quarta-feira, 27 de maio de 2015

Dossiê do 7x1: perdemos muito mais que um jogo

por SANDRO CHAVES ROSSI


Ainda dói bastante lembrar do espetáculo que foi a Copa de 2014 e como foi um verdadeiro balde de água fria ser eliminado de maneira trágica nas semi-finais por uma Alemanha que jogava um futebol tão bonito que deveria ser nosso - lamento meu que hoje não passa de pura nostalgia. Porém levar uma goleada em uma Copa do Mundo em casa foi muito mais que vergonhoso, expôs uma série de fragilidades nas estruturas do futebol nacional, que vão desde os clubes até a própria CBF. Questões estruturais que põem em cheque um ciclo político e econômico que existe há muito tempo e que raras vezes foi questionado, talvez por isso tenhamos chegado a tal ponto. 

O que boa parte da sociedade está sofrendo ultimamente se reflete no futebol brasileiro. Algo que deveria ser voltado para o lazer, a cultura e o incentivo ao esporte está sendo desgastado pelos mais diversos motivos, muitos deles já conhecemos de outros segmentos da sociedade, como a corrupção, violência, lucro pelo lucro e a segregação social. Portanto, se você acha que essa discussão se limita apenas ao futebol, você está cometendo um equívoco muito grande. 

Faremos assim, para cada gol da Alemanha teremos um motivo para o futebol nacional ter piorado tanto, e como não perdemos de zero, o único gol do Brasil terá um motivo bom para que não percamos as esperanças e possamos dar a volta por cima. Então vamos lá: 

1. Corrupção 

Vamos voltar a um passado próximo, especificamente em 2011, quando o jornalista escocês Andrew Jennings, publicou um livro chamado "Jogo Sujo" (Foul!). Nesse livro, Jennings expôs diversos escândalos de corrupção envolvendo dirigentes da FIFA, escândalos como subornos e manipulação de resultados, tudo isso aliado a empreiteiros e políticos. "Jogo Sujo" foi tão polêmico que abalou o cenário do futebol mundial e obviamente esse escândalo acabou respingando nos engravatados da CBF, mais precisamente em Ricardo Teixeira e João Havelange, que segundo Jennings, receberam uma parte do suborno de US$ 100 milhões da ISL (empresa de marketing esportivo) para obtenção de contratos. Jennings ainda afirma que Ricardo Teixeira recebeu uma propina no valor de US$ 10 milhões da Liechtenstein Sanud, ao que tudo indica, uma empresa fantasma. 

Os escândalos envolvendo a CBF foram tão impactante que fizeram Andrew Jennings lançar em 2014 o livro "Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas". O livro se baseou no montante de dinheiro gasto na construção dos estádios para a Copa do Mundo no Brasil, em como os dirigentes da FIFA e CBF mandavam e desmandavam em projetos envolvendo dinheiro público, na falta de transparência em vários gastos e de como Blatter e Teixeira faziam suas negociações com as empresas. Tudo isso foi conciliado com uma análise histórica envolvendo a CPI do Futebol, liderada pelo senador Álvaro Dias (PSDB-PR) em 2001. Na época, a CPI apontou existência de crimes como evasão de divisas e lavagem de dinheiro supostamente praticados por dirigentes brasileiros, tendo o nome de Ricardo Teixeira constantemente citado. 

Em 2012, o então deputado Romário Faria (PSB-RJ) apresentou um pedido de CPI da CBF, baseado em uma série de escândalos envolvendo a entidade, como o enriquecimento ilícito de dirigentes, corrupção, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e desvio de verba do patrocínio da empresa área TAM - boa parte dessas acusações conseguidas através de Jennings. O pedido ficou parado por dois anos e foi engavetado pelo então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). Em 2013, ocorreu uma tentativa de criação da CPI da Copa, porém o projeto não vingou por falta de assinaturas. A dificuldade que existe em conseguir investigar a CBF é enorme e parece não apresentar solução. 

2. Lucro 

Hoje em dia, a entrada para assistir um jogo de futebol ficou muito mais cara. Uma pesquisa feita pela Pluri Consultoria revelou que o Campeonato Brasileiro é a competição nacional que tem o ingresso mais caro do mundo. A pesquisa considerou o preço médio do ingresso na categoria mais barata dos clubes que disputam a primeira divisão de cada um dos 13 países analisados. O valor das entradas mais baratas no Brasil custa em média R$ 51,74, equivalente a US$ 22, 62, isso em 2014, hoje com a alta do dólar e da modernização de boa parte dos estádios, deve ter ficado mais caro ainda. 

O valor é comparado com a renda per capita do brasileiro (US$ 11.208/ano a preços correntes 2013 ), chega-se a conclusão que esta renda permitiria a compra de 495 ingressos por habitante/ano, a menor quantidade na comparação com os outros países analisados. Isto faz do Brasil o país de preços relativos de ingressos mais alto entre os principais mercados do mundo. Na média dos 13 países analisados, a renda per capita permite a compra de 1.114 ingressos/ano, 125% acima do poder de compra de ingressos dos brasileiros. Ou seja, por aqui o preço do ingresso é mais que o dobro da média dos principais centros do futebol mundial, como por exemplo a Argentina ($12,22), Turquia ($11,20) e o México (US$ 10,72). O valor do ingresso afastou boa parte dos torcedores, que é a principal queixa por deixarem de ir ao estádio. 

3. Irresponsabilidade fiscal 

A grande maioria dos clubes devem dinheiro. Devem para jogadores, empreiteiras, bancos e principalmente para a União, dívida que se agravou ainda mais com a Copa do Mundo. O problema é que vivemos um ano de instabilidade econômica e não dá para ignorar a dívida bilionária que os clubes têm com o governo, algo estipulado em torno de R$ 3,3 bilhões, tal dívida fez com que a Câmara aprovasse a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte, que parcelou a dívida em 25 anos, desde que os clubes se adequem à parâmetros de gestão financeira e responsabilidade fiscal. Além disso, os clubes terão que estar em dia com o fisco, não atrasarem salários e manterem os gastos dentro da capacidade de pagamento de cada entidade. Os dirigentes poderão ser responsabilizados judicialmente por atitudes financeiras comprometedoras. 

A Lei da Responsabilidade Fiscal ficou assim: 

- Apresentação obrigatória das Certidões Negativas de Débito, que provam que o clube está em dia com a União; 
- Pagamentos em dia dos contratos de trabalho; 
- Proibição da antecipação de receitas; 
- Limite de 4 anos para mandato, sem reeleição; 
- Instituição de Comitê de Acompanhamento de Execução das Regras Estabelecidas, formado por clubes, jogadores, patrocinadores, imprensa e Poder Executivo. 


E o parcelamento da dívida foi feito da seguinte forma: 

- Não haverá anistia, nem perdão da dívida; 
- Unificação dos débitos (conta única); 
- Prazo de 25 anos; 
- Pagamento segundo a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), a 5% ao ano; 
- União arrecadará R$ 140 milhões por ano. Total R$ 3,3 bilhões; 
- 50% em três anos, 50% no restante. 

Ou seja, o caixa da maioria dos clubes vai diminuir bastante nos três primeiros anos a partir de 2015, a situação começará a melhorar só em 2018. 

4. Mídia 

Por que o futebol no meio da semana é tão tarde? Parece uma pergunta boba e sem relevância, mas realmente é um horário que afeta a rotina de muita gente. O jogo geralmente começa às 22h00 e terminar quase meia-noite, atrapalha quem tem que acordar um pouco mais cedo no outro dia, claro, há pessoas que não sofrem com isso, mas a audiência não seria maior se o jogo fosse mais cedo? Quantas pessoas não conseguem acompanhar um jogo inteiro devido ao cansaço de um dia corrido? Para nós torcedores, não seria muito mais prático assistir o jogo logo depois do fim do expediente? E por que não muda? Simples, porque vai contra a vontade da mídia. Ou você acha que é coincidência o jogo começar logo depois que a novela acaba? 

O buraco é bem mais embaixo que a questão do horário, a Rede Globo tem o monopólio do futebol brasileiro desde a época da Ditadura Militar, o que faz a emissora interferir diretamente na organização de campeonatos e na estrutura política e econômica dos mesmos. Segundo o site "Futebol Business", a Rede Globo pagou pelo triênio 2012 -2015, R$ 2,7 bi pelas partidas da série A, no canal aberto e nos fechados, sem contar o pay-per-view. Para se ter noção de como a Rede Globo interfere na harmonia do futebol brasileiro, desde 2011 ela vem sofrendo com a concorrência da Fox Sports, que inclusive já conseguiu ganhar o direito de algumas partidas no lugar da Globo, então o que a Globo fez? Vai aumentar mais ainda o valor do direito de imagem dos clubes, tudo para fortalecer mais ainda seu monopólio. 

O grande problema dos direitos de imagem é que a quantia paga para os clubes é extremamente desigual, o que acaba favorecendo muito mais alguns clubes do que os outros. Estima-se que entre 2016 e 2019, a Globo pagará R$ 4,11 bi no total, e Corinthians e Flamengo passarão a receber R$ 60 milhões a mais que o São Paulo, que ocupa o terceiro lugar. 




5. Violência 

Um dos maiores e mais antigos problemas do futebol mundial sempre está em evidência no nosso esporte, não tem erro, todo ano alguém acaba morrendo por causa do confronto entre torcidas. Basicamente funciona assim: Enquanto alguns clubes jogam a responsabilidade do problema no Ministério Público, o Ministério Público põe a culpa nas torcidas organizadas que, por sua vez, repassam a bola à polícia e ao próprio ministério pela "falta de punição" aos envolvidos. E enquanto isso as famílias das vítimas estão desamparadas por causa desse empurra-empurra. 

Desde 1988 até 2013 foram contabilizadas 234 mortes devido ao conflito entre torcidas, o problema se agravou mais a cada ano, chegando ao seu ápice em 2013, quando foi alcançado o número absurdo de 30 mortes em conflito entre torcidas. Tudo isso é um reflexo de políticas ineficazes para combater a violência dentro dos estádios. 

O sociólogo e pesquisador de violência no futebol, Maurício Murad diz que até hoje não houve uma solução efetiva para a redução da violência nos estádios. Proibir o bandeirão, fazer jogo com torcida única e proibir as torcidas organizadas são medidas meramente paliativas e que já mostraram isso há muito tempo. Murad acredita que a solução deveria partir do governo federal em parceria com o poder público, federações e clubes. A solução está na punição com reeducação pedagógica do torcedor, algo que até hoje não é discutido pelas entidades envolvidas. Só nesse curto começo de ano, já tivemos duas mortes causadas pelas brigas entre torcidas. 

No começo do ano, a "Stochos - Sports & Entertainment" fez uma pesquisa com a seguinte pergunta: "por que o torcedor não vai mais ao estádio?" O resultado foi categórico, 43% disseram que é devido a falta de segurança, maior que dobro do segundo lugar, que foi a distância dos estádios (19,3%). Ou seja, além de causar várias mortes, a violência também está acabando com o público nos estádios, algo que era para ser voltado para o lazer, se tornou sinônimo de medo . 

6. Cartolas 

Os cartolas são os dirigentes, diretores e presidentes dos clubes e eles têm grande culpa pelo estado em que chegamos. Todos os outros "gols" citados anteriormente têm total influência deles. Excesso de gastos, corrupção, endividamento e entres outras polêmicas são o que definem boa parte dos cartolas brasileiros, além de elitistas que visam muito mais o lucro do que o futebol. 

7. Futebol Estrangeiro 

A mídia em cima do futebol do exterior é grande, ainda mais da Europa. Hoje em dia é muito comum vermos torcedores de times estrangeiros, basta andar um pouco na rua que você verá alguma camisa de um time badalado da Europa. A atração pelo futebol de fora tem afetado significantemente o nosso futebol nacional. Grandes times com jogadores caríssimos têm chamado mais a atenção do nosso público, que por muitas vezes acaba trocando o nosso futebol pelo deles. 

Mas não é só isso que fez o futebol estrangeiro crescer, o fator econômico e a diferença nos calendários são os grandes diferenciais para criar esse abismo. Muitos dos nossos melhores jogadores acabam trocando os clubes brasileiros por algum time de fora simplesmente por um salário maior. Quando falamos de transferência de jogadores, não falamos mais só de Europa, como antigamente, hoje a Ásia se tornou um mercado atrativo para muitos técnicos e jogadores, cada vez se torna mais comum um jogador ir para China, por exemplo. Essa dinâmica no mercado da bola está prejudicando os clubes brasileiros, que não conseguem concorrer com o fator econômico dos grandões estrangeiros, aliados com a diferença dos calendários, que por sua vez acabam desmontando um time brasileiro no meio de um campeonato. 

Depois dessa goleada, da pra gente marcar pelo menos um golzinho? Claro que sim, apesar da esperança ser pequena, a gente também marcou um: 

1. Bom Senso F.C. 

A proposta do Bom Senso é simples: tornar o Brasil realmente o verdadeiro país do futebol. Você deve estar se perguntando "mas nós já não somos o país do futebol?" A resposta é não. O Bom Senso bate de frente com os interesses econômicos das elites que estão usando o futebol apenas como fonte de lucro. Muitas pautas foram feitas por eles, mas em síntese são 3 propostas: 



O Bom Senso é formado por um grupo de cerca de 800 jogadores das Séries A e B nacionais. Em 2013, eles entregaram uma lista com reivindicações para José Maria Marin, na época presidente da CBF, as reivindicações foram cinco pontos propostos: 30 dias de férias para os jogadores por ano, período de pré temporada maior, máximo de sete jogos em 30 dias, a adoção do chamado "fair play financeiro" e que comissões de atletas, treinadores e executivos dos clubes façam parte do conselho técnico das competições e entidades. 

No começo de Maio de 2015, o Bom Senso voltou a bater de frente com a CBF, mas dessa vez no Congresso Nacional. Alex, meia que jogou no Coritiba, Palmeiras, Cruzeiro e Fenerbahçe, representou o Bom Senso e teve apoio de muitos políticos e jornalistas presentes, como Paulo Calçade. O debate girou em torno da MP 671, mais conhecida como a MP do Futebol, que busca refinanciar a dívida dos clubes e propõe medidas de modernização ao futebol, basicamente o que o Bom Senso já propõe. 

Alex reivindicou fortemente o direito de voto dos atletas nos organismos da CBF. Afinal, a CBF enriqueceu graças à Seleção Brasileira, feita com o talento e dedicação dos jogadores. Nada mais justo que eles tenham direito a participar das decisões da entidade. 

O Bom Senso não propõe nada novo, não é o primeiro e nem vai ser o último a querer mudar as estruturas do futebol canarinho, porém é o mais perto que conseguimos chegar até agora. Os jogadores já se mobilizaram, conseguiram apoio de jornalistas e políticos, e o mais importante, conseguiu colocar a discussão dentro do Congresso. Talvez falte um incentivo a mais para que a reformulação do futebol seja feita, por que nós torcedores não damos esse incentivo? Eu sei que está 7x1 pra eles, mas que tal tentarmos virar esse jogo?

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