Como as frustrações do escritor na era das redes sociais desnudam a encruzilhada em que vive a comunicação na contemporaneidade
por MURILO CLETO
Recebi há poucos dias a ligação de um amigo que sugeria um tema pro blog e me repreendia pelo artigo escrito sobre a questão da "ideologia de gênero" no Plano Municipal de Educação em Itararé. Provavelmente ele tinha razão: pouquíssima gente deve ter entendido o conceito de Marx sobre ideologia e, afinal, por que ele tem sido tão mal utilizado nos últimos tempos. Parte dos comentários no texto confirma essa hipótese: "Você até escreve bem, ficou bunitinho seu texto, acredito que até vai enganar os verdadeiros idiotas úteis. Não a essa IDEOLOGIA MALDITA e PRONTO", me escreveu um leitor carinhoso.
Refazendo o lamento, seria possível dizer que pouquíssima gente que precisava ler o artigo deve ter entendido o conceito de Marx sobre ideologia. E a novela dos planos municipais de Educação em todo país ainda deve oferecer muitos capítulos pra alguma análise mais apurada. O fato é que a conversa me lembrou outro comentário sobre o blog e que me chamou a atenção. Alguém, que não me recordo quem, sentenciou: "vocês escrevem pra público ganho". Se a intenção de quem escreve é, sei lá, mudar o mundo, a fala serve como um verdadeiro balde de água fria.
Mas, afinal, o que provoca essa distância abismal entre o que se escreve e o que se entende disso? E, ainda, o que explica a sensação, crescente e trágica entre escritores, de se, cada vez mais, falar para paredes?
Já em 1507, o dramaturgo espanhol Fernando de Rojas perguntava-se, inquieto, por que sua obra era apropriada de formas tão múltiplas e provocava tanta discórdia entre seus leitores. O autor de La Celestina sustentava haver três categorias deles: os que utilizavam as obras meramente como entretenimento e selecionavam trechos que tinham a ver com a jornada percorrida pelo personagem principal do conto; os que interessavam-se pelas obras para o seu uso prático, como a memorização de provérbios e chistes; e, finalmente, os que extraíam da obra a sua essência para dela tirar algum proveito e poder empregá-la adequadamente. Segundo o escritor, somente os terceiros estavam corretos.
5 séculos depois, há boas explicações médicas pra isso: além de simplesmente receber informação, na acepção grega da palavra, há um caminho de elaboração muito mais complexo do que se anuncia. Em brilhante artigo assinado na Revista Piauí de março de 2010, Atul Gawande discute esse processo cognitivo pra tratar da coceira, encarada durante gerações como uma resposta automática do corpo diante de qualquer incômodo nele provocado. De acordo com o autor, a existência de "membros fantasmas" corrobora a hipótese de que a maioria das fibras que chegam ao córtex visual primário do cérebro não vem da retina, mas da memória - cerca de 90% da nossa percepção, segundo o neuropsicólogo britânico Richard Gregory. É por isso que dor e coceira em membros fantasmas só podem ser tratados mediante intensa fisioterapia com muito apelo visual, pra que o cérebro se acostume com a ideia de que o membro não existe mais.
E o que isso tem a ver com a leitura? Mais do que recebe, algo o interlocutor constrói a partir do que lê. E essa elaboração está diretamente relacionada com uma conjunção de esforços entre memória, sentimentos coletivos e percepções individuais.
Mas, afinal, o que provoca essa distância abismal entre o que se escreve e o que se entende disso? E, ainda, o que explica a sensação, crescente e trágica entre escritores, de se, cada vez mais, falar para paredes?
Já em 1507, o dramaturgo espanhol Fernando de Rojas perguntava-se, inquieto, por que sua obra era apropriada de formas tão múltiplas e provocava tanta discórdia entre seus leitores. O autor de La Celestina sustentava haver três categorias deles: os que utilizavam as obras meramente como entretenimento e selecionavam trechos que tinham a ver com a jornada percorrida pelo personagem principal do conto; os que interessavam-se pelas obras para o seu uso prático, como a memorização de provérbios e chistes; e, finalmente, os que extraíam da obra a sua essência para dela tirar algum proveito e poder empregá-la adequadamente. Segundo o escritor, somente os terceiros estavam corretos.
5 séculos depois, há boas explicações médicas pra isso: além de simplesmente receber informação, na acepção grega da palavra, há um caminho de elaboração muito mais complexo do que se anuncia. Em brilhante artigo assinado na Revista Piauí de março de 2010, Atul Gawande discute esse processo cognitivo pra tratar da coceira, encarada durante gerações como uma resposta automática do corpo diante de qualquer incômodo nele provocado. De acordo com o autor, a existência de "membros fantasmas" corrobora a hipótese de que a maioria das fibras que chegam ao córtex visual primário do cérebro não vem da retina, mas da memória - cerca de 90% da nossa percepção, segundo o neuropsicólogo britânico Richard Gregory. É por isso que dor e coceira em membros fantasmas só podem ser tratados mediante intensa fisioterapia com muito apelo visual, pra que o cérebro se acostume com a ideia de que o membro não existe mais.
E o que isso tem a ver com a leitura? Mais do que recebe, algo o interlocutor constrói a partir do que lê. E essa elaboração está diretamente relacionada com uma conjunção de esforços entre memória, sentimentos coletivos e percepções individuais.
Mas Rojas não foi o primeiro nem o último autor a lamentar as nuances interpretativas que o seu texto provocou. Hoje ele seria só mais um dentre tantos escritores frustrados com os rumos da sua obra, especialmente nos tempos da hiperinformação.
No limiar do século 21, a popularização da internet provocou uma verdadeira revolução em comunicação. Do noticiário impresso ou televisivo, a velha noção de um polo emissor e outro receptor ruiu diante de um processo que primeiro multiplicou como nunca a criação de conteúdo e que também induziu a sua horizontalização.
Não é por acaso que o Facebook tenha se tornado a maior rede social do mundo: entendeu como ninguém essa guinada e passou a explorar a comunicação a partir dos interesses de quem constitui a rede, os próprios usuários. Sobrevive-se a ele porque o excesso de informação pode ser filtrado mediante a seleção da própria rede, que direciona publicações de maior afinidade ao receptor, o que multiplica exponencialmente as chances de interação. O Orkut, primeira opção dos brasileiros em 2004, não resistiu e virou verbo pra classificar a popularização do império de Zuckerberg: "estão orkutizando o Facebook", é o que diziam durante a migração.
É por isso também que a internet tornou-se um grande laboratório virtual. Em troca do acesso livre e irrestrito a todo conteúdo, a rede sobrevive a partir da coleta de dados, experimentos e de anúncios cada vez mais seletos de acordo com o mapeamento do que se faz online. No ano passado, a chefe operacional do Facebook e executiva nº 2 da rede, Sheryl Sandberg, chegou a pedir desculpas por uma pesquisa realizada em 2012 que filtrou e manipulou, sem qualquer aviso prévio, o feed de notícias dos usuários para observar as suas emoções diante do que lhes era exposto.
Mas o que tinha tudo pra ser espaço amplo e irrestrito da democracia já tem dado sinais de saturação. E não é mero acaso que a internet tenha virado palco pra manifestações de ódio de toda ordem, da direita à esquerda, de cima pra baixo.
Não é por acaso que o Facebook tenha se tornado a maior rede social do mundo: entendeu como ninguém essa guinada e passou a explorar a comunicação a partir dos interesses de quem constitui a rede, os próprios usuários. Sobrevive-se a ele porque o excesso de informação pode ser filtrado mediante a seleção da própria rede, que direciona publicações de maior afinidade ao receptor, o que multiplica exponencialmente as chances de interação. O Orkut, primeira opção dos brasileiros em 2004, não resistiu e virou verbo pra classificar a popularização do império de Zuckerberg: "estão orkutizando o Facebook", é o que diziam durante a migração.
É por isso também que a internet tornou-se um grande laboratório virtual. Em troca do acesso livre e irrestrito a todo conteúdo, a rede sobrevive a partir da coleta de dados, experimentos e de anúncios cada vez mais seletos de acordo com o mapeamento do que se faz online. No ano passado, a chefe operacional do Facebook e executiva nº 2 da rede, Sheryl Sandberg, chegou a pedir desculpas por uma pesquisa realizada em 2012 que filtrou e manipulou, sem qualquer aviso prévio, o feed de notícias dos usuários para observar as suas emoções diante do que lhes era exposto.
Mas o que tinha tudo pra ser espaço amplo e irrestrito da democracia já tem dado sinais de saturação. E não é mero acaso que a internet tenha virado palco pra manifestações de ódio de toda ordem, da direita à esquerda, de cima pra baixo.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, o sociólogo Manuel Castells sustentou que "a única coisa que a internet faz é expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se de um espelho". Muito embora seu ponto de argumentação esteja ancorado na ideia de que o Brasil sempre foi violento, apesar do mito da cordialidade, Castells ignora o potencial aquartelador em que se construíram as relações online no Ocidente e que estimularam não a polarização do debate político, mas a sua negação.
Escrever pra quem está do lado de lá no século XXI é se jogar numa cova de leões, correndo o risco de ser desautorizado de antemão num território que não é o seu. Escrever pra quem está do lado de cá soa quase como inútil, afinal o que se muda no conjunto com a mera confirmação de pressupostos particulares? Enquanto ouvia a justa reclamação do amigo que me questionava sobre a erudição de um texto que precisava de um apelo mais popular, lembrava-me da sua escrita e da sensação de chute no balde que acompanhou a decisão de recorrer a Marx pra explicar o que ninguém está disposto a entender.
Os últimos debates na internet sobre a redução da maioridade e a questão do gênero nos planos municipais de Educação desnudaram como nunca esse isolamento. Já se disse tudo o que se precisava dizer pra que a rejeição à PEC 171/93 não fosse encarada como defesa de jovem delinquente, assim como tudo sobre gênero pra que não se pense tratar-se de conversão transexual nas escolas. Mas não funciona: a ideia bate no muro do outro e volta. Mais do que não se entende, não se quer entender e há um gozo nesse bloqueio, pois mesmo o repúdio nunca foi tão publicizado.
Pode ser por isso que parte da esquerda tenha apostado tanto ultimamente em recursos como a apropriação de Jesus Cristo como vanguardista do progressismo, uma espécie de carona que pode ajudar no que hoje parece quase impossível: ser ouvido no meio deste turbilhão de gente falando.
O historiador Roger Chartier dizia que a leitura é o ato de "caçar em propriedade alheia". E, de alguma forma, ele nos remete a Walter Benjamin, que já na primeira metade do século XX apontava a capacidade de retenção do choque da vida moderna, da velocidade caótica que derruba a auréola do poeta em Baudelaire, como fator determinante pro empobrecimento da experiência e da imaginação, o que nos impede de visitar, desarmados, o outro na sua propriedade.
Na esteira da trágica morte do cantor sertanejo Cristiano Araújo e do orgulho daqueles que alegavam desconhecê-lo, Matheus Pichonelli trouxe essa reflexão também como autocrítica. Até que ponto vale a pena o conforto da vida no interior destas muralhas? De tão superiores, perdemos o contato com o chão. E, de repente, parece que a nossa única relação com a cidade se dá através do taxista que nos leva de uma bolha pra outra. Daí o espanto, que já virou corriqueiro, com uma ou outra declaração digna de asco pra ser objeto de crônica horas depois.
Orgulhamo-nos também de não ler os comentários nos nossos próprios textos porque decerto somos bons demais pra isso. Mas, por algum motivo, dessa vez eu fui conferir o que diziam os leitores no texto do Matheus.
"E a 'CUT', é do PT?", é o que o primeiro deles queria saber.
Abraços,
Murilo
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