terça-feira, 15 de julho de 2014

Winner/Loser: Que jogo é esse?

Como um paradigma sócio-cultural interfere na forma de se jogar e entender o futebol

por JANAÍNA MAYRA DE OLIVEIRA WEBER



O futebol é um esporte coletivo, regulamentado por órgão internacional, de forma que cada equipe é formada por pelo menos onze (e não um) jogadores em campo e seus respectivos reservas. E como qualquer esporte coletivo, demanda atuação em conjunto, entrosamento, cooperação, harmonia, exercício de tolerância, otimização de capacidades e habilidades especificas em função do bom desempenho do conjunto, além de proporcionar um grande exercício de alteridade ao jogador e à equipe na busca da melhor performance.

No esporte, coletivo ou não, o objetivo não é jamais destruir o adversário, pois ele é fundamental para que exista a disputa, mas sim superar o outro através do desenvolvimento das próprias habilidades e capacidades, através de exploração de técnicas e estratégias cujas quais são limitadas por um conjunto de regras que procuram assegurar a equidade na disputa.

Além da arte, manifestações corporais que envolvem disputa, também costumam evocar a catarse (uma sensação de bem estar e purificação decorrente de uma descarga emocional vivenciada ou mesmo assimilada a partir dos sentidos), em quem joga e em quem assiste. A apreciação do esporte e da atividade física como exercício é muito antiga, gregos até mesmo paravam guerras para celebrar os jogos olímpicos e basta entrar em algum ginásio, quadra ou lugar de disputa, mesmo que você não conheça os times ou o jogo que está acontecendo, depois de observar um pouco acaba escolhendo um lado para torcer ou inferir opiniões e estratégias.

No entanto, nos dias atuais podemos notar outros fenômenos sendo agregados ao esporte e a sua apreciação, dentre eles quero evidenciar a interferência nociva de um paradigma sócio cultural, o do “winner/loser” difundido pelo estilo de vida norte americano e muito bem aceito por nós brasileiros que, imersos nesse paradigma, somos impelidos a certas condutas irrefletidas que, após um pouco de analise e observação, nos mostra o quão destrutivo pode ser.

O esporte tem, além da “faculdade catártica”, um potencial em canalizar atenção e energia na para a superação de obstáculos e limites, de forma que sempre é liberada uma carga razoável de endorfina (hormônio responsável pela sensação de prazer, saciedade e satisfação) no cérebro cada vez que temos a sensação de superar algo difícil ou o que parecia intransponível ou mesmo quando presenciamos alguém vivenciar uma situação assim, isso é o que se chama de “sabor da vitória”, e o esporte acaba delimitando a situação de esforço num recorte de tempo e espaço específico e necessariamente com resultado imediato ao final de uma partida.

Dessa forma, a catarse fica por conta do fato de que o esporte resume e compacta várias situações de desafio, sublimando aquelas contidas em diferentes processos na vida comum, com o grande diferencial é que ao fim do jogo, tem-se o resultado delimitado, e nos processos de desenvolvimento do ser humano, a vida é uma eterna busca dos melhores resultados em todas as áreas possíveis, assim, mesmo podendo se rever a performance no dia-a-dia e reformular direções e objetivos, nem sempre os resultados são claros e estanques como numa disputa, o que nos impele a formas de transferências na assimilação das formas de lidar com desafios.

No Brasil crescemos engolindo os “enlatados norte-americanos”, filmes, seriados, desenhos, programas de TV ou formatos de programas de TV que propagam, evidenciam e incutem a cultura do winner/loser, construindo estereótipos bem rígidos e delimitados sobre o que significa ser bem sucedido, (sempre a partir da exceção como se fosse regra), sendo que, para esse sujeito constructo e subproduto desse paradigma, na busca exacerbada pela distinção positiva, a grande maioria das pessoas jamais passe de uma grande massa de mediocridade ou de “losers”.

Para ser winner é preciso ser o mais diferente possível da maioria das pessoas, o admirável, o aceitável, o mais popular e etc. Mas para essa diferenciação ter essa conotação é necessário que se prenda à apenas dois critérios; que até vão se diferenciar um pouco entre Brasil e EUA; Enquanto no segundo, é necessário, além de já pertencer a uma certa casta ou frátria considerada influente no meio onde se encontra, o acumulo de riqueza ostensivo. Já no Brasil vale mais ainda a idéia de acúmulo, que quando se apenas aparenta, o efeito é quase o mesmo na grande maioria das vezes. Ou seja, mesmo que você não pertença a algum grupo considerado aristocrático, tendo dinheiro ou aparentado ter é possível a você criar novos nichos nos quais será o winner naquele contexto sendo a ostentação o mote.

Quem não lembra do Charlie Brown? Ícone da figura “loser” norte americana... Que puxa...
É dos EUA que importamos essa mania de sempre ter um “herói” dentro do time, a melhor atriz, o melhor isso, o melhor aquilo, etc. Dessa forma, em situações que demandam esforço coletivo, nesse paradigma, se mobiliza também o time jogar em função do herói, convencendo os demais que, na figura dele, haverá a redenção de todos. Isso fica sutilmente registrado no filme de Ugo Giorgetti, chamado “Boleiros: era uma vez no futebol...” quando toda imprensa está empenhada em entrevistar o personagem “Azul”, o artilheiro do jogo e um dos jornalistas vendo a dificuldade para chegar ao astro principal, olha para o lado e decide um colega do mesmo time, no entanto, o colega vai e retorna o foco ao jogador “Azul” dizendo que o time só ganhou graças a ele, ou seja, o time não se reconhece como time, mas sim como equipe de apoio ao jogador Azul.

Também me lembro em 1996 na cidade de Ponta Grossa, de uma partida de basquete da seleção brasileira masculina contra a seleção do Uruguai, um time inteirinho jogar só para o Oscar (mão santa) “chutar dos três” (arremesso de longa distância), na metade do jogo o Uruguai muda para marcação zona (território e não o jogador) ocupando e fechando as zonas de arremesso do cestinha e quase vira o jogo.

Assim determinamos os modelos no mundo esportivo, quem deve ser seguido e admirado, o “winner”, e o apelo midiático ajuda endeusar o mesmo como se o melhor jogador fosse também o melhor ser humano de todos, algo superior e inigualável, o que acaba acontecendo é: a hipervalorização de um indivíduo e suas características, não importando quais sejam, mas com fins de objeto midiático para aumentar o consumo (e assim o lucro de alguém ou alguns poucos); a deturpação do sentido de coletivo e unidade dentro de um grupo, até sua total perda de identidade coletiva, o estabelecimento subentendido de juízos de valor totalmente superficiais da figura do herói, além da transformação do esporte essencialmente em objeto de consumo, pois nesse paradigma o jogador não passa de um manequim de muito luxo para marcas esportivas.

Esse esporte business que se vê na TV hoje em dia, tão bem configurado no futebol infelizmente, não só recorta como superficializa todo processo de superação envolvido no esporte catártico, porque, nessa lente, quando vemos um jogo analisamos o desempenho imediato do herói, como se determinado atleta fosse alguém “ungido” com a glória de ser naturalmente o “altius, fortius e citius” (lema olímpico: mais alto, mais forte e mais rápido) e principalmente nós brasileiros, gostamos de pensar a aptidão física como um talento ou dom divino, sobrenatural e genuinamente brasileiro, nunca resultado de muito trabalho, testes, analises, e treinos repetitivos e exaustivos.

Gostamos de pensar que o Neymar nasceu com um talento sem igual, não que alguém pôs uma bola em seu pé antes mesmo dele andar ou quantas horas ou dias ele passou nos campinhos de várzea de sua vila. Também não estamos interessados em saber se o Ronaldinho Gaúcho passava muitas horas driblando o seu cachorro quando era moleque, pra nós, todas suas jogadas geniais são “apenas” a ginga e o talento brasileiro nato se manifestando.


Essa forma de se ver e realizar o esporte, não permite que se entenda o processo de crescimento pessoal que o mesmo pode proporcionar de fato a cada um dos jogadores, quando devidamente trabalhadas e conduzidas as interelações pessoais decorrentes desse universo, os processos internos e externos que vão edificando a personalidade a cada partida, seja diante do adversário, do técnico, da torcida, das próprias expectativas quanto a performance e ao resultado.

Ainda assim, no fenômeno esporte, a alegria de vencer é tão intensa e contagiante quanto a frustração de uma derrota, pois, enquanto o vencedor desperta a empatia e a admiração, a vontade de imitação, o perdedor exala repulsa e ou piedade, mesmo quando o segundo termo propõe uma zona de conforto para algumas situações e personalidades, ambos sentimentos considerados são considerados baixos e sinais de fraqueza por Nietzsche e também por Freud, que os classificou dentre os sentimentos aversivos que causam mal estar e desconforto ao funcionamento cerebral.

Assim, junta-se a sensação catártica de comoção coletiva pelo resultado do jogo, e acrescenta-se a atenção sub alerta para objetos de consumo, dessa forma, para mostrar que se admira o Neymar já não é suficiente aplaudir em pé, pessoas compram uma camiseta de 500,00$ pra se “sentir um pouco Neymar “winner”, outras pessoas se sentem bem a vontade em usar camisetas ou uniformes esportivos sem praticar nenhum esporte, ou atividade física (alienação?), quando em sua essência, o esporte e a atividade física são pra se usufruir, fruir, superar e se superar, interagir e não para se comprar ou vender, nem que sejam transmissões pela TV.

Mas, nossa mídia segue direitinho a cartilha “winner/loser” e Galvão Bueno repetia “Neymar” (outrora “Ronaldinho”) a cada três minutos e o Neto sempre tem “em sua opinião” um “baita jogador melhor de todos os tempos em determinada posição” a cada semana. Ou seja, esse tipo de mídia é a principal fonte de combustível desse paradigma, gerando o subproduto esporte predatório business, no qual pra ganhar vale tudo, de negociata até dopping.

Ganhar ou perder são dois lados da mesma moeda e partes de um mesmo processo, é impossível existir um vencedor sem um lado perdedor, tanto a punção competitiva quanto a cooperativa são presentes na natureza humana, mas isso em função da punção maior da luta pela sobrevivência, e da mesma forma, ambas podem ser moldadas pela sociedade tanto de maneira construtiva quanto destrutiva.

Quando se encara a derrota numa conotação diagnóstica e educativa, entende-se como um sinal de que alguma coisa precisa ser ajustada e trabalhada, procurando os motivos e as falhas especificas que levaram ao resultado indesejado, e então, tem-se um processo construtivo de aprendizado e uma disputa de métodos, técnicas, ideias.

No entanto, quando se encara a derrota como uma forma de subjugar e ser subjugado, quando a vitória é motivo pra humilhar ou ser humilhado, não há como assegurar a lealdade na disputa então temos a competitividade predatória, aquela na qual “os fins justificam os meios” tão comum no ambiente do mercado.





A derrota da seleção brasileira nessa copa pode ser na verdade um presente da Alemanha como uma grande chance de repensar muita coisa, pondo em xeque, principalmente o que é ser de fato “o país do futebol”nesse paradigma sócio cultural até aqui discorrido.

Um pais do futebol tem ingresso barato porque respeita e prioriza o apreciador e não o lucro do clube e este é deve ser gerenciado por administradores e não especuladores, um país do futebol preza o bom espetáculo antes da marca da camisa e não precisa fazer do futebol uma seita de fanáticos por seus clubes pra vender mais camisa. Um pais do futebol incentiva as crianças a praticarem o futebol não para se ter vantagem, dinheiro ou prestigio em função disso, mas pela catarse e ambiente de aprendizagem e cultura o mesmo pode proporcionar. 

De acordo com o movimento Bom Senso F.C. “A grande maioria dos jogadores profissionais fica desempregada durante metade do ano por falta de jogos. Os principais clubes brasileiros acumulam dívidas fiscais e trabalhistas assombrosas. Enquanto isso, o público nos estádios diminui ano após ano, perdendo para países como os EUA e a Austrália”. Ou seja, é uma reprodução sine qua non da sistemática neoliberal de organização político-social talvez com o maior exército de reserva da História pois basta lembrar dos milhares de campinhos e campeonatos de várzea espalhados pelo Brasil.

O Bom Senso F.C. é um movimento que nasceu de jogadores com uma petição on line com demandas para a CBF, as quais basicamente implicam em um calendário mais democrático para os clubes menores o que ajudaria a organizar melhor a profissionalização do jogador e estende seu vinculo com o clube por mais tempo jogando toda temporada, além do implementação de um “fair play” financeiro de maneira a garantir que os clubes paguem suas dívidas e salários de funcionários em dia.

Enfim, pra ser o país do futebol é necessário assimilar o mesmo antes de tudo como um esporte coletivo de fato, que construções midiáticas não ganham jogo, que todo objetivo de caráter coletivo e abrangente demanda sim de estudo, preparo, analise, planejamento, conhecimento e organização, só então a “raça” pode fazer diferença em detrimento da sorte e isso tudo tivemos e temos a chance de aprender com a Alemanha na nossa casa.

Da mesma forma que podemos sublimar nossas emoções nas partidas de futebol, que a partir da lição (legado) deixada o caminho inverso seja possível e providencial também, que a partir disso consigamos rever nosso senso de coletividade na vida cotidiana. 

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