quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Foi sem querer querendo

 Como Roberto Gomez Bolaños criou um seriado atemporal que encanta crianças e intriga cientistas sociais

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR


Roberto Gomez Bolaños, falecido na última sexta-feira, 28 de novembro, nasceu em 21 de fevereiro de 1929, na Cidade do México. Na década de 1950 começou a carreira como roteirista acompanhando a dupla de comediantes Viruta e Capulina. Em 1968, Bolaños conquistou um espaço nobre nas tardes de sábado e estreou “Los supergenios de la mesa cuadrada”. Sucesso de audiência, o programa impulsionou o surgimento de novos quadros. Em 1970 surgiu o atrapalhado super-herói “Chapolin Colorado” e, um ano depois, o “menino do barril”, “Chaves”. 

Exibidos em mais de 90 países durante 4 décadas, os dois programas transformaram Bolaños em um ícone da “pop art” latino-americana. No Brasil, “Chaves” começou a ser exibido em 1984. O programa retrata a vida de uma menino órfão que vive em um barril em uma vila mexicana. Bolaños dirige e interpreta o personagem principal, Chaves. 

Meu primeiro contato com o programa se deu na metade da década de 90. A empatia foi instantânea, principalmente por conta do humor e das “aventuras” de jovens da mesma idade do receptor. Além disso, o abandono e as dificuldades vividas pelo personagem principal transformavam a empatia em compadecimento. Desta forma, se construiu um ícone pessoal e de milhares de jovens, o “Chaves”, o nosso “menino do barril”. 

Neste momento, ainda enquanto adolescente, o único interesse no “Programa do Chaves” era o de entretenimento. Veio então a Faculdade de História, o conhecimento relacionado ao pensamento social e a defesa, cada vez mais presente, da “cultura latino-americana”. No melhor estilo “Ianques, go home”, defendi o programa em detrimento dos seriados norte-americanos, principalmente os de The Walt Disney Company. Mais do que isso, comecei a ler o programa com outros olhos. Explica-se isso, pois conforme Thompson “(...) a recepção é uma atividade situada: os produtos da mídia são recebidos por indivíduos que estão sempre situados em específicos contextos sócio-históricos” (2011, p. 67). Ou seja, quando criança me interessava o programa pelo humor. Quando adulto, passou a me interessar pelos aspectos sociais representados.

Conhecido pela postura conservadora e pelo apoio financeiro aos políticos de direita, Bolaños, mesmo que “sem querer querendo”, produziu uma inegável crítica social do sistema capitalista no “Programa do Chaves”. Trabalhos acadêmicos têm se debruçado sobre a questão, ora para defender a representação da desigualdade social no programa, ora para afirmar que o seriado representa as relações conflituosas entre os Estados Unidos e a América Latina no contexto da Guerra Fria. 

Se nos voltarmos apenas ao cotidiano do personagem principal, o menino “Chaves”, podemos identificar agruras típicas da sociedade capitalista. A primeira delas é a ausência de moradia. Em uma vila composta por casas, Chaves vive em um barril exposto às intempéries do tempo. A segunda é a dificuldade com a escolarização. Mesmo que frequentando a mesma escola que os outros moradores da vila, Chaves enfrenta dificuldade com os conhecimentos ensinados pelo professor Girafalles, interpretado pelo ator Rubén Aguirre Fuentes. No episódio “O castigo da escola”, Chaves,  ao mesmo tempo em que demonstra total desconhecimento dos assuntos tratados pelo professor, é intimidado e ridicularizado pelos colegas em determinados momentos, sendo colocado em uma posição de inferioridade. 

Porém, o elemento mais visível é a fome sentida pelo personagem. No episódio “O dia das crianças”, Chaves expressa o problema em dois diálogos específicos:

Dona Florinda: Você gostaria de ter dinheiro para comprar um agasalho, não é mesmo, Chaves?
Chaves: Não.
Dona Florinda: Não?!
Chaves: Não, se eu tivesse dinheiro, preferiria comprar comida.
Paty: Eles dão bolo para gente, mas fazem a gente comer toda a verdura.
Chaves: Escuta, Paty. O que tem de mau as verduras?
Paty: Não, as verduras não têm nada de mau. 
Chaves: Então o quê?
Paty: O mal é ter que comê-las.
Chaves: Não, o mal é não ter o que comer.


Dessa forma, o menino expressa a ausência da alimentação e a importância do alimento na vida de pessoas pobres como ele. Em outro episódio, “O violão do seu madruga”, Quico, personagem interpretado pelo ator Carlos Villagrán, joga fora um sanduíche de presunto – prato preferido de Chaves -, que protesta por Quico não ter dado ao seu amigo “Centi”, na verdade um personagem imaginário criado por Chaves para obter recursos mínimos de sobrevivência.

Além da ausência de condições básicas como moradia, escolarização e alimentação, Chaves é constantemente inferiorizado pela ação de outros personagens. Quico, com sua bola, seu pirulito ou seus sanduíches de presunto, sempre se coloca indiferente à condição social do personagem principal. Seu Madruga, personagem interpretado pelo ator Ramón Gómez Valdez Castillo, sempre pune Chaves com castigos físicos quando este comete algum erro ou mesmo quando está enfadado com Dona Florinda, interpretada por Florinda Meza, esposa de Bolaños. 

Um dos episódios mais emocionantes e marcantes do seriado foi “O ladrão da vila”. Neste episódio, vários itens das casas da vila começam a desaparecer misteriosamente. Um dos itens, o ferro da Dona Clotilde, popularmente conhecida como “Bruxa do 71”, interpretada por Angelines Fernández Abad, é encontrado por Kiko no barril do Chaves. Todos os moradores acusam Chaves de ser o ladrão e o menino decide ir embora da vila. Chaves vai à Igreja e retorna por saber que não era ele o culpado pelos furtos. No final, tudo volta à normalidade, porém mais uma vez o menino órfão e pobre é inferiorizado ao ser acusado de um erro que não cometeu.


Nas palavras de Carlos Seidl, dublador do personagem “Seu Madruga”, Chaves é “óbvio, porém atemporal”. Isso porque o seriado tem cenas bastante simples e cotidianas, mas que, pela proximidade da realidade dos personagens com os receptores, acaba criando a empatia necessária ao sucesso do programa. Dessa forma, nas palavras de Costa e Fortuna, “O sucesso do Programa do Chaves ao longo de muitos anos, sendo 30 deles no Brasil, não estava apenas relacionado à qualidade do elenco e às falas cômicas, mas também à identificação do público com as personagens e solidariedade às agruras por elas vividas” (2013, p. 23). Ou seja, mesmo que “sem querer querendo”, o conservador Bolaños expôs as agruras vividas na sociedade latino-americana através da figura emblemática do menino órfão e pobre. 


Abraços,
Osvaldo.

8 comentários:

  1. Professor - deveria corrigir o TEXTO - existe uma diferença entre "morto e falecido", o CHAVES não morreu e sim FALECEU.

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  2. Osvaldo Rodrigues Junior4 de dezembro de 2014 às 10:49

    Caro leitor, parafraseando o imortal Chaves: "Isso, isso, isso".

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  3. Morre o homem, fica a fama.

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  4. Fantástico. Professor Osvaldo, grande matéria.

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  5. Fantástico. Professor Osvaldo, grande matéria.

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  6. Há uma frase que carrego como ensinamento: "Não há nada mais trabalhoso do que viver sem trabalhar". Seu Madruga era um filósofo das multidões! Belo texto!

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  7. O chaves não morava no barril, morava no 08.

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    1. No começo dava a entender q morava no barril sim. Depois que o programa mudou de canal, inventaram que morava na casa 8, pois o nome do seriado já estava consolidado: "Chavo del ocho (canal 8)".

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