Anarquismo: uma perspectiva de composição social que pretende reinventar a ordem
por LUCAS SANTOS
Somos, pois, anarquistas, porque queremos uma sociedade sem governo, uma organização livre, indo do indivíduo ao grupo, do grupo à federação e à confederação, com desprezo das barreiras e fronteiras, sendo a associação baseada sobre o livre acordo e naturalmente determinada e regulada pelas necessidades, aptidões, ideias e sentimentos dos indivíduos. (Neno Vasco)
O anarquismo1 pode ser compreendido atualmente como um posicionamento político filosófico, e não como a ausência deste, que tem sua trajetória traçada paralelamente a dos movimentos revolucionários da Europa e da América do Norte na segunda metade do século XVIII2.
Walter aponta que
comportamentos favoráveis à Anarquia existiram durante mais de dois mil anos, e muito antes que surgisse o Anarquismo. Escritores dissidentes da Grécia e da Roma antigas, da China e da Índia antigas condenaram a autoridade e reivindicaram a Anarquia. Mais próximo de nós, autores como William Godwin, em 1793, ou Max Stirner, em 1844, por exemplo, refletiram sobre a Anarquia. Movimentos insurrecionais e comunidades utópicas, no transcurso da história, aboliram as formas tradicionais de governo sem adotar novas, ao menos durante um tempo. Experiências marcantes foram iniciadas na Europa e na América nos séculos XVIII e XIX. Mas a evolução da teoria e das práticas anarquistas no seio de uma ideologia anarquista permanente dependiam de uma estreita adequação entre as ideias e os atos.
Devemos nos atentar, porém, ao utilizarmos o conceito de anarquia atrelado a esses pensamentos “primitivos” com ideais comuns ao pensamento anarquista, visto que o contexto em que se inserem são anteriores a própria noção de liberdade que serve de base ao movimento. Fugimos deste modo, da entrega ao anacronismo, realizando assim, as “ligações racionais entre o passado e o presente.”3
Errico Malatesta, pensador anarquista italiano do século XX, aponta que o anarquismo “nasce da revolta moral contra as injustiças sociais (e) […] que boa parte do sofrimento humano não é consequência inevitável das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas, ao contrário, que deriva de realidades sociais dependentes da vontade humana e que podem ser eliminadas pelo esforço humano.”4
Deste modo, podemos compreender o “esforço humano” para reverter às dificuldades sociais causadoras da revolta como a principal causa defendida pelo pensamento anarquista.
Dentre as dificuldades sociais debatidas dentro do anarquismo, a propriedade privada ganha lugar de destaque, sendo, inicialmente abordada por Pierre-Joseph Proudhon, que foi, em 1840, o primeiro a se denominar anarquista, dando início ao movimento na França.5
Em relação à propriedade Proudhon diz que “(a propriedade) acima da Justiça, (é) invocada sempre por todos como o gênio tutelar dos soberanos, nobres e proprietários: A Justiça, a lei geral, primitiva e categórica de toda a sociedade”6, ou seja, a sociedade formada em seu contexto valoriza a naturalização da propriedade como um elemento necessário para manutenção da justiça, sem levar em consideração que a lógica desta beneficiaria apenas os próprios proprietários e não seria uma ferramenta do bem estar comum.
DA RELAÇÃO COM A FILOSOFIA
Apesar de não estar ligado, necessariamente, a nenhum sistema filosófico constituído, o anarquismo possui pontos em comum com a filosofia naturalista, pois aponta o mutualismo como um dos fatores principais para a evolução do homem e o Estado como um corruptor deste em seu estado natural de bondade.7
A esse respeito Piotr Kropotkin aponta que
a absorção de todas as funções sociais pelo Estado favoreceu necessariamente o desenvolvimento de um individualismo desenfreado e tacanho. À medida que cresciam as obrigações para com o Estado, os cidadãos iam sendo evidentemente aliviados das obrigações de uns para com os outros. Na corporação – e nos tempos medievais – todo homem pertencia a alguma corporação ou fraternidade – dois “irmãos” tinham o dever de cuidar por turnos de um outro que tivesse caído doente; agora era suficiente dar ao vizinho do enfermo o endereço do hospital público mais próximo. Na sociedade bárbara, o indivíduo que assistisse a uma luta entre dois homens, surgida de uma discussão, e não interferisse para evitar que ela tivesse um fim fatal, também era considerado assassino; mas, sob a teoria do Estado que protegia todos, essa intervenção não era necessária: cabia à polícia intervir ou não.8
Caracterizamos aqui a luta maior do anarquismo, que se trata da extinção das relações de poder e de sua instituição máxima, caracterizada na modernidade e na pós-modernidade pela figura do estado constitucional, o que está presente na própria etimologia do termo, como aponta Teotônio Simões “anarquia não é bagunça. Anarquista não é bagunceiro. Anarquia, do grego: an (= sem) e arché (= poder). Anarquismo: movimento que luta por uma sociedade em que ninguém tenha poder sobre ninguém.”9
Jean-Jacques Rousseau, em sua obra du Contract Social; ou Principes du Droit Politique faz a reflexão de que nenhum tipo de autoridade do homem sobre o homem é legítima, pois o homem é naturalmente livre.10
Partindo desta ideia o anarquismo se contrapõe a autoridade manifestando-se através de “ações diretas como greves, boicotes, resistência pacífica, desobediência civil, desrespeito a leis e regulamentos impostos. (pois) Ignorar e desobedecer ao Poder (não conquistá-lo) é para eles a forma de destruí-lo.”11
Deste modo o movimento justifica suas ações, colocando-as como respostas legítimas a ilegitimidade da autoridade imposta (pretendida) pelo Estado.
DA QUESTÃO DA LIBERDADE E DA AUTORIDADE
O pensamento libertário é tomado como utópico, em grande parte, por tratar da liberdade enquanto um direito natural do homem, que deve ser extrema e individual, contrapondo-se a liberdade garantida pelas leis instauradas constitucionalmente que também é limitada pelo mesmo sistema e foge assim da definição básica de liberdade, ou, qualidade de quem é livre.
Esta condenação, porém, é compreensível, afinal ela parte de um engessamento gerado por quase quatro séculos de perpetuação e proselitismo da ideologia burguesa capitalista e de dogmatismo, e esta condição impede o contato e a aceitação de algo que ocasionaria a quebra com o conceito de ordem em vigência.
Vale ressaltar que
nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem certas coisas para a luz e deixam outras na sombra.12
Neste sentido compreendemos que o contato com determinada realidade é fulcral para que possamos nos apropriar de seus sentidos e entendê-la.
Mas, afinal, como se manifesta a liberdade no anarquismo?
Apesar da relação apontada anteriormente entre o libertarismo e a corrente filosófica naturalista, parte da teoria libertária se contrapõe, principalmente, no que concerne a liberdade, aos princípios dessa filosofia.
O bakuninismo pode ser tomado como representação dessa quebra, visto que, para este, a liberdade, mesmo sendo uma característica constitutiva do homem, não nos é dada (naturalmente) e sim conquistada socialmente.
Além disso, é apontado que a busca de Rousseau pela liberdade nos primórdios da humanidade foi uma atitude falha, pois “o homem estava então privado de qualquer conhecimento de si mesmo. (e) O conhecimento do homem a partir de si mesmo, advém da relação com outros indivíduos em sociedade, sendo portanto, incapaz de conhecer a si mesmo sozinho.”13
A respeito da construção do homem através do convívio social Silvio Gallo aponta que
se a sociedade é desigual, os homens serão todos diferentes e viverão na desigualdade e na injustiça, não por um problema de aptidões, mas mais propriamente por uma questão de oportunidade. Não podemos mudar a "natureza humana", mas podemos mudar aquilo que o homem faz dela na sociedade: se a desigualdade é natural, estamos presos a ela; mas se é social, podemos transformar a sociedade, proporcionando uma vida mais justa para todos os seus membros.14
Bakunin, mesmo negando a liberdade enquanto parte da natureza do homem, não nega a existência de alguns pontos que fazem parte de nossa animalidade, no caso, a superação desta, pois ele aponta como natural nosso desenvolvimento das questões intelectuais.
Mas como todo desenvolvimento implica necessariamente uma negação, a da base ou do ponto de partida, a humanidade é, ao mesmo tempo e essencialmente, a negação refletida e progressiva da animalidade nos homens; e é precisamente esta negação, racional por ser natural, simultaneamente histórica e lógica, fatal como o são os desenvolvimentos e as realizações de todas as leis naturais no mundo, é ela que constitui e que cria o ideal, o mundo das convicções intelectuais e morais, as idéias.15
Para que tais negações (transformações) possam ocorrer o pensamento libertário aponta a necessidade do desenvolvimento de um fator específico: a educação.
Esta educação, no entanto, parte do reconhecimento de que não existe uma prática pedagógica neutra e de que esta deve proporcionar ao sujeito a possibilidade de atingir o estado de liberdade, este conquistado posteriormente através da aplicação do conhecimento adquirido somado à ação direta.
Para Silvio Gallo
uma educação libertária deve, paradoxalmente, partir da autoridade, para poder, paulatinamente, fundar a liberdade como conquista individual e construção coletiva da comunidade escolar, e não abandonar as crianças a uma suposta “liberdade natural” de cada um, transformando-se, assim, numa libertinagem que o educere perde todo o seu sentido.16
Nega-se aqui a liberdade enquanto um meio para a educação, partindo, para tanto, do princípio citado anteriormente que demonstra a liberdade enquanto um fator a ser conquistado ao desenvolver da vivência social. A liberdade, então, apresenta-se como produto da educação.
A autoridade está, segundo Bakunin, no reconhecimento das leis naturais, enquanto imutáveis e incontestáveis, ou seja, devemos nos pautar nos fatos comprovados, como por exemplo, o de que nos queimamos com o fogo, para que desta forma as medidas sejam as mesmas para o coletivo.
A liberdade do homem consiste unicamente nisto: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconheceu como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou humana, coletiva ou individual, qualquer. [...]
[…] (Deste modo) As autoridades mais recalcitrantes devem admitir que aí então não haverá necessidade de organização, nem de direção nem de legislação políticas, três coisas que emanam da vontade do soberano ou da votação de um parlamento eleito pelo sufrágio universal, jamais podendo estar conformes às leis naturais, e são sempre igualmente funestas e contrárias à liberdade das massas, visto que elas lhes impõem um sistema de leis exteriores, e consequentemente despóticas.17
Nota-se também a possibilidade de uma autoridade manifestada, não pelo reconhecimento das leis naturais, mas pela perícia em determinada área de conhecimento experimentado. Podemos tomar como exemplo o caso de um biólogo e um pedreiro. Ambos possuem conhecimentos específicos e distintos, portanto o biólogo, não possuindo noções de construção, está, então, sob julgo da autoridade do pedreiro e vice-versa.
O reconhecimento desta autoridade, porém, não implica na constituição de poder de um indivíduo sobre o outro, afinal, esta pode ser superada, e, deve-se levar em consideração que um dos fatores fundamentais da liberdade, para anarquismo, é a igualdade, em detrimento do privilégio.
É necessário se atentar, também, ao fato de que
a maior inteligência não bastaria para abraçar tudo. Daí resulta, tanto para a ciência quanto para a indústria, a necessidade da divisão e da associação do trabalho. Recebo e dou, tal é a vida humana. Cada um é dirigente e cada um é dirigido por sua vez. Assim, não há nenhuma autoridade fixa e constante, mas uma troca contínua de autoridade e de subordinação mútuas, passageiras e, sobretudo voluntárias.18
* Acadêmico de Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas de Itararé. Atua como estagiário na Assessoria de Imprensa da Prefeitura Municipal de Itararé.
1 Utilizarei ao decorrer do texto as duas designações do movimento (Libertarismo e Anarquismo) de acordo com o contexto abordado, visto que o termo libertário passou ser empregado a partir do século XX e as manifestações do pensamento anarquista podem ser notadas desde o século XVIII.
2 WALTER, Nicolas. O que é anarquismo?. Tradução de Plínio A. Coêlho. São Paulo: Faísca, 2009.
3 LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão [et al]. Campinas: UNICAMP, 1990.
4 MALATESTA, Errico. Traduçaão de Felipe Corrêa. São Paulo: Faísca, 2009.
5 WALTER, Nicolas. O que é anarquismo?. Tradução de Plínio A. Coêlho. São Paulo: Faísca, 2009.
6 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1975.
7 WALTER, Nicolas. O que é anarquismo?. Tradução de Plínio A. Coêlho. São Paulo: Faísca, 2009.
8 KROPOTKIN, Piotr. Ajúda Mútua um fator de evolução. Tradução de Waldir Azevedo Jr. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009.
9 SIMÕES, Teutônio. Anarquismo: pequena introdução às ideias libertárias. São Paulo: eBooks Brasil, 2006.
10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Porto Alegre: L & PM, 2007. (Apesar da relação existente entre o anarquismo e o naturalismo, no que diz respeito à alguns aspectos da liberdade enquanto qualidade do homem, devemos nos atentar ao fato de que o naturalismo não compartilha das aspirações políticas inerentes ao anarquismo.)
11 SIMÕES, Teutônio. Anarquismo: pequena introdução às ideias libertárias. São Paulo: eBooks Brasil, 2006.
12 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
13 MATEUS, João G .da Fonseca. O conceito de “Liberdade” em Mikhail Bakinin. Espaço Livre, vol. 6, nº 11. Goiânia: NUPAC, 2011.
14 GALLO, Sílvio. Pedagogia libertária: princípios político-filosóficos. In: PEY, Maria Oly. Educação Libertária. Rio de Janeiro, Achiamé, 1996.
15BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000.
16GALLO, Silvio. Autoridade e construção da liberdade: o paradigma anarquista em educação. Campina: UNICAMP, 1993. (grifo do autor)
17BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000.
18 Idem.
Manifesto d’ Os Jovens Libertários
ResponderExcluirAos Moços
A vós todos nos dirigimos, ó moços que vibrais de entusiasmo em defesa da liberdade e que tremeis de indignação diante de todas as injustiças!
Escutai-nos, vós todos que tendes vontade de felicidade: funda desorganização social em que vivemos. Verificai a desigualdade e o desequilíbrio que dividem a humanidade: o ouro, o luxo e a fartura aí estão como um sarcasmo cruel ao lado da mendicidade, do farrapo e da fome. Estudai detidamente as páginas da história e vereis a função das classes dirigentes; ludibriam, espoliam, oprimem, perseguem, esmagam aqueles que tudo produzem, de forma desenfreada, de egoísmo e de violência.
Sondai, enfim, sondai meticulosamente a causa de tudo isso, a causa de todos os males passados e presentes, males materiais e males morais. Procurai essa causa, procurai-a e chegareis, como nós, de dedução em dedução, de conclusão em conclusão, que ela não é outra, senão essa aberração que tem atravessado os séculos com a máscara da necessidade social – a Autoridade. A Autoridade é a força bruta que protege e defende, por meio de leis, de tribunais e de canhões, o roubo realizado pelo Capital.
A Autoridade, eis o mal. Destruamo-la, pois!
Nós apelamos para vós, ó moços que vibrais, com todo o soberbo ardor das almas novas, nas lutas em prol da Liberdade!
Vinde combater conosco, vós todos que procurais a Verdade e o Amor!
Nós somos o protesto vivo e ardente das consciências puras e dos corações generosos, que se revoltam contra todas as iniquidades, contra todas as misérias e contra todas as violências!
Nós somos os estridentes clarins anunciadores da Revolução!
Nós somos os rebelados semeadores da Anarquia!
Os Jovens Libertários