terça-feira, 28 de outubro de 2014

Ei, playboyzinho, conheceste o Nordeste?

Elitismo, preconceito e separatismo

por LUIS FELIPE GENARO


Pela quarta vez, 26 de outubro, para governar o Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi eleito com 51% dos votos. Perdeu também pela quarta vez o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Diferente do discurso da vitória de Dilma Rousseff, conciliatório e apaziguador, o eleitorado brasileiro, durante as semanas que antecederam o 2º turno, dividiu-se de forma expressiva. 

Diferentes grupos sociais, mesmo sem perceber, ideologizaram-se fortemente. O azul e o vermelho, o pássaro e a estrela, ressurgiram da arcaica e arraigada polarização que domina o país desde 2002, quando Lula derrotou FHC. 

Apesar das lamentáveis concessões quando imerso nas estruturas do poder, renegando algumas de suas bandeiras históricas, petistas, na conjuntura, representavam setores à esquerda. Tucanos, à direita. 

Na aniquilação mútua durante as campanhas e disputas no mínimo acaloradas, uma evidência perturbadora: de uma simples cisão ideológica ao preconceito racial e classista repulsivo. Nas redes sociais, um alvo dentre tantos outros: os nordestinos. Apesar de Aécio Neves mesmo nas regiões ao norte do país ter uma votação relevante, uma razão: o Nordeste está em peso com Dilma (Piauí: 78,30% Dilma, 21,70% Aécio; Bahia, 70,16% Dilma, 29,84% Aécio, etc.). 

Com uma ojeriza que não me é corriqueira, questiono: 

E aí, playboyzinho que politizou-se a uma semana de ir às urnas, você sabe a razão para os sertões estarem com Dilma? Ei, sulistas “brancos” e “civilizados”, vocês conhecem o Nordeste? Afinal, de onde vem este preconceito estúpido e criminoso? 




De antemão, leitores e leitoras, um exemplo preocupante garimpado sem dificuldades nos arautos do Facebook da noite do dia 26:

“[...] ou revemos nosso sistema eleitoral onde estados com maiores influências econômicas, com maior criação de emprego com a maior concentração de indústrias tem peso maior na escolha de um governante, ou talvez realmente seja a hora de repensar uma separação geográfica brasileira.” 

Tirando a falta de vírgulas, cito apenas um dos inúmeros anseios separatistas, preconceituosos e elitistas – ou seria da pobre classe média? – contra a região Norte-Nordeste do Brasil, por votarem de forma expressiva no PT.

Permito-me um foco mais contemporâneo que o clichê regresso ao nosso estado colonial, mesmo que suas permanências estejam implícitas. Primeiro, recordemos o trabalho magistral de Josué de Castro em fins dos anos 1950 sobre as regiões do território nacional onde a fome, a miséria e o descaso de nossa classe dirigente reinavam impetuosamente, ceifando centenas de milhares. 

Na sua Geografia da Fome, Castro esclarece: “Se o sertão do Nordeste não estivesse exposto à fatalidade climática das secas, não figuraria entre as áreas de fome do continente americano, mas entre as raras zonas de alimentação racional do mundo. Infelizmente, as secas periódicas, desorganizando por completo a vida econômica e social da região, extinguindo fontes naturais de vida, crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras, reduzem o sertão a uma paisagem desértica, com seus habitantes morrendo à mingua de água e de alimentos”.

De um lado, da espera ao “bolo crescer” para depois “distribuir”, nos anos 1970 e 1980, à era FHC, cerrando os anos 1990, uma elite com padrões de vida usufruindo direitos e poucos deveres. Do outro, uma massa de subcidadãos, subnutridos, espalhados pelo país. 

A partir de políticas públicas e sociais, como o Bolsa Família, o PT passou a assistir uma população historicamente excluída e marginalizada, da Colônia à República do século XX. Da comida na mesa à oportunidade de ascendência e escolarização, fundamental e superior, parcelas do povo nordestino e nortista, mas não apenas eles, mudaram radicalmente de vida.


Em junho de 2013 a Folha de S. Paulo entrevistou a socióloga Walquiria Leão Rego, docente em teoria da cidadania pela Unicamp. Para a autora do Vozes do Bolsa Família, o investimento social do governo tem caráter “libertador”. Sobre as entrevistas com os assistidos pelo programa, Rego desabafou: “Vi a alegria que sentiam de poder partilhar uma comida que era deles [...] não tinham passado a humilhação de pedi-la; tinham ido lá e comprado”. 

No Nordeste, o programa também enfraqueceu a velha prática do coronelismo. “O dinheiro vem no nome dela [beneficiária], com uma senha dela e é ela quem vai ao banco; não tem que pedir para ninguém. É muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao prefeito”, afirma a pesquisadora. 

Uma das campeãs mundiais da desigualdade social, democrática na aparência e essencialmente cruel e autoritária em momentos como o recente, a sociedade brasileira, apesar das parcas, mas importantes mudanças, esbanja desmemoria e inconsciência histórica. 

Ou seria apenas falta da réles humanidade?

A história do Brasil, como bem lembra-nos Darcy Ribeiro, é um projeto muito bem articulado. Seus rumos pouco foram entregues ao acaso. O preconceito com nordestinos e nortistas emerge principalmente daqueles “estados com maiores influências econômicas” e “concentração de indústrias”, citando nosso exemplo caricato retirado das redes sociais.

É no Sudeste-Sul que vivem sujeitinhos que desconhecem a história cruenta do próprio povo, sua origem e formação. Pior: compactuam com o pensamento da classe dominante, mesmo não o sendo. É de lá que brota este separatismo higienista truculento e ignorante. 

Para sujeitos assim, Nordeste é região de atraso, regresso e obscurantismo. Para sujeitos assim, orientados por sentimentos instigados principalmente pela velha imprensa, dos jornalões da noite à revistinha semanal, negro é bandido, homossexualidade é perversão e mulher é submissa.


Agora, para resolver o “problema dos nordestinos” – leia-se apenas: eleitores do PT – que, como relembra Josué de Castro, viviam “morrendo de fome aguda ou escapando esfomeados, aos magotes, para outras zonas, fugindo atemorizados à morte que os dizimaria de vez na terra devastada”, delimitar fronteiras rasgando a Terra de Santa Cruz seria a “solução final” para os problemas do Brasil. Visão equivocada do próprio país. 

Da “separação geográfica brasileira”, como muito bem defendeu nosso anônimo cientista político facebookquiano, ao sonho cotidiano dos pequenos holocaustos, soluções finais e etecetera, falta-lhes, playboyzinhos despolitizados, além de uma leitura mais acurada e discussões um tanto aprofundadas, aquela réles e urgente humanidade. 

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