terça-feira, 24 de junho de 2014

Um país em transe: realidade e violência, utopia e revolução

por LUIS FELIPE GENARO

Em 1967, um ano antes do Ato Institucional nº5, decreto que supriria de vez todas as liberdades individuais, intensificaria a repressão e estabeleceria a censura dos meios de comunicação, estreava o polêmico longa-metragem Terra em Transe, dirigido pelo baiano Glauber Rocha. No início dos anos 1970, Glauber, assim como outros intelectuais, artistas e militantes de esquerda, foi exilado pelo regime de exceção que se instalou com a queda de João Goulart, em 1964. O cineasta morreria no Rio de Janeiro, em 1981. Biografias à parte, sendo um dos expoentes do chamado Cinema Novo, o baiano deixou uma filmografia marcante, tecendo críticas sociais ferozes e contundentes sobre o Brasil contemporâneo. Citemos Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Maranhão 66 (1966), O dragão de maldade contra o santo guerreiro (1969), A idade da Terra (1980), entre outros. 



Tendo em vista o período em que vivemos, as insurgências que brotam e o discurso e ações uníssonas dos donos do poder, a obra Terra em Transe permanece curiosamente atual. As razões são diversas e precisamos pontuá-las. No filme, vários personagens lutam em polos distintos de um jogo político fictício, em uma República também fictícia. Há o golpista, temente a Deus e crente na civilização e no progresso; o candidato populista, que tem nas massas populares suas bases de sustentação; e o militante, um idealista que se vê imbuído nos fatos cruentos orientados por um grupo instável, demagogo e sem responsabilidade política.

Uma cena inesquecível é a caminhada do candidato populista pelas ruas da fictícia República de Eldorado, aclamado pelas classes populares como seu único e futuro líder. Glauber Rocha descontrói o que seria uma cena ideal, carregada de significados, quando um popular faz cessar a balbúrdia e grita aos prantos: “com a licença dos doutores [...] o povo sou eu, que tenho sete filhos e não tenho onde morar!”. O que acontece em seguida é intrigante e familiar: um policial pretoriano do candidato e de seus mantenedores o estrangula até a morte. Minutos depois ecoam xingamentos contra o morto – “vigarista!” – e o restante reinicia a algazarra. Para Glauber Rocha, Eldorado era o Brasil. Um Brasil marcado pela repressão e desigualdades sociais. Todavia sabe-se que o alvo premente de seu tempo era a ditadura militar instaurada na segunda metade do século XX. Por quais razões, então, Terra em Transe me parece estranhamente contemporâneo?

O filósofo e pesquisador, Paulo Eduardo Arantes, publicou recentemente uma obra de notório valor quando almejamos compreender o Brasil atual. Em O novo tempo do mundo, Arantes discorre sobre uma nova era que, paradoxalmente, no momento em que está sendo gestada, movimenta-se e não tem data para terminar. Uma era que não pode ser adaptada em balizas cronológicas ou classificada a base de saberes e veracidades plenamente constituídas. Em meio a incertezas generalizadas, Paulo Arantes a classifica “era das emergências”. Para ele, no entanto, vale ressaltar, a onda de protestos e manifestações iniciada no ano passado – as chamadas Jornadas de Junho – tornou-se um divisor de águas na história do Brasil recente. A partir daquele junho que não terminou, a crise de representações já arraigada há certo tempo tomou corpo nas ruas e avenidas, enquanto a colossal dicotomia povo-governo aumentou significativamente, culminando no que Arantes conceitua “horizonte sem perspectiva” e um “presente de exceção e autoritarismo permanentes”.


Cinco décadas depois do golpe, evidenciam-se com gritante clareza, em todas as instâncias da democracia brasileira, as permanências de uma estrutura judiciário-policial gestada antes do Regime Militar e aprimorada após 1964. Para Paulo Sérgio Pinheiro em seu ensaio Governo Democrático, Violência e Estado (ou não) de Direito, “existe uma evidente herança de aparelhos de Estado deixados pelo regime autoritário, promovendo a militarização da Segurança Pública e a unificação das forças policiais. Também criou uma quase impunidade para a polícia militar por meio de tribunais militares para crimes comuns em cada estado, que continua a existir, com algumas limitações, até hoje”. Finalmente, não somos imbecis a ponto de não atentarmos que a maioria de detentos despossuem poder ou privilégio, exatamente os que deveriam ser protegidos pelo Estado de Direito. 

Para melhor compreendermos, o impasse é também global. Inúmeros pesquisadores à esquerda como o geógrafo David Harvey e o filósofo Slavoj Žižek, por exemplo, trabalham com e contra este impasse internacional – grosso modo, a violência no sistema e mentalidade capitalista. É notório que em todos os ensaios do Novo Tempo do Mundo, Paulo Arantes tenha deixado subentendido seu pessimismo e temor por uma crise ainda maior: a do pensamento utópico. Então questiono: viveríamos o fim das utopias? 

Influenciado pelas teorias do tempo histórico pensadas pelo alemão Reinhart Koselleck, Arantes desnuda um Brasil sem horizontes de expectativa, sem futuros possíveis, onde um projeto de poder eterno parece a única crível alternativa. Um projeto onde todos os partidos políticos de expressão nacional falam, no fundo, a mesma língua e compactuam os mesmos princípios e interesses. Onde o Estado Democrático de Direito passe a se militarizar cada vez mais e a Segurança Pública, de forma truculenta, dê de ombros para o mesmo público que jurou assegurar. Um projeto prostrado ao capital estrangeiro globalizado e aos grandes monopólios, empresas e barões nacionais. Tragicômico é que o mesmo governo que incitou as massas e oprimidos (e com elas colaborou) no passado, hoje semeie a despolitização e trilhe de mãos dadas – sob os céus da governabilidade – com a histórica resistência conservadora. Enfim, Arantes, longe de conformismos e vãs conciliações, desenha um presente de exceção e autoritarismo permanentes, caminhando rumo à nova práxis da revolução. 

É intrigante na tese do filósofo que o processo iniciado pelas Jornadas tenha revelado – e corroído – a ponta solta deste mesmo projeto. A partir da onda de protestos em junho de 2013, categorias diversas e em períodos distintos deflagraram greve; insurgências contra todo um sistema de exploração rebentaram nas ruas, ora acuadas, ora impetuosas, frente às ações violentas de corporações policias; e não menos importante, nas comunidades e favelas metropolitanas, brasileiros à margem, negros, pobres e trabalhadores, mostraram sua fúria contra as forças seculares que os repudiam, os enxotam e os silenciam. Afinal, neste presente em transe, para ser visto e escutado foi necessário recorrer à mesma linguagem que compreendem os donos do poder.

Enquanto, graças ao mundo virtual, surgem mídias alternativas, uma imprensa independente e alguns poucos intelectuais capazes de ordenar, teoricamente, este caos, antigos pensadores à esquerda reiteram o projeto de poder de um presente permanente. Hoje, reflito, seriam eles nas palavras de Karl Marx, ideólogos deste Estado? 

Sobre as Jornadas de Junho vale lembrar as palavras de Roberto Schwarz na obra Cidades Rebeldes: “em duas semanas o Brasil que diziam que havia dado certo – que derrubou a inflação, incluiu os excluídos, está acabando com a pobreza extrema e é um exemplo internacional – foi substituído por outro país, em que o transporte popular, a educação e a saúde públicas são um desastre e cuja classe política é uma vergonha”.




Traçados os rumos da revolta, jamais controlados ou intimidados pelos donos do poder, as manifestações, greves e protestos Brasil adentro devem permanecer resolutas. Se as utopias foram soterradas pelos grandes partidos e sindicatos pactuados com uma elite secular, assim como a esquerda no poder apagou sua história e trajetória, vivemos hoje um novo tempo do mundo. Um tempo que as velhas gerações não compreendem e que talvez, nem mesmo nós compreendamos. 

Para o filósofo mexicano Adolfo Sanchéz Vázquez, “frente a ideologia do fim da utopia, esta última como imagem de um futuro desejável, possível e realizável, cumpre a função positiva de elevar a consciência de que a história não está escrita de uma vez para sempre e de que o homem , na medida em que a compreende e atue, em condições determinadas e de acordo com as metas que trace para si, possa tentar mudá-las em direção a uma vida futura mais nobre, digna e justa”. 

Em meio a chamas e fumaça, talvez essa terra em transe finde com o raiar deste novo tempo do mundo. É o que almejamos, ou pelo menos alguns de nós.

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