quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

I can't breathe

Como a onda de assassinatos de negros por policiais, seguida de absolvição, escancara uma ferida aberta da “maior democracia do mundo”: a desigualdade racial 

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR

Jovem norte-americana durante protesto pela morte de Eric Garner 

No dia 17 de julho de 2014, Eric Garner, vendedor de cigarros ilegais em Nova Iorque, foi abordado pela polícia. Sem reação, o afro-americano foi jogado no chão e asfixiado pelo policial Daniel Pantaleo. No vídeo, Garner aparece dizendo “I can't breathe” (eu não consigo respirar), enquanto 5 policiais o encurralam contra o chão. Morreu a caminho do hospital vítima de ataque do coração. 

No dia 9 de agosto de 2014, Michael Brown, jovem afro-americano de 18 anos, foi abordado e alvejado com 6 (seis) tiros pelo policial Darren Wilson em Ferguson. Segundo a polícia, Brown praticava furtos e foi morto em legítima defesa por reagir à prisão. Dorian Johnson, que acompanhava Brown no momento da prisão, desmentiu a versão e afirmou que o jovem foi morto sem reagir, estando inclusive com as mãos para o alto. 

Em comum, a cor da pele e a violência policial. Porém, o mais impactante foram as decisões de ambas as cortes de não indiciarem Pantaleo e Wilson pelos assassinatos. A consequência foram os protestos por todos os Estados Unidos, que por um momento retrocederam o país à década de 1960, e a luta pelos direitos civis. 

Manifestante mostra cartaz para os policiais “Nós somos humanos” durante protestos nos Estados Unidos 

Mais do que isso, os casos de violência policial contra negros seguidos das absolvições escancaram a principal ferida aberta da “maior democracia do mundo”: a desigualdade racial. A BBC realizou um estudo sobre a desigualdade racial nos Estados Unidos exposto em cinco áreas: 

1) Desigualdade de renda: para cada US$ 6 com os brancos, os negros têm US$ 1. 
2) Desigualdade jurídica: há 20 vezes mais condenações de negros por casos parecidos. 
3) Desigualdade educacional: três vezes mais expulsões e suspensões escolares. 
4) Desigualdade de tratamento: A maioria dos negros considera que os negros são tratados mais injustamente pela polícia. 
5) Desigualdade de moradia: enquanto 73,4% dos brancos tem casa própria, apenas 43,2% dos negros tem o mesmo privilégio. 

Tais dados evidenciam uma permanência histórica nos Estados Unidos: a desigualdade racial. A importação de negros africanos para os Estados Unidos começou na segunda metade do século 17, principalmente para o trabalho nas lavouras de milho, tabaco, cânhamo, cana-de-açúcar, arroz e algodão. Em 1860, ano da eleição de Abraham Lincoln para a presidência da República, viviam aproximadamente 4 milhões de escravos negros nos Estados Unidos. As diferenças entre o norte industrial e o sul agrário e escravista culminaram com a Guerra Civil Americana. Em 1863, Lincoln assinou a Proclamação da Emancipação, que libertou todos os escravos dos estados confederados, e proibiu a escravidão em todo o país. Apesar disso, segundo o historiador Leandro Karnal, “o presidente pode ser considerado um antiescravista, mas nunca um abolicionista aberto e declarado". O que motivou a abolição foi a intenção de modernização da economia norte-americana frente aos países europeus em processo de industrialização. 

Gravura que representa o mercado de escravos na capital: Lincoln via o comércio de negros de seu gabinete no Capitólio enquanto ainda era congressista 

A abolição, assim como no Brasil, não representou a inserção nos negros na sociedade norte-americana. Mais do que isso, manteve e até aprofundou as desigualdades raciais. No final do século 19, o darwinismo social, expresso na vulgarização da “seleção natural” e da “vitória do mais apto”, fez surgir uma nova justificativa para a segregação, a inferioridade biológica dos negros. Tais teorias embasaram as Leis Jim Crown, decretadas nos estados do Sul. Essas leis representavam medidas segregacionistas que impediam os negros de votarem, de coabitarem espaços públicos e privados e mesmo, em alguns estados, de se casarem com os brancos. A legislação se espalhou pelos Estados Unidos e o segregacionismo se tornou comum em todo o país. Neste contexto, era normal os negros não poderem se sentar na parte da frente dos ônibus ou mesmo caminharem pela mesma calçada que os brancos. Na Carolina do Norte, se um branco retirasse o livro primeiro, nenhum negro poderia emprestá-lo nas bibliotecas públicas. 

Brancos na frente, negros no fundo: ônibus segregado em Atlanta, em abril de 1956

Ainda no final do século 19, em 1865, surgiu a Klu Klux Klan. Criado pelos jovens Calvin Jones, Frank McCord, Richard Reed, John Kennedy, John Lester e James Crowe da Confederação Sulista, o grupo perseguia e violentava os negros considerados “inferiores”. Por conta da violência, o grupo foi posto na ilegalidade pelo presidente Ulysses Grant, em 1871. 

Em 1915, o cineasta Griffith dirigiu o filme “O nascimento da nação”, expressando sua simpatia pela KKK. Tal fato deu novo impulso e o movimento ressurgiu com força. A violência passou a ser dirigida não apenas contra os negros, mas também judeus e estrangeiros. O grupo chegou a reunir 5 milhões de pessoas e permaneceu forte até meados dos anos 80, como mostra uma reportagem do Programa “Fantástico” da Rede Globo. Curiosamente, a reportagem apresenta um membro da Klu Klux Klan indicando a participação maciça de policiais no movimento. 

Passeata de membros da Klu Klux Klan em 1922
Somente em 1954 a Suprema Corte declarou inconstitucional a segregação nos Estados Unidos, porém, na prática, ela continuou existindo. Neste contexto, surgiu o movimento de luta pelos direitos civis no país. Encabeçado em uma frente por Martin Luther King Junior e em outra por Malcom X, os negros se organizaram em torno da luta pelo fim da segregação.

Com apenas 25 anos, o jovem pastor Luther King formou, juntamente com Charles Steele e Fred Shuttlesworth, a Conferência da Liderança Cristã do Sul, uma das maiores frentes no movimento pelos direitos civis, baseada nas práticas na desobediência civil de Gandhi. Em abril de 1963 acabou preso em Birmingham, Alabama, durante protestos antissegregação. Durante Marcha em Washington, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King proferiu o seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”. Um ano depois, Luther King recebeu o Nobel da Paz. No dia 4 de abril de 1968, King foi morto, vítima de um tiro de rifle em Memphis, disparado pelo racista James Earl Ray. 

Martin Luther King durante famoso discurso "Eu tenho um sonho" em Washington, 1963

Malcom X, preso em 1946 por furto, se converteu ao Islamismo na cadeia e passou a seguir os ensinamentos de Elijah Muhammed, líder da "Nação do Islã. Em 1952, quando saiu da cadeia, se transformou em um dos principais líderes do movimento negro. Pregava a separação das raças e a criação de um Estado autônomo para os negros dentro dos Estados Unidos. Em 1965, quando discursava no Harlem, foi assassinado com 13 tiros. Na década de 1970 suas ideias foram muito difundidas por movimentos como “Black Power” e “Panteras Negras”. 

As lutas tiveram como resultado o acesso a alguns direitos civis. Na década de 60 foram aprovadas a Lei de Direito ao Voto de 1965; a Ordem Executiva 11.246, que estabelecia ações afirmativas; a declaração de inconstitucionalidade da proibição do casamento interracial em 1967; e a Lei de Direitos Civis de 1968. Apesar disso, os dados apresentados pela pesquisa da BBC e mesmo algumas determinações jurídicas mais recentes, evidenciam que o problema da desigualdade racial ainda não foi superado nos Estados Unidos. Em 1991, o Presidente George H. W. Bush assinou a Lei de Direitos Civis, tornando mais rígidas as leis e aplicando punições para o não cumprimento. Em direção oposta, em 2013, a Suprema Corte derrubou a seção da Lei de Direito ao Voto, que assegurava o voto igualitário aos cidadãos. Na prática esta lei permite aos estados e cidades mudarem as suas leis e procedimentos eleitorais sem necessidade de autorização do governo federal.

Muito além de uma “histeria esquerdista”, como acusa a revista Veja, o entendimento de que os assassinatos de negros seguidos de não indiciamento dos policiais escancara a desigualdade racial historicamente posta nos Estados Unidos e permite evidenciar que o sonho de Luther King ainda está distante de ser alcançado. 

Abraços, 
Osvaldo. 

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