por LUIS FELIPE MACHADO DE GENARO
O Brasil foi e permanece um país violento. Muitos não admitem, mas este problema é mais velho que se imagina e mais enraizado que se almeja.
“Violento” não apenas no sentido empregado e incitado por programas policialescos, sedentos por sangue negro e marginal, ou como pregam diariamente pastores e deputados fundamentalistas, nas igrejas e no Palácio das Bancadas, respectivamente.
Pelo império do senso comum, sustentado por uma imprensa “social e moralmente irresponsável”, como já acusava Darcy Ribeiro décadas atrás, nasce o temor. O medo transforma, move e consome de maneiras inúmeras. Hoje, vivemos em sociedades do medo. Temerosos, não agimos racionalmente. É aí que tudo começa a se esgarçar.
Suspeito, Cleidenilson Pereira da Silva, descalço, careca, pouca roupa, negro da periferia, foi linchado até a morte por moradores de um bairro de São Luís, no Maranhão. As cenas são fortes, mas merecem ser vistas.
Aqueles que conhecem Jean-Baptiste Debret e suas pinceladas sobre o cotidiano de um país em formação, como o escravo no tronco sendo açoitado pelo feitor, não se assustariam, no entanto, com a fotografia tirada de Cleidenilson já morto, amarrado e ensanguentado. O periódico Extra a publicou em manchete histórica: “do tronco ao poste”. Com isso, poderíamos evocar aqui discussões diversas versando direitos humanos e racismo, segurança pública e desigualdade social. Não o faremos.
A violência, aquela velha parteira, imersa na estrutura dos séculos, das mentalidades e práticas, vem a ser o epicentro de uma discussão ainda por se fazer; uma urgência sobre um passado que insiste em não passar.
Que fique bem claro que o que está em jogo não é a defesa dos atos – praticados ou não! – por Cleidenilson. Afinal, a polícia civil ainda investiga o que de fato ocorreu.
O que mais intriga, ou assusta, é o linchamento e a “justiça” feita com as próprias mãos. Um acontecimento que de tão colonial, chega a entristecer. Indago se seria um problema apenas de segurança pública. Difícil. Muitos outros linchamentos ocorreram nos últimos meses e suas vítimas não são nada mais, nada menos, que reflexos de Cleidenilson.
O que poucos compreendem é que quando algo assim acontece, um Brasil de muitas permanências e poucas rupturas emerge. Um Brasil marcado pela opressão violenta que se dilui no seio da própria divisão de classes, fruto de uma colonização brutal, quatro séculos de escravidão, doutrinações, inflexível estratificação social e tentativas de conciliação e apaziguamento de conflitos pelas classes dirigentes – principalmente as atuais.
Os atos praticados contra Cleidenilson são “compreensíveis” ao olharmos de cima a formação das classes subalternas do país. O feitor, com o chicote na mão, também era “corpo sem alma”, “mercadoria com dentes”, negro e explorado. Os que lincharam Cleidenilson não eram, senão, gente pobre, atemorizada, que agoniza em um horizonte sem expectativas, imersa no senso comum midiático, sentindo-se enfim, desprotegida. Cleidenilson, bom, era marginal. Estava à margem de um sistema político e econômico que o empurrava e comprimia.
Por essas e outras, a violência, hoje, carrega consigo conotações negativas – quando deveria ser relativizada e vista por prismas muitas vezes ignorados.
Se as estruturas foram erigidas na base da violência, do genocídio e da exploração, apenas uma outra violência, um outro tipo de violência, desencadearia a sua demolição. Escrevi sobre isso em meu último artigo neste Desafinado, “Entre a derrocada e a esperança”.
Da maneira como está, as classes subalternas permanecerão conspirando, maldizendo, humilhando, maltratando, linchando e aniquilando a si próprios. Situação paradoxal e microfísica, como certa vez mostrou Foucault, que poucos parecem compreender.
A cada marginal amarrado, um eterno retorno. Reflexo de uma base social oprimida por forças externas, que na mesma esteira, se auto oprime diariamente.
Como tudo em nossos dias, o paradigma da violência está em crise. Dela brotam apenas conotações negativas. Não no esqueçamos que em um passado não muito distante ele moveu transformações, mudanças de regime e sistemas, e fomentou como nunca o conflito social – ou, se preferirmos, a velha luta de classes. Afinal, não há lorota mais mal contada que a tal pax social repetida por sucessivos governos e autoridades.
Não há paz. Nunca houve.
Cleidenilson Pereira da Silva, linchado; Eduardo de Jesus Ferreira, assassinado com um balaço na cabeça; Amarildo Dias de Souza, torturado e desaparecido; Claudia Silva Ferreira, arrastada por um camburão da PM; provas vivas, hoje mortas, de uma sociedade violenta em seu âmago, que faz do extermínio do oprimido uma constante.
Sobre a mancha da escravidão e suas consequências, Darcy Ribeiro, em seu Povo Brasileiro, refletiu:
"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne daqueles pretos e índios suplicados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os suplicou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos".
Enquanto a plebe rude na cidade morre, há outros, mais acima, pilastras e fomentadores da violência assistida, sistêmica e histórica. Os coronéis de outrora, hoje, senhores de colarinho branco. Se futuros Cleidenilsons e seus linchadores não se conscientizarem dos verdadeiros inimigos, não haverá mudança, ruptura radical ou qualquer sinal de transformação. Eles continuarão – nós continuaremos! – a nos autodestruir.
Talvez seja este o tal projeto inicial. E só há uma maneira de acabar com ele.
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