segunda-feira, 16 de junho de 2014

Entre o Estado e a Descrença

Copa do Mundo, greve da PM de Pernambuco, a crise das instituições no Brasil contemporâneo e uma imagem

por MURILO CLETO



Um horripilante cenário pós-guerra tomou conta das ruas da cidade de Abreu e Lima, na região metropolitana do Recife. Seguia o 15 de maio de 2014, segundo dia da greve dos policiais militares de Pernambuco. Na noite anterior, uma quarta-feira, lojas e agências bancárias foram saqueadas. Na comunidade do Xié, moradores colocaram fogo nos entulhos para bloquear uma das principais avenidas que ligam Recife a Olinda e assaltar os motoristas que por ali passavam. Diante dos acontecimentos, as prefeituras do estado decretaram ponto facultativo e as autoridades pediram à população que evitasse pegar a estrada, abrisse o comércio ou mesmo saísse de casa. 

As cenas em Pernambuco são chocantes, não exatamente pela violência - que já se naturalizou no nosso cotidiano -, mas pelo teor surpreendente das imagens que mostram pessoas comuns invadindo as lojas como numa marcha eufórica e contagiante enquanto tropeçam umas diante das outras e dos eletrodomésticos pelo caminho. Não são bandidos encapuzados, organizados, que planejaram amarrar as mãos do gerente e pedir a senha do cofre enquanto lhe cobrem de coronhadas. Mais uma vez: são pessoas comuns, de cara lavada, que invadiram estabelecimentos comerciais locais para roubar como se estivessem, de fato, ganhando aqueles aparelhos num sorteio promocional.

4 dias depois, muitos dos saqueadores se arrependeram do feito e lotaram a delegacia do município com os produtos eletrônicos levados. Mais do que inusitada, a atitude resume bem o que foram esses dias no estado: um verdadeiro delírio coletivo passageiro.

Mas esse período tem muito mais a dizer sobre o país, que mais uma vez põe em cheque a crença no domínio da razão como senhora do homem, agora um século depois de Freud e da experiência da Grande Guerra. Os dias de greve da PM em Pernambuco e os saques que se seguiram a eles talvez sejam um sintoma de uma sociedade tão violenta quanto a violência que publicamente condena.

Quando as ruas das principais capitais do país foram tomadas, em junho do ano passado, pela onda de protestos que atingiu em cheio prefeitos, governadores e a presidente da república, algo além de suas personalidades também foi implodido com a invasão dos palácios do Planalto, dos Bandeirantes e tantos outros país afora: as instituições. Quaisquer instituições.

No auge dos protestos, aqui mesmo no Desafinado, escrevi sobre as contradições que a homogeneização das manifestações e o clima patriótico traziam às liberdades democráticas. Além de paços municipais e símbolos máximos do poder, também foram alvo de violência representantes de movimentos negros, feministas, esquerdistas e por aí vai. Em São Paulo, teatros foram apedrejados e homossexuais espancados enquanto o gigante levantava muito mau humorado.

De lá pra cá, os protestos esfriaram. E é bem verdade que isso se deve também ao fato de que o discurso anti-Copa tem perdido cada vez mais consistência com uma série de dados que contradizem as expectativas dos mais exaltados contra o evento: 

Ao todo, os 12 estádios custaram R$ 8 bilhões. Menos da metade do dinheiro (R$ 3,9 bi) veio de cofres públicos, através do BNDES. E muito embora seja verdade que as condições para os empréstimos tenham sido pra lá de especiais neste caso, é verdade também que estes valores vão voltar ao tesouro nacional. Nas cidades-sedes, o governo federal investiu R$ 17,6 bilhões em aeroportos, no transporte público e em telecomunicações. E, ao contrário do que se manifesta, os benefícios destas ações não se encerram em apenas um mês, quando soar o apito final em 13 de julho.



De acordo com a Fundação de Estudos e Pesquisas Econômicas da USP, só a Copa das Confederações, no ano passado, gerou 303 mil empregos. Segundo ela, a Copa do Mundo vai acrescentar R$ 30 bilhões ao Produto Interno Bruto brasileiro em 2014. São cerca de 50 mil novos empregos para atender 600 mil turistas estrangeiros e 3 milhões de brasileiros que, pela primeira vez, têm condições de frequentar um aeroporto sem necessariamente pertencer às classes A e B.

Desde 2010, quando as obras para a Copa do Mundo começaram pra valer, diante destes R$ 25,6 bilhões investidos nela, o governo federal pôs R$ 825,3 bilhões em Educação e Saúde. Nos últimos 10 anos, o Brasil reduziu a mortalidade infantil em 40%. 

Para se ter uma ideia do que isso realmente significa, em 2002, no último ano de gestão FHC, os gastos reais do governo federal na área da Saúde foram de exatos R$ 24,735 bilhões, menos do que o investimento atual para o evento. Na Educação, foram R$ 18,01 bilhões. Para fazer justiça, atualizados estes valores girariam em torno de R$ 47,6 bilhões na Saúde e R$ 34,6 na Educação. Somente no ano passado, durante o efervescer dos protestos contra a falta de investimentos na Educação do país, o governo federal injetou R$ 101,9 bilhões, quase 3 vezes mais do que o partido que hoje se vangloria das efusivas vaias à presidente, agremiação que também tentou que o Brasil sediasse a Copa do Mundo a todo custo e que hoje colhe os louros duma caótica crise da crença nas instituições - inclusive naquelas que nós mesmos acabamos de construir.



Nesta quinta-feira, no jogo de abertura da Copa do Mundo no Brasil, diversos protestos pipocaram em cidades-sede de todo o país contra os gastos públicos no evento em detrimento dos serviços públicos prioritários. Em BH, black blocs depredaram grandes símbolos do capitalismo como... o Cine Belas Artes, um museu e uma sede do Detran. Já tem algum tempo, em São Paulo, integrantes do mesmo movimento destruíram um ponto de ônibus. E a lista de agressões infames ao patrimônio público (ou privado de interesse social) é extensa demais pra ser apresentada aqui.

Hoje, a principal pauta sólida do movimento anti-Copa trata-se dos excessos da violência policial durante as manifestações. E, neste quesito, somos campeões mundiais faz tempo. Já falei aqui sobre o quanto matam as PMs do RJ e de SP. Os números são assustadores. Mas desta vez as corporações têm escorregado e praticado parte da habitual truculência nas ruas do centro.

A violência policial que hoje enfurece - e com razão - os manifestantes é a que se tornou habitual nos becos de todo país, em cidades-sede ou não de Copa do Mundo, e que é retroalimentada pela mesma descrença nas instituições que contamina uma parte significativa do país e que quase levou o Palácio do Planalto abaixo. O policial que espanca o "bandido" é o mesmo que se manifesta nas redes sociais em favor da Lei de Talião e que não faz a menor questão de esconder o comportamento agressivo em público, em grande parte porque não acredita em mais nada a não ser o seu próprio poder de vingança.

E é neste sentido que as vaias à presidente e o coro "Ei, Dilma, vai tomar no cu!" em pleno Itaquerão lotado se encontram com o episódio dos saques em Pernambuco, com o ponto de ônibus destruído, o Cine Belas Artes apedrejado e a jornalista espancada até perder a consciência nos quartéis da Polícia Militar de Minas Gerais em Belo Horizonte. 

Como a grande reflexão de Lino Bocchini sugere, esse pode ser o momento de um passo definitivo adiante na reforma política do país diante do violento coro destinado a Dilma na última quinta-feira. Durante todo o mandato, ao contrário do que se previa, o governo Lula não ameaçou as principais regalias das elites no país. Talvez com razão. Ainda era cedo pra isso. E ainda assim, vieram justamente de lá, nos setores VIP das arquibancadas em Itaquera, com ingressos a R$ 1.000,00, as ofensas contra a representante máxima das instituições no país - gostem dela ou não. Em uníssono, mandaram às favas o Estado justamente quem nunca precisou dele.

Uma imagem ilustra com precisão cirúrgica todo esse cenário de contradições. Na favela do Moinho, na região central de São Paulo, o Comitê Popular da Copa decidiu montar um evento que "questiona o futebol elitista" e levou para lá, além dos ativistas, camisetas e bandeiras da Croácia para torcer pela seleção do leste europeu. Faziam parte dele arquitetos e jornalistas. A cada jogada dos adversários brasileiros, os ativistas iam à loucura: comemoraram como nunca o gol contra de Marcelo e xingaram bastante o juiz japonês que marcou pênalti mais do que duvidoso em Fred. "Juiz ladrão! Copa comprada!", gritaram. O jornalista Danilo Mekari, de 25 anos, disse que "uma derrota do Brasil seria um alerta contra a especulação dos megaeventos". Apesar do discurso pronto e todos os aparatos pró-Croácia, a ideia não funcionou. Na parte de baixo da favela, o hot dog da Marcia vendia que nem água as pingas Velho Barreiro e Pirassununga. O Moinho estava em festa e vibrava a cada lance de Neymar e companhia.



Um ano depois da eclosão dos protestos, talvez - e essa é somente uma hipótese - seja possível dizer que tudo isso tenha sido fruto dum delírio coletivo de uma multidão que não acredita mais em nada; nem nas instituições, nem em si mesma.

Sejam todos bem-vindos ao novo Desafinado!

Abraços, 
Murilo

Um comentário: