terça-feira, 28 de julho de 2015

Thiong'o, Educação e Revolução

Como, logo em seu primeiro trabalho, o autor queniano trata de temas fundamentais acerca da história de seu país

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

“Não fiques zangada, Mwihaki. Que posso eu dizer-te agora? Tu e eu só podemos ter fé na esperança. Pensa só um momento, Mwihaki, e repara. Se soubesses que todos os dias da tua vida seriam sempre como estes, com sangue correndo diariamente e homens morrendo nas florestas enquanto outros diariamente suplicam misericórdia se, por um instante que fosse, soubesse que isso continuaria assim para sempre, então a vida ficaria sem sentido, a não ser que chacinar e morrer tivessem qualquer sentido. De certeza que estas trevas e que este terror não hão-de durar sempre. De certeza que vai haver um dia de sol, um dia quente e doce depois de todas essas tribulações, um dia em que possamos respirar o calor e a pureza de Deus...”


Quando me deparei com o nome de Ngugi wa Thiong’o pela primeira vez, em um anúncio sobre sua vinda na Festa Literária de Parati deste ano, senti uma afinidade imediata com seus olhos penetrantes e seu sorriso bondoso. Sem pestanejar, fui correndo para a internet e comprei o único (!) livro dele que achei à venda. 

E, de fato, Ngugi não é um cara qualquer. Com 77 anos nas costas, o escritor leva consigo uma história de luta e sofrimento, fortemente ligada à sangrenta independência de seu país de origem: o Quênia. Em 1977, o autor chegou a ser preso por conta de críticas sociais contidas em suas obras – e o que é um tanto irônico é que ele foi preso durante o governo de Jomo Kenyatta, antigo militante contra a colonização britânica que, depois de eleito presidente, teve medidas bem questionáveis: tornou-se, por exemplo, um dos maiores donos de terras do Quênia. Depois de solto, Ngugi afastou-se do seu país e deu aulas de literatura em universidades como as de Yale e de Nove York.

Outro fato importante sobre o queniano é que, depois de 1977, ele deixou de escrever suas obras em inglês e passou a escrevê-las em gikuyu, sua língua de origem e de caráter popular. Essa é a maneira que Ngugi encontrou para lutar contra a hegemonia da língua inglesa no seu país e para valorizar a cultura africana nas suas raízes.

Thiong’o viveu uma das épocas mais conturbadas de toda a história do continente africano: a independência do Quênia. Não só viu de perto, como teve um irmão morto e outro irmão aliado ao que ficou conhecido como Rebelião Mau-Mau, no início dos anos 1950. Os Mau-Mau eram membros do chamado Exército Terra e Liberdade e lutavam contra a colonização e hegemonia britânica, exigindo a restauração de terras perdidas para os colonizadores – e, para tanto, utilizaram-se desde greves até chegar à luta armada. 

A revolta tomou grandes proporções e, em 1952, o governo declarou estado de emergência, transformando o conflito numa verdadeira guerra aberta, onde mortes e chacinas aconteciam de maneira fria e deliberada. A repressão afetou 100 mil quenianos, entre mortes e prisões. Apesar da guerrilha anti-colonial ter sido por fim massacrada, ela abriu caminhos para a independência que o país viria a conquistar em 1963. 

É justamente neste cenário que se passa a história do primeiro livro de Ngugi, Não chores, menino. O livro foi escrito em 1962, pouco antes da independência queniana, e publicado em 1964. No enredo, encontramos Njoroge – um garoto comum, que vê nos estudos toda fonte de esperança que precisa para melhorar a vida de sua família. No início dos anos 50, enquanto o garoto se esforça para vencer todos os obstáculos que se lhe impõem, ele também testemunha a tensão entre brancos e negros, a inconformidade que muitos tiveram em perder suas terras ancestrais para os ingleses (como Nghoto, seu pai) e o que culminaria na já mencionada Revolução Mau-Mau. 

O romance, que conta basicamente a história pessoal de Ngugi e sua família, está intimamente relacionado com a difícil história de seu país. A primeira parte do livro, chamada “Luz indecisa”, relata a formação da luta contra os colonizadores. Com muita sensibilidade e com uma qualidade surpreendente para um primeiro trabalho, Ngugi conta como as pessoas em volta de Njoroge vão apercebendo-se de que foram, de fato, roubadas. Além disso, paira uma enorme inconformidade com muitos quenianos que foram enviados para as duas guerras mundiais e que, inevitavelmente, morreram – o que inclui um dos irmãos de Njoroge. 

Com o perpassar da história e com as disputas cada vez mais acirradas entre rebeldes e colonos, nos deparamos com a segunda parte do romance, denominada “As trevas”. Lutar contra as forças dominantes mostra-se muito difícil. Pouco a pouco, Njoroge vê seu mundo e suas crenças sendo contestas – e é justamente aí que reside a essência do livro: vale a pena observar como o autor consegue ressaltar com sensibilidade a maneira como a educação pode ser uma luz diante de uma realidade sombria e caótica. 

Apesar da questão da educação ser algo bem complexo no romance, pode-se dizer que foi assim que o próprio Thiong’o encontrou forças para denunciar, em seus livros, as enormes injustiças que aconteceram em seu país. É claro que a educação, sozinha, não resolve todos os problemas de um país. É preciso realizar necessidades básicas, como comer. Porém, ao ler o livro, mostra-se inquestionável o poder de uma boa educação na formação de um indivíduo como ser pensante e questionador.

O livro, apesar de triste, mostra que é também um relato sobre esperança e luta por dias melhores. É uma história que machuca por vezes e que nos induz a refletir, concomitantemente, sobre o destino de toda uma nação, mas também sobre o destino pessoal da família injustiçada de Njoroge. Este tipo de mensagem mostra-se universal porque, quando menos esperamos, nos deparamos pensando em questões comuns a nós mesmo, como justiça, vingança, perseverança e sacrifício pessoal. 

Assim, o autor coloca de maneira brilhante os vários pontos de vista das personagens, entrando em suas consciências e colocando em forma narrativa aquilo que se passa dentro delas. A narração é objetiva e o seu efeito é surpreendente e contundente, mostrando, logo de cara, que Thiong’o tem um talento gigantesco para escrever. (Ficaria aqui um pequeno apelo desta humilde pessoa que vos fala, apelo este que clama por edições brasileiras bem feitas da obra de Thiong’o.)

Como já disse, Ngugi wa Thiong’o não é um cara qualquer. Não chores, menino também não é um livro qualquer. Ele tem aquele poder de nos conscientizar para um tipo de sofrimento e de história que estão longe (pelo menos geograficamente) de nós. Com Ngugi, entendemos que lutar por um futuro melhor e mais justo é necessário – nem que a sua forma de luta seja escrevendo um maravilhoso livro.


EDIÇÕES NO BRASIL

Título: Não chores, menino
Autor: Ngugi Wa Thiong’o
Nacionalidade: Queniano
Editora: Caminho (Lisboa), 1979

Um comentário:

  1. Ótima matéria! Acho que você já deve saber, mas dois livros do Ngugi foram traduzidos ano passado para português: Sonhos em Tempo de Guerra (biografia) e o maravilhoso Um Grão de Trigo.

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