por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR
No último dia 21 de maio, praticamente todos os noticiários do Brasil apresentaram o deputado pastor Eurico (PSB-PE) ofendendo Xuxa Meneghel, atriz e apresentadora, durante a reunião da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) que discutia o projeto de lei conhecido como "Lei da Palmada". O deputado afirmou que a presença da apresentadora era "um desrespeito às famílias do Brasil", pois no filme "Amor estranho amor", de 1982, a artista teria protagonizado uma violência contra a criança ao gravar uma cena de sexo com um garoto de 12 anos. A atriz e apresentadora, defensora do Projeto de Lei, respondeu fazendo um coração com a mão e afirmando que "nem Jesus Cristo agradou a todo mundo". Este episódio reacendeu o debate sobre a educação familiar entre setores conservadores e progressistas.
O PL, conhecido como “Lei da Palmada”, foi originalmente apresentado à Câmara dos Deputados em 2003, pela então deputada Maria do Rosário (PT-RS). Em julho de 2010, um novo PL foi enviado e levou a composição de uma Comissão Especial para sua apreciação. Nomeada para ser relatora, a deputada Teresa Surita (PMDB-RR) apresentou texto substitutivo ao projeto inicial. Aprovado no mesmo dia 21 de maio, sobre protestos da bancada evangélica e de setores conservadores da sociedade brasileira, o PL 7672/2010 parte agora para sanção da presidente Dilma Rousseff.
Na prática o PL batizado de Lei Menino Bernardo, em homenagem a Bernardo Uglione Boldrini, em tese, assassinado pelo pai e pela madrasta na cidade de Frederico Westphalen no Rio Grande do Sul, altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 regulamentando que a criança e o adolescente devem ser educados “sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto”. Para isso, define castigo corporal como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”. Mais do que isso, o PL assume uma premissa fundamental a sociedade contemporânea: a criança não é propriedade do adulto, mas sim um ser dotado de direitos e deveres.
Segundo Phillipe Àries, historiador e medievalista francês, na antiguidade mulheres e crianças eram considerados seres inferiores não recebendo tratamento diferenciado. Durante a Idade Média, no século XII, a arte medieval ainda desconhecia o ser criança, sendo estes seres vistos como propriedade dos adultos. Desta forma, os cuidados especiais estavam restritos aos primeiros anos de vida, principalmente para as crianças abastadas. Após os 03 ou 04 anos "as crianças já participavam das mesmas atividades dos adultos, inclusive orgias, enforcamentos públicos, trabalhos forçados nos campos ou em locais insalubres, além de serem alvos de todos os tipos de atrocidades praticadas pelos adultos, não parecendo existir nenhuma diferenciação maior entre elas e os mais velhos", conforme Ana Maria Frota. Em poucas palavras, não existia distinção entre a situação de adulto e criança.
Além de participarem de todas as atividades dos adultos, a prática da violência ou castigos contra as crianças era recorrente nas civilizações antigas. No século XIII a.C, os Hebreus instruíam os pais a como castigar filhos rebeldes. Quando o pai não conseguia "resolver o problema" um conselho era convocado para punir a criança, que muitas vezes era apedrejada até a morte. O infanticídio, por exemplo, era prática recorrente na sociedade espartana. Xenofonte e Plutarco indicam que os recém-nascidos passavam por uma inspeção do conselho dos anciãos, os reprovados eram arremessados no Monte Taigeto. No Brasil, os castigos físicos foram introduzidos pelos jesuítas, sob a premissa do padre Luis da Grã, em 1553, de que “sem castigo não se fará vida”.
O sentimento da infância data da modernidade. Em outras palavras, a compreensão de que a criança é um ser especial por sua condição de diferença em relação aos adultos, data do século XIX. Este sentimento começou a ser construído no final do século XVI e durante o século XVII. Permeada pela mentalidade da "civilidade", a sociedade moderna construiu o estereótipo da criança "educada" e de "boas maneiras". Este estereótipo, relacionado a ideia de posse, acarretou em políticas públicas que levaram a criação das instituições educadoras/disciplinadoras como: escolas, orfanatos e reformatórios.
Além destas instituições foi constituído historicamente um corpus legal que prevê punições às crianças e jovens que não se enquadrem nos estereótipos impostos pelas sociedades. No Brasil, tal fenômeno é perceptível desde o Código Criminal do Império do Brasil de 1830, quando o artigo 13 prevê que "se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos". O código penal de 1890 prescrevia que os menores de 09 anos não poderiam ser tipificados como criminosos, assim como os entre 09 e 14 anos que "obrarem sem discernimento". A constituição de 1988 avança na defesa dos Direitos Humanos ao afirmar no artigo 5º inciso III que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Em relação aos direitos sociais, a Constituição é mais específica ao apresentar no artigo 6º que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Assim, especifica-se a condição da infância e a necessidade de proteção a esta.
No que diz respeito à legislação e aos direitos das crianças, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, representa um marco histórico na tentativa de formalização da proteção integral da criança e do adolescente. Este texto regulamenta as diretrizes indicadas na Constituição de 1988 e, a partir de uma série de normativas internacionais se materializa em uma legislação que preceitua direitos fundamentais, deveres e também punições as crianças e adolescentes. A criança, até 12 anos incompletos, é inimputável, ou seja, recai sobre os pais a responsabilidade sobre quaisquer atos infracionais. Ao adolescente, a partir de 12 anos completos, são indicadas medidas socioeducativas que vão desde a reclusão em casas de ressocialização até serviços comunitários.
A rede de proteção a criança e ao adolescente indicada pela Constituição de 1988 e aprofundada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 teve como efeito a redução do número de óbitos, conforme o Mapa da Violência 2012: crianças e adolescentes no Brasil (Tabela 2.1. Evolução dos óbitos de crianças e adolescentes. p. 12-13).
Porém, ainda são maiores os números de óbitos devido às causas externas ao organismo humano, ou seja, ocasionadas pela violência contra as crianças e adolescentes. De encontro a estes dados e ao diagnóstico de especialistas, de que a violência causa “danos irreversíveis” a criança e ao adolescente, a “Lei da Palmada” ou Lei Menino Bernardo vem preencher uma lacuna no ECA sobre o tratamento dispensado pelos pais à criança e ao adolescente. O objetivo é evitar novas Nardonis e novos Bernardos.
Apesar dos números da violência infantil e do diagnóstico dos especialistas, a bancada evangélica encampou a luta contra a aprovação do PL. Pastor Eurico não foi o único a se posicionar de maneira contrária ao PL, Marcos Feliciano, deputado pelo Partido Social Cristão (PSC) afirmou que “o projeto é desnecessário, inócuo e sem fundamento”. Silas Malafaia, o “pastor ostentação”, afirmou que a lei é “uma palhaçada”. Defendendo o direito sagrado da família à violência infantil, instituído nas civilizações da antiguidade e reafirmado na Idade Média, a bancada evangélica expressou a defesa da manutenção da ideia de similitude entre adultos e jovens, ideia cara aos defensores de medidas repressivas como a redução da maioridade penal.
Não obstante, a bancada evangélica não estava só nesta luta contra a proteção as crianças e adolescentes. “Gurus” da imprensa e do pensamento reacionário brasileiro saíram em defesa da não aprovação do PL com o argumento no mínimo esdrúxulo de que a lei é fascista. No dia 04 de junho, Bóris Casoy, âncora do jornal do SBT foi o primeiro a defender a ideia de fascismo ou intromissão do Estado nos assuntos familiares dizendo que “no inferno, Mussolini e Hitler devem estar aplaudindo essa tal lei fascista da palmada". Juntou-se a ele o colunista da Folha de São Paulo Luiz Felipe Pondé, o intelectual que “endireitou” e de lá pra cá vem produzindo sobre temas bastante relevantes, como a dificuldade de jovens liberais em “pegar mulher”. No dia 06 de junho, Pondé reafirmou no jornal da Cultura que a lei é “ridícula” e se circunscreve em algo denominado por ele de “fascismo do bem”.
Mais uma vez assistimos ao pensamento reacionário composto por elementos religiosos e liberais, representado por políticos e membros da imprensa se posicionando contra a instituição de direitos humanos, como o direito a proteção de crianças e adolescentes. Isso porque, o pensamento religioso sanciona a punição, foi assim com hereges, indígenas e escravos; e o pensamento liberal sanciona a propriedade, seja ela de bens materiais ou pessoas. Ou seja, une-se a ideia de que o filho é propriedade do pai, a ideia de que a punição é um elemento da formação moral dos filhos, e se tem a contrariedade as medidas que permitam as crianças um maior grau de autonomia.
Contra eles, apenas a história de violência e atrocidades vividas pelas crianças e adolescentes, os dados estatísticos e o diagnóstico de psicólogos, psiquiatras e pediatras que convivem diariamente com a violência infantil.
Abraços,
Osvaldo.
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