segunda-feira, 25 de maio de 2015

A regra já foi mais clara

Capitão Nascimento é o retrato de um país em crise consigo mesmo, incapaz de se reconhecer nas regras que ele mesmo criou e obcecado pela refação do contrato, que prevê a suspensão da lei em nome da sua restituição

por MURILO CLETO


Mesmo 8 anos depois, Tropa de Elite continua sendo o maior lançamento do cinema nacional no século 21. Há quem diga, e com razão, ser de toda história. O longa-metragem tornou-se um verdadeiro fenômeno graças à capacidade de dialogar com o imaginário médio do seu tempo. É o que explica, pro além da sua indiscutível qualidade técnica, o sucesso nas bilheterias, apesar da farta distribuição de cópias piratas, que atingiu cerca de 11 milhões de pessoas antes da estreia nas telonas.

No filme, o tráfico de drogas é encarado no interior da guerra nos morros cariocas. Diante da lógica de matar ou morrer, o Estado de Direito entra em suspensão pra dar lugar a uma nova versão do Código de Hamurábi. Mais que um militar cumpridor de ordens, o Capitão Nascimento é uma espécie de super herói da vida real: cético em relação ao sistema, ele representa a sua superação em nome de uma razão moral que está acima da lei. Execuções sem julgamento e tortura são as práticas comuns do esquadrão de elite que aparece para resolver o que Polícia Militar e Poder Judiciário não são capazes.

Até então pouco conhecido do público comum, o Bope passou a ser ovacionado nos desfiles militares e a figurar nas capas dos periódicos mais lidos do país. O sucesso de Tropa de Elite foi menos um triunfo do filme, mas a celebração do seu conteúdo. Em pouco tempo, deixou de ocupar espaço na crítica do cinema para estampar manuais de conduta de organizações militares. 3 anos depois, o diretor José Padilha percebeu o monstro que criou e tentou concentrar a trama sobre o sistema político, mas era tarde demais.

Num bate-papo sobre o seu novo livro no Café Filosófico, Christian Dunker atacou os modos usuais de enfrentamento ao mal-estar contemporâneo. De acordo com o psicanalista, um Brasil entre muros tem se desenhado como resposta ao crescente sentimento de insegurança provocado pelo avanço do neoliberalismo no país, a partir dos anos 70. A ideia comum de que o sofrimento é sempre causado por um objeto intrusivo e que o contrato social é constantemente rompido favorece a proliferação dos condomínios, uma realização física, é verdade, mas que serve também de alegoria para entender a ascensão de personagens como Capitão Nascimento. "É preciso alguém que suspenda a lei para restituir a lei", é o que diz Dunker na passagem em que recupera Tropa de Elite para tratar deste paradigma.

O personagem vivido por Wagner Moura é o retrato de um país em crise consigo mesmo, em grande parte porque não se reconhece nas leis que construiu, mas, e sobretudo, porque nunca esteve tão inseguro. O problema da insegurança, alerta Dunker, é que ela nos impede de buscar alternativas racionais ao sofrimento que nos acomete no cotidiano. Diante da falência do Estado de Direito e da política institucional, o Capitão Nascimento funciona como uma síndrome de super herói que se manifesta através da crescente onda de justiçamentos e assassinatos cometidos pela PM em todo o Brasil. E essa é uma conta que nunca vai fechar. Quanto mais inseguros, mais dispostos estamos a suspender o contrato em nome da ordem. Quanto mais suspendemos o contrato, mais distantes ficamos de resolver o problema da segurança.

Pois é ela, a síndrome de Capitão Nascimento, que impede qualquer avanço em política de segurança pública no país, diante de um debate natimorto, comumente encerrado nos limites de uma limitação moral que nos impede de enxergar o outro além do muro. Exemplo disso é a reação à audaciosa capa do Extra desta última sexta-feira, que anuncia a reportagem sobre o menor suspeito pelo assassinato de um médico no Rio de Janeiro: "Duas tragédias antes da tragédia". A matéria problematiza a condição do menino a partir da ausência dos pais e de uma educação formal. No mesmo dia, o colunista Reinaldo Azevedo a classificou como "LIXO MORAL", em caixa alta mesmo, conforme anuncia o título que precede aquela velha análise que relaciona os Direitos Humanos ao protecionismo barato da delinquência. Puro proselitismo, mas que funciona. E eu diria mais: funciona como nunca.

É bem por conta deste cenário que, ao mesmo tempo em que não avança em direção a políticas públicas de segurança eficazes, o Brasil assiste ao espetáculo de um judiciário entregue aos imperativos morais que se sobrepõem ao Estado de Direito. Quem se lembra do herói Joaquim Barbosa, quando, no ano passado, reagiu ao questionamento de um colega, que o acusou de abandonar a técnica jurídica para evitar o reconhecimento de que o crime estava prescrito ou que os réus do "Mensalão" gozassem do direito ao regime semiaberto de prisão? Sem pestanejar, o então presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça respondeu: "Foi feito pra isso, sim!".

Há algum tempo, circula um vídeo em que o ex-diretor da área internacional da Petrobras questiona o juiz Sérgio Moro sobre sua prisão, que à época já completava 5 meses. Sem provas, sem condenação, por que o cárcere? Do outro lado da mesa, Moro repete várias vezes: "eu não vou ficar aqui me explicando para o senhor". Não mesmo. Nem para ele, nem para a sociedade que sustenta a sua autoridade. Eu sei, 90% daqueles que estão lendo este texto estão indignados com o autor, afinal, só mesmo um petista para defender outro, certo? Errado, em primeiro lugar porque o que está em jogo aqui é o Estado de Direito em xeque graças à imposição moral sobre a lei. E, em que pese ser absolutamente legítimo considerar que nem sempre a lei caminha ao lado da justiça, o precedente aberto pela prerrogativa de sua suspensão em nome da sua manutenção é perigoso demais para que valha a pena.

Alguns minutos depois de postar numa rede a capa do Extra, sou respondido por um leitor: "ATÉ PARECE QUE ESTÃO QUERENDO JUSTIFICAR QUE ESSE RAPAZ TEVE MOTIVOS SUFICIENTE PARA MATAR ENTÃO NESSE CASO DEVE SER PERDOADO". Ainda educado, respondi que estava com sono, até que uma tropa passou a se referir a mim como petralha, assim como o jornalismo brasileiro, que, segundo ela, é toda comprada pelo governo. Exceção? Pra mim, sinal dos tempos.

No fim da semana passada, o Batman do Leblon, figura emblemática desde a eclosão dos protestos de junho de 2013, rompeu com o ainda presidenciável Aécio Neves. No comentário preciso de Matheus Pichonelli sobre a decepção dos movimentos anti-Dilma desenhados a partir de então, o diagnóstico: "Aécio não é nem nunca foi o político do embate. Nem como líder tucano na Câmara, durante o governo FHC, nem como governador de Minas. Aécio é, antes de tudo, um conciliador. Que, a certa altura do jogo, emprestou uma imagem a eleitores liberais e eleitores radicais unidos pela ideia de que era ele, e mais ninguém, o caminho viável para vencer nas urnas o governo petista. Como a vitória não veio, Aécio se tornou refém de uma mobilização barulhenta e ao mesmo tempo impaciente". Em poucas palavras, Aécio nunca foi o Capitão Nascimento que esperavam dele. Mas essa expectativa não deixa de ser sintomática.

O Brasil que se fechou para o outro é também um Brasil que se divide rumo à barbárie. A legião de super heróis que protagoniza hoje este espetáculo dramático no debate político não está além das expectativas de uma geração que não se vê além dos muros, nem se reconhece na própria democracia.

A regra já foi mais clara.

Abraços,
Murilo

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