segunda-feira, 21 de julho de 2014

Aniversário do ECA: ranços e avanços

por JANAÍNA MAYRA DE OLIVEIRA WEBER

Há 24 anos, no dia 13 de Julho, era sancionada a Lei nº 8.069, também conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que dá início a uma série de transformações que ocorreriam nas próximas décadas, no que se refere às políticas públicas voltadas a essa parcela da população, tendo influência inclusive na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases que norteia nosso sistema educacional atual.

A visão de infância como período em que o ser humano é considerado em desenvolvimento e formação é muito recente na História da humanidade. Os relatos históricos denotam desde uma invisibilidade até a visão da criança como uma miniatura de adulto, dessa forma, passível de ações e atitudes dos adultos (como o trabalho forçado e exploração sexual), infanticídios não eram necessariamente condenados porque entendia-se que era só uma questão de fazer outra havendo também relatos históricos de canibalismo em tempos de crise.

Na Grécia, principalmente Esparta, era o pai quem decidia se o filho deveria ou poderia viver ou não, tendo direito de matá-lo caso achasse necessário, como acontecia com crianças nascidas com deficiência em Esparta, além disso, as meninas eram comumente abandonadas ou vendidas a prostíbulos quando a família aumentava demais, enquanto os meninos, depois de atingirem certa idade eram levados a uma floresta e deixados lá como um treinamento para aprender a sobreviver por alguns anos e na adolescência entravam no serviço militar, sendo incentivados a saquear casas, agredir e matar hilotas (uma espécie de escravo pertencente ao estado) como parte do treinamento.


Há relatos de que crianças serviam de alimento aos adultos quando em guerra ou situações de crise, de maneira muito natural.

Essa forma de se ver (ou não ver) a infância segue por toda idade média, inclusive o próprio conceito de infância vai aparecer somente no século XIX, a partir do surgimento dos pensadores da educação, de maneira que, em seus os estudos, os mesmos passam a se interessar pela forma como a criança aprende, começando assim a observar, analisar e registrar suas características.

No Brasil colonial, Del Priore relata que as crianças filhas de escravos eram criadas na Casa Grande até os quatorze anos, no entanto isso se dava mais por uma questão não humanitária mas sim econômica, para se evitar a mortalidade e o prejuízo na perca de mais um escravo. Nessa época, ainda de acordo com a mesma autora, chegou a se registrar uma taxa 90% de mortalidade infantil, no entanto, essas eram tratadas como se fossem pequenos animais de estimação da família do senhor de engenho, sendo que curiosamente as crianças originadas da mestiçagem entre índios e brancos não tinham o mesmo tratamento, se aproximando um pouco mais do tratamento dado as crianças de origem europeia.

As crianças negras e mestiças eram enviadas para a senzala e para trabalhar na lavoura a partir dos quatorze anos. No entanto, no trabalho nas minas para extração de pedras e outros minérios, há relatos do uso de crianças em torno dos cinco anos de idade para passar nos buracos mais estreitos, com estimativa de vida de pelo menos dois anos nessa condição.


Com o surgimento das cidades, a crescente taxa de negros alforriados e depois com a abolição a passagem do Império para a República, a situação da criança se agrava em termos de precariedade, pois, após a abolição, os negros deram lugar na fazenda, para a contratação de mão de obra estrangeira assalariada, perdendo assim além de seu trabalho, também sua casa (senzala) e a garantia de alimentação. Essa situação vai obrigar as mulheres a tentar ganhar algum dinheiro através da venda de quitutes em grandes tabuleiros de madeira e da prostituição. Dessa forma, a grande maioria das crianças vai permanecera a maior parte do tempo nas ruas perambulando, expostos a toda sorte de intercorrências dos adultos sendo explorados para serviços e mesmo sexualmente.

As cidades mudam e os meios e sistemas de produção também com o passar do tempo, mas a situação da criança nas cidades discorrida logo acima perduram de maneira alarmante até a década de 80, com o agravamento do aumento do contingente nas cidades bem como, os índices de violências são diretamente proporcionais e crescentes. O filme Pixote de Hector Babenco, de 1980 é um retrato nu e cru da infância de milhões de brasileirinhos que ficavam a deriva nas ruas enquanto seus pais trabalhavam, mostrando cenas fortes de violência e situações as quais eram normalmente expostos e o tratamento dispensando pelo estado para com os mesmos, configurado no sadismo das autoridades policias e guardas e gestores da instituição que os mantinha confinados, depois de serem recolhidos por atos infracionais ou ser caracterizado abandono, a chamada FEBEM - Fundação para o Bem Estar do Menor. Não obstante, a grande maioria dos protagonistas do filme viviam nas mesmas condições mostradas e o ator principal, Fernando Ramos da Silva foi morto por policiais em 1987 em meio a marginalidade depois da carreira frustrada de ator.

 
Apesar de no nome constar o “bem estar do menor”, a FEBEM ficou marcada na história como um lugar de muito sofrimento, violência e crueldade, onde adolescentes eram constantemente submetidos a abuso sexuais, tanto pelos internos mais velhos com a conivência de funcionários, quando não, em muitos casos pelos próprios, possuindo uma alta taxa de mortalidade, rebeliões e reincidência ao crime por parte dos que saiam ou fugiam.

Assim o sistema de atendimento a criança se resumia em reformatórios e casa de correção para os menores infratores e escolas de aprendizado profissional ou rural para os menores abandonados, bem como em programas fundamentalmente assistencialistas.

De acordo com a pesquisa de Rosemberg (1993), em 1982 pela FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem Estar do menor, órgão criado em substituição ao SAM – Serviço de Atendimento ao Menor, os quais eram imbuídos de coordenar as instituições de atendimento como a FEBEM), pelo havia pelo menos 36 milhões de crianças e adolescentes considerados abandonados ou em situação de risco. Em 1989, o IBGE e o UNICEF pontuaram que o numero havia crescido para 49,6 milhões o que correspondia a quase 87% da população infantil, sendo que o critério para se definir esses números era baseado em crianças que passariam a maior parte do tempo sem a tutela de um adulto e não necessariamente que vivessem nas ruas sem vinculo familiar, nesse caso os números chegavam a 12 milhões de crianças vivendo nas ruas e 8 milhões sem nenhum vínculo familiar, sendo mais de um quinto de meninos.

Se então não houvesse mudanças na forma de tratar as políticas públicas para a criança, as estimativas para 2000 seriam de 80 milhões de crianças em situação de risco e abandono de acordo com Carlos Luppi (Massacre do Menor).

Até então, a criança e o adolescente não eram reconhecidos como sujeito de direitos, mas sim como objeto de tutela estatal, e toda a ação correspondente era regida pelo Código de Menores de 1979, o qual foi instituído na época da ditadura militar, de maneira que os únicos entes ligados a esse sistema eram de ordem jurídica, militar e assistencialista.

A primeira mudança se dá com a promulgação da Constituição de 1988, que traz o Artigo 227º, o qual será o 4º Artigo do E.C.A. a qual procurou adequar suas determinações às normas dos Direitos Humanos, até então preteridos pelo longo período ditatorial. 

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 

Ou seja, a partir do ECA a criança e o adolescente passam a ser vistos como sujeitos de direitos em sua condição peculiar de desenvolvimento, mudando a perspectiva doutrinária da Doutrina do Direito Penal , a qual se atinha apenas a medidas judiciais perante a situação considerada irregular executadas pela figura do Comissariado do Menor, mudando para a perspectiva da proteção integral e da garantia do cumprimento dos direitos. Dessa forma, as ações irão se estender por todos os órgãos, serviços e departamentos ligados ou que podem promover o desenvolvimento infantil, não mais comente a assistência e a correção pura e simplesmente. 

Outra mudança que o ECA trouxe, que vale a pena destacar é a concepção de que lugar de criança é com sua família e que, a partir de então, nenhuma criança poderia ser tirada de sua família pelo simples fato da condição material escassa, pois isso era uma prática muito comum, como um comércio de crianças, dentro de um esquema que, dependendo a cidade, envolvia até mesmo os profissionais da área de adoção. Não raro crianças eram retiradas de suas famílias (ou ainda vendidas por estas) pelo fato dessas serem muito pobres, de maneira que, o bem estar da criança junto a sua própria família é priorizado pelo estado, o qual deve providenciar as condições mínimas para que a família se mantenha unida (inscrição e programas de complementação de renda, como é o caso do programa Bolsa Família e de inserção produtiva – PRONATEC, Pólo da Beleza e etc.).

Vale a pena destacar ainda do ECA, esse trouxe a descentralização das decisões, ações, desenvolvimento das políticas públicas para a infância a partir da municipalização das ações locais com a criação dos conselhos tutelares, dos direitos da criança e adolescentes além do estabelecimento do conceito de proteção em rede, permitindo mobilizar diversos seguimentos da sociedade.

Hoje os principais órgãos responsáveis pelas políticas públicas para a infância e juventude são:

Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, a qual procura manter a sintonia do desenvolvimento de nossas políticas com determinações de órgão internacionais dos Direitos Humanos. 

O CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente) o qual trata de uma é um órgão colegiado permanente de caráter deliberativo, e de composição paritária, entre poder público executivo e sociedade civil.

O CONDECA (Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente) com as mesmas atribuições na esfera estadual e o CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, que deve elaborar, fiscalizar e participar de todas as políticas públicas locais voltadas a esse público em nível local.

O Conselho Tutelar, o qual trata de fiscalizar e garantir o cumprimento do ECA, além de tutelar as crianças e adolescentes em situações em que os pais não podem estar presentes por um motivo ou por outro.

O CMDCA de Itararé possui doze conselheiros sendo seis membros representantes da sociedade civil indicados por instituições de atendimento a criança sendo eles representantes do Instituto Educacional Guarda Mirim, da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE, Sociedade Itarareense de Aprendizado Musical – SAMI, Educandário São Vicente de Paula, e um membro adolescente escolhido entre as escolas do município. Já os representantes do poder público são indicados nas pastas da Secretaria de Educação, Saúde, Finanças, Administração, Ação Social e Departamento Jurídico. 


A partir dessa ramificação, são instituídos comissões e órgãos no sentido de estabelecer um Sistema Nacional de Garantia dos Direitos da Criança e Adolescente, englobando Comitê de Combate a Mortalidade Infantil e Materna, fomentado pelo Ministério da Saúde e organizado e gerido pelas secretarias municipais, as Comissões de Combate e Enfrentamento a Exploração Sexual Infantil e trabalho infantil. 

Outra questão de suma importância, que assume outra perspectiva com o ECA é a questão dos adolescentes e jovens que cometem atos infracionais ou crimes. Erroneamente as pessoas entendem que o ECA protege marginais, pois só lhes dá direitos, quando na verdade há uma série de medidas sim cabíveis a situação, tratadas no Artigo 112, com pelo menos sete medidas a serem tomadas nesse caso, e nesse sentido, cada município esse ano de 2014, deverá apresentar seu Plano Decenal para que seja instituído o Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativa, determinado pela LEI Nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012.

Essa lei institui o Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo (SINASE) e regulamenta a execução das medidas sócio educativas, desta forma, entendo que muito dos que criticam o ECA, nunca o leram de fato e não o conhecem efetivamente.

O problema não está no estatuto e sim na aplicabilidade do mesmo, que apesar do muitos avanços, permanece com várias lacunas como essa.

Dentre os avanços mais recentes podemos destacar a criminalização da pedofilia na internet e a transformação dos crimes de abuso e exploração sexual infantil em crime hediondo, bem como a regulamentação da propaganda que envolve e estimula o consumismo infantil, são os últimos avanços, mas o principal desafio dos órgãos da rede de proteção e garantia dos direitos é a aplicabilidade efetiva do E.C.A. e a contenção de retrocessos como o projeto de lei da redução da maioridade penal que tramita no congresso.

O Brasil deu passos largos na ultima década na erradicação do trabalho e do trabalho escravo infantil, no enfretamento a exploração sexual, mas ainda são muitos brasileirinhos vivendo em situações precárias, sofrendo todo tipo de abuso. 

E levando em conta que, de acordo com a Constituição e com o ECA, crianças e adolescente devem ser e ter prioridades na elaboração das políticas publicas voltadas a infância e adolescência, por isso, mãos a obra, porque:

“Criança não trabalha, criança dá trabalho...” Palavra Cantada 

Veja e leia também: 

ROSEMBERG, F. O discurso dobre a criança de rua na década de 80. Cad. de Pesq., São Paulo, n.87, p71-81, Nov. 1993.


Documentário "Crianças Invisíveis": https://www.youtube.com/watch?v=IxmBRrbEhFA

Nenhum comentário:

Postar um comentário