Dos rolezinhos à ascensão de um novo Estado Islâmico, passando pela Copa das Copas e a eleição presidencial mais disputada desde a redemocratização, novamente ameaçada
por MURILO CLETO
Um século inteiro caberia em 2014. Bem conversadinho, dois até. Nele concentraram-se as grandes interrogações do século XXI, mas também os dilemas do XX, que, ao contrário do que previram, ainda não acabou.
Já em janeiro, noticiários e redes sociais estavam tomados pelo grande debate da primeira metade do ano: os rolezinhos. Criminalizados pela polícia e discriminados pela classe média de dentro ou fora das capitais, os movimentos trouxeram à tona duas questões nunca tão ouvidas antes: liberdade e consumo. De repente, o consumismo na juventude virou uma preocupação. Mandaram-na ouvir Chico Buarque em vez de funk - o mesmo Chico Buarque que apareceu depois numa montagem que o exibia tomando café em Paris com dinheiro da Lei Rouanet, o que explicava, segundo quem compartilhou, seu apoio ao Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais.
2014 foi o ano do pleito mais disputado e inusitado desde a redemocratização: apenas 4 milhões de votos separaram a reeleição de Dilma Rousseff de uma Restauração Tucana. Isso porque a morte de uma até então discreta figura que aspirava a condição de 3ª via quase significou a ascensão de uma camaleônica Marina Silva, por fim rapidamente sepultada. Foi o ano em que a militância orgânica petista mais uma vez fez a diferença, ainda que meses depois fosse traída com a escolha do novo gabinete ministerial.
Este foi o ano de várias marchas pra trás. Foi o ano em que o Código de Hamurabi quase substituiu o código penal com a ação de justiceiros no Flamengo que, incentivada em TV aberta por Rachel Sheherazade, inspirou a maior onda de linchamentos neste país.
2014 mostrou que é perfeitamente justificável um parlamentar se dirigir a uma colega dizendo que não a estupraria porque ela não merece. Em 2014, a homofobia continua não sendo crime e a iniciativa do Senado em tipificar os assassinatos de mulheres foi massacrada por trazer "vantagens" ao sexo feminino.
50 anos depois do golpe que levou o país à mordaça, ao caos econômico e aos maiores índices de desigualdade social da história, milhares de pessoas voltaram às ruas pra pedir "intervenção militar", alimentados pela mesma paranoia da Guerra Fria: o medo do comunismo. Em 2014 vimos que o espírito golpista paira nas estruturas da própria democracia. Nunca vimos tanta gente defendendo o fim do sufrágio universal.
Mesmo que vigore há muitos anos, em 2014 a Política Nacional de Participação Social foi reprovada pelo Congresso sob o carimbo de "bolivariana". Aécio Neves chegou a usar como principal cartada na reta final das eleições o financiamento do BNDES à empresa brasileira que investiu na reforma do Porto Mariel em Cuba. Milhões de queixos caíram com a reaproximação entre os Estados Unidos e a ilha castrista, separados há mais de 50 anos. E ninguém imaginaria que um dos mediadores deste aperto de mãos seria ninguém menos que o papa.
2014 também foi o ano da mais brutal investida nos últimos tempos de Israel na Faixa de Gaza. Assistimos ao mais novo espetáculo de horrores no Oriente Médio com a ascensão de um novo Estado Islâmico, o ISIS, que tomou grande parte de Iraque e Síria também em reação à desastrosa ocupação ocidental que se desenrola desde 2001 na região. Foi o ano de novos bombardeios contra terroristas.
Este foi o ano em que o Brasil saiu da Mapa da Fome. O ano em que conscientes sociais descobriram que o salário do professor é bem menor que o do Neymar. Que tem corrupção no país. Que falta Educação. Foi o ano em que a presidenta da república recebeu vaias e ofensas em plena abertura da Copa das Copas, que acabou pra seleção brasileira com um surreal massacre diante da Alemanha e despertou incansáveis análises estruturais do futebol nacional.
2014 foi o ano dos paus de selfie - e também do inverso.
2014 foi o ano dos paus de selfie - e também do inverso.
2014 foi a despedida de grandes figuras públicas. A lista é imensa: Eusébio, Plínio de Arruda Sampaio, Eduardo Coutinho, Philip Seymour Hoffman, Gabriel García Márquez, Luciano do Valle, Rubin Carter, Jair Rodrigues, Oberdan Cattani, Fernandão, Di Stéfano, Osmar Oliveira, Tommy Ramone, Vange Leonel, Johnny Winter, Ariano Suassuna, Robin Williams, Nicolau Sevcenko, Jacques Le Goff, Manoel de Barros, Roberto Bolaños. Em 2014, nos deixou até a Mãe Dinah, que não previu a própria a morte.
Do anticomunismo sessentista à atual guerra de civilizações, o ano de 2014 é a versão reduzida e contemporânea de 2 séculos mal resolvidos. Se 2015 vai dar conta, nos encontramos aqui pra conversar.
Abraços,
Murilo
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