocionadas com seus livros: no fim das contas, todos temos questionamentos em relação à vida, todos nos sentimentos um pouco deslocados - e é nessa ferida que Dostoiévski toca. Existir não é fácil e, quando alguém demonstra compreender toda nossa complexidade e bagunça interior, nos deparamos com sentimentos dúbios, de confrontamento e compreensão concomitantes.
As figuras de Dostoiévski são bem delineadas, suas bordas são bem marcadas. Contudo, dentro do limite dessas bordas existe um mundo infinito, recoberto de questionamentos tão tipicamente humanos. Com seu olhar minucioso e perspicaz, Dostoiévski nos entende, nos pega pela mão e nos mostra a complexidade de ser humano. E tudo com respeito: não olhando de cima, mas olhando nos olhos. Ler Dostoiévski, portanto, é como parar diante de um espelho e olhar-se insistentemente dentro dos próprios olhos, em busca de um auto entendimento superior. Entrar na infinitude de sua própria borda.
Dostoiévski mostrou, sui generis, a obscura aventura de sermos nós. Portanto, da próxima vez que cruzar com ele numa livraria, não tenha dúvidas sobre o que fazer.
Quando vejo os autorretratos dele penso numa pessoa que parece olhar para si, para seu próprio interior, um olhar para dentro, diferente de Tostoi, portador de um olhar perscrutador, um animal humano pré humanismo ao qual Gorki chamou de diabólico, mesmo considerando seu pacifismo, destruidor de hipocrisias com um olhar direto que encara.
ResponderExcluirestamos precisando muito desta visão humanista de Dostoiévski...onde as pessoas, não são classificadas pela formação ou condição social...o Brasil, especialmente, utiliza muito estes quesitos...sempre em detrimento aos mais humildes...Parabéns Luisa!! ótimo termos um critica literária de seu nível entre nós...
ResponderExcluirExcelente texto, Luisa! acrescentaria só um alerta: antes de pegar qualquer livro dele (e não só dele) por aí, vale conferir edição e tradução. Sobre as canalhices desse mercado tem o blog da Denise Bottmann http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/search/label/dostoi%C3%A9vski
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