terça-feira, 19 de maio de 2015

A Cultura do Condomínio

Como uma psicopatologia do Brasil entre muros ajuda a desvendar o encolhimento do espaço público e a ascensão do ódio na contemporaneidade

por MURILO CLETO

Foto: Dafne Sampaio https://www.flickr.com/photos/esforcado

Em 1965, Jean-Luc Godard dirigiu um dos mais preciosos filmes de ficção científica de todos os tempos, o longa-metragem Alphaville. Cercado da literatura de Aldous Huxley e George Orwell, Godard criou uma realidade distópica em que todas as coisas funcionam na mais perfeita ordem. Mas, ora, o que há de distópico num mundo perfeito? Dentre outras coisas, o preço que foi preciso pagar para isso: em Alphaville, todos os habitantes são proibidos de manifestar qualquer afeto diante dos pares.

Exatamente 10 anos depois, em São Paulo, surge não o primeiro, mas o principal modelo de loteamentos a partir de então no Brasil, ironicamente batizado de... Alphaville. Fruto de certa ânsia desenvolvimentista, os condomínios partem do mesmo pressuposto anunciado na obra de Godard: a realização de um mundo perfeito onde vivem apenas os iguais. 

Ainda que a vida entre muros não seja uma realidade exclusivamente brasileira, Christian Dunker aposta nela como a chave para compreender o Brasil contemporâneo. Em Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma, o psicanalista escancara o país como um paciente que sofre, mal resolvido com o próprio passado. Já nos anos 1920, as vanguardas artístico-literárias ocuparam-se sobretudo de pensar o fantasma do atraso e do subdesenvolvimento. É neste contexto, não por acaso, que a Psicanálise, uma disciplina tão específica e criteriosa, aporta no Brasil. 

A partir da década de 1950, o que era frustração tornou-se objeto de política pública e discurso de campanha eleitoral. A breve experiência democrática do pós-guerra trouxe ao Brasil a execução prática de lemas como "50 anos em 5", além de rodovias, indústrias e uma nova capital. Nos anos 70, este processo se intensificou com os governos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos.

No Brasil, o seu resultado encontra-se tanto com o golpe militar de 1964 quanto com a política econômica que o sustentou nos anos seguintes. O país que primeiro fez crescer o bolo para depois dividi-lo - como anunciou à época Delfim Netto - precisou apostar na exclusão como único meio possível de desenvolvimento. Na esteira do neoliberalismo e mais desigual do que nunca, o Brasil entre muros passou a incluir na lógica do mercado todos os aspectos da vida.

E é dentro deste contexto que o espaço público passa a ser engolido pelo privado em velocidade progressiva desde então. Escola boa, só particular. Garantia de saúde, só com plano. Serviço de qualidade, só terceirizado. Neste sentido surgem os condomínios no Brasil. Fruto da especulação imobiliária e do desejo de descolamento do espaço público, o que os caracteriza é fundamentalmente a criação de uma realidade paralela, como na obra de Godard, muito melhor do que a de verdade. "Aqui todo dia é domingo", é como um dos anúncios de venda de terrenos seduzia compradores em potencial.

De acordo com Dunker, no entanto, a pressuposição de felicidade adquirida através da compra dos lotes se contrapõe à realidade na vida entre muros. E o que era pra ser a realização máxima da liberdade torna-se lugar de hipertrofia de regras, porque é entre semelhantes que as pequenas diferenças se destacam.

Foto: Dafne Sampaio https://www.flickr.com/photos/esforcado
Além disso, o isolamento em relação ao outro não tornou a vida nos condomínios necessariamente melhor. Segundo Freud, apesar dos estímulos, o que contrapõe o mal-estar não é o "bem estar", mas o estar. A realização do ideal de compra é problemática, dentre outras coisas, porque reproduz as confusões predominantes entre sonhos e projetos e entre desejos e objetivos. E mais, porque o mal-estar não é resultado exclusivo dos insucessos pessoais, mas de uma condição civilizatória que não nos permite "cair" do mundo. Ou seja, além de um pacto com aqueles que habitam-no comigo, há também outro com aqueles que já passaram por ele e com os que ainda virão, de modo que estamos todos amarrados e a felicidade, portanto, nunca será completa, apesar da promessa.

No fim das contas, a existência do condomínio gira em torno da promessa dos 3 estados ideias do ser humano: a liberdade, a felicidade e a segurança. Se na Alphaville da ficção o preço a ser pago por isso está na proibição do afeto, na do mundo real é na exclusão que ela encontra residência. Quer dizer, o condomínio é fundamentalmente uma realidade alternativa, onde as coisas funcionam perfeitamente, todos são livres, felizes e seguros, porque partem do princípio de que o sofrimento é sempre causado por um objeto intrusivo, o outro. Afinal, é no outro que reside a violência, a incivilidade e a limitação moral. Antes de uma barreira física, os muros são um marco simbólico que aparta iguais de diferentes e reforçam a tentativa de suspender o pacto comum que bloqueia o acesso à satisfação plena dos sujeitos.

É o que explica o processo análogo de decadência do espaço público. Já nos anos 1970, o sociólogo Richard Sennett escreveu sobre a ascensão das "tiranias da intimidade" numa obra de referência para a compreensão do sujeito contemporâneo. Diz Sennett que a experiência do pós-guerra contribuiu para a falência de um modelo burguês que separou, no século XVIII, as esferas pública e privada e o desenvolvimento de outro, também burguês, é verdade, de invasão da privacidade ao universo público.

Esta é uma invasão que mais parece um arrastão. Acontece por todos os lados. Através da economia, que passou a incluir todos os aspectos da vida na lógica de mercado. Através do entretenimento, que glamourizou como nunca a vida cotidiana em telenovelas, séries, talk-shows e mesmo jornais. E através das ruas, que viram-se ocupadas não por pessoas, mas por automóveis.

Nas ruas, aliás, reside boa parte deste paradoxo flagrante. Em 2002, Alessandra Olivato defendeu a dissertação de mestrado em Sociologia a partir da problemática do caos nos centros urbanos. O resultado da pesquisa é emblemático: os acidentes de trânsito não ocorrem por fatalidade, problemas mecânicos ou, de maneira isolada, a imprudência. É a própria imprudência, sustenta Olivato, resultado desta indistinção entre os espaços público e privado.

Em Medos Privados em Lugares Públicos, aqui mesmo no Desafinado, falei brevemente sobre isso: "Mais do que através deles e da sua tecnologia, os carros substituíram a experiência do sujeito com as cidades à medida que a ausência de preocupação com o bem-estar comum invadiu as ruas de grandes ou pequenos centros urbanos. O carro é uma oportunidade de deslizar pela cidade sem efetivamente estar nela. Bunker móvel com alto valor de mercado e apelo estético, oferece TV, blindagem, som, DVD, poltronas reclináveis, ar-condicionado, celular, internet e até relaxamento para simular a realidade confortante do lar". Ainda que a rua continue sendo, por definição, espaço público, é no ambiente privado do carro que nos fazemos presentes. E o resultado disso é catastrófico.

Descende daí, talvez, a rejeição algo insana às ciclovias em São Paulo. Mais do que um apaixonado por carros, como diz a propaganda, o brasileiro é marcado por um autocentrismo que, dentre outras violências, faz do espaço público palco de competição e meritocracia, exatamente como pressupõe a lógica do mercado. É o que permite alguma aceitação ao discurso de Reinaldo Azevedo, colunista de Veja, que classificou o prefeito Fernando Haddad como "o Estado Islâmico das Duas Rodas".

Nas redes sociais, a tirania da intimidade é ainda mais notável. Em primeiro lugar, porque são elas mesmas resultado deste processo de publicização da intimidade, algo radicalizado por reality shows como o Big Brother. E, ainda, porque nelas a privacidade encontrou residência como nunca. O que eu sinto, como eu sinto, o que eu como, o que eu faço, com quem eu tomo café. Do flogão do limiar do século XXI ao Facebook, que hoje atinge 1,4 bilhão de pessoas, as redes revelam a decadência do espaço público quando justamente anunciam, em tese, a sua ampliação.

É neste ambiente que a violência encontra lugar. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o sociólogo espanhol Manuel Castells afirmou que não acredita que a internet tenha tornado o debate político mais violento no Brasil, que sempre foi assim. Segundo Castells, a rede apenas "trata-se de um espelho", pois "expressa abertamente o que é a sociedade em sua diversidade". Muito embora seja verdade que a violência perpassa a história do país, inclusive muito antes da invenção da internet, há de se considerar a capacidade das redes de reinventar o modo como as pessoas leem o mundo e também agem sobre ele.

Além da mola propulsora do anonimato, a compreensão das redes como residência de sentimentos também estimula o apelo à violência generalizada. Isso acontece fundamentalmente graças ao cenário desenhado pelos carros, mas que serve também para explicar tanto ódio na internet: em que pese ser público, o seu espaço é visitado de modo privado. É no conforto do lar que a polidez da vida pública dá lugar aos extremos da intimidade. De pijama, sem escovar os dentes ou os cabelos, atravessa-se o mundo com meia dúzia de cliques. E o resultado disso não pode ser outro senão uma relação passional, ora amor, ora ódio, com o interlocutor. Sim, amor também, afinal ele nunca foi tão público quanto agora.

Não apenas no Brasil, mas no mundo todo discute-se a maior dificuldade na implementação e sucesso de políticas públicas de Cultura: a formação de público. Falta público não porque faltam investimentos, qualidade artística ou boas iniciativas, mas porque o ser humano precisa aprender a se relacionar com o espaço comum.

Foto: Dafne Sampaio https://www.flickr.com/photos/esforcado
A seguir as pistas dadas por Dunker, isso só pode acontecer mediante novas formas de relação com o sofrimento, comumente tratado até aqui quase que exclusivamente através da eliminação do objeto intruso. A experiência do condomínio demonstra que o antídoto ao mal-estar não deu certo e que "o cheiro do ralo", como no filme de Heitor Dhalia, vai continuar incomodando.

Ainda que Dunker tenha pensado a "cultura do condomínio" como uma alegoria para refletir sobre o Brasil contemporâneo, o colunista Rodrigo Constantino resolveu atacá-lo com uma defesa da vida entre muros, justificada pelos altos índices de violência. 10 anos de pesquisa com Freud, Lacan, além de extensa bibliografia histórica, rebatidos com o raciocínio senso-comum de que a exclusão é fundamental para a sobrevivência. Não fosse real a publicização dos medos da intimidade, Constantino não passaria de um panfletário cômico e isolado, ele próprio, no mesmo manicômio em que tentou destinar todos os diagnosticados por ele como loucos, exatamente como Simão Bacamarte em O Alienista, de Machado de Assis.

Abraços,
Murilo


* Mais sobre Christian Dunker pode ser conferido em sua fala ao Café Filosófico, da CPFL Cultura; na entrevista concedida a Matheus Pichonelli; na resenha de Daniele Sanchez sobre o livro-tese de sua livre docência; na matéria de Ana Paula Souza ao Valor Econômico; a na sua página no Facebook, que indica uma série de outras publicações.

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