quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Império, volver!

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR


Na semana passada, o jornal "Gazeta do Povo" de Curitiba informou que a Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa - ACIPG - publicou o documento Proposta da Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa para os Candidatos Locais à Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa do Paraná, defendendo que os beneficiários de programas de transferência de renda governamentais, dentre eles os beneficiários do Programa Bolsa-Família, percam seu direito ao voto temporariamente. 


Tal documento foi apresentado aos candidatos dos Campos Gerais, região de Ponta Grossa, e, segundo o presidente Nilton Fiori a proposta foi bem recebida pelos candidatos da região. Fiori ainda afirmou que, mesmo sabendo da inconstitucionalidade da proposta, a Associação tem a intenção de levantar o debate. Esta medida, teria como objetivo garantir a "lisura" do processo eleitoral. Ainda, segundo o jornal "O Estado de São Paulo", a proposta "já tinha aparecido em redes sociais e até em cartazes nas manifestações de rua de 2013". Além disso, atingiria diretamente a candidata à reeleição Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores - PT -, que tem 54% da preferência entre os beneficiários do Bolsa-Família, e 37% no conjunto de eleitores do país. 

Parte da "onda" conservadora que vem assolando o Brasil, a proposta expressa, de um lado, uma reação à redução da pobreza extrema e da desigualdade social nos últimos 12 anos, e de outro o pensamento "aristocrático" das elites brasileiras de defesa dos privilégios "a qualquer custo". Apesar disso, a proposta é inconstitucional, pois a Constituição de 1988 determina no capítulo IV - Dos direitos políticos -, que o voto é universal e independe da condição social, porém nem sempre foi assim. 



No Brasil o voto surgiu em 1532, na Vila de São Vicente, convocado pelo donatário Martim Afonso de Souza para escolher o conselho administrativo da Vila. Contudo, naquele contexto só tinham direito ao voto os membros das "famílias poderosas", definidos por aspectos financeiros e pela participação na burocracia militar e civil. Esses eleitores eram intitulados "homens bons", sendo que, segundo Olivieri (2007), ''a expressão homens bons (como eram classificados), posteriormente passou a designar os vereadores eleitos das casas de Câmara dos municípios, até cair em desuso". 

O sufrágio ou direito ao voto deixou de ser um privilégio com a inserção, na Constituição Francesa de 1793, do sufrágio universal. No entanto, somente em 1821 o Brasil teve uma "eleição nos moldes modernos" com a escolha dos representantes brasileiros para as cortes gerais, extraordinárias e constituintes da nação portuguesa, que ocorreu após a Revolução do Porto e o retorno do rei Dom João VI a Portugal em 1820. É claro que o direito ao voto foi restrito aos cidadãos "influentes" da época. 

Com a Independência em 1822, fazia-se necessária uma nova configuração jurídica e política. Com isso Pedro de Alcântara convocou a Assembleia Constituinte em 1823, com o objetivo de redigir a primeira constituição do Império do "Brazil". Outorgada pelo Imperador em 25 de março de 1824, esta constituição determinava no capítulo 6 – “Das eleições” - que não podiam votar "os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego" e "os Libertos”. Segundo Bonavides (2010), neste caso adotava-se o sufrágio censitário (a riqueza), o que significa dizer que os pobres não tinham direito ao voto. Mesmo com a Lei Saraiva de 1881, que introduziu o voto direto, manteve-se o caráter censitário, ou seja, até o fim do Império apenas 1,5% da população brasileira tinha direito ao voto. 

A conquista do sufrágio universal, pilar básico da democracia, foi resultado de um processo árduo de lutas sociais. Com a Proclamação da República, em 1889, foi promulgada uma nova constituição em 1891. Influenciada pelo positivismo, a constituição previa que "todos são iguais perante a lei". Entretanto, em relação ao direito ao voto, essa máxima não se confirmou. Isso porque no artigo 70 determinava-se que eram eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, excetuando-se, dentre outros, os analfabetos e mendigos; ou seja, manteve-se o sufrágio censitário. Na primeira eleição direta para a Presidência da República, Prudente de Morais chegou ao poder com 270 mil votos, que representavam 2% da população brasileira da época. 

O voto feminino, por exemplo, foi resultado da solicitação de uma eleitora de Mossoró, no Rio Grande do Norte, no ano de 1927. Em 1932, com a aprovação do Código Eleitoral, o direito ao voto foi estendido às mulheres em todo o território nacional. Durante o governo Vargas foi promulgada a Constituição de 1934, que restringiu o voto feminino apenas para as mulheres que exercessem função pública remunerada. Ademais, a constituição manteve o veto aos mendigos e analfabetos. Em 1937, ano em que foi outorgada a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, começou a ditadura do Estado Novo, que durou até 1945. Neste período, os brasileiros foram privados do voto e Vargas governou soberano. 



Em 1946, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, foi promulgada a Constituição de 1946, que promoveu o respiro democrático por 18 anos, até o golpe civil-militar de 1964. Esta constituição permitiu o sufrágio universal feminino, e manteve o veto aos analfabetos. No ano de 1964 começou a Ditadura Civil-Militar, período de 25 anos em que os brasileiros foram novamente privados do voto, dentre outros direitos fundamentais. As ditaduras de Vargas e dos militares privaram os brasileiros de votarem por 9 vezes, sendo que em quase 125 anos de República, dos 36 presidentes, somente 18 foram eleitos por voto direto. 

Na segunda metade da década de 70, com o enfraquecimento da Ditadura Civil-Militar e a "abertura lenta, gradual e segura" promovida pelos governos Geisel e, mais efetivamente, Figueiredo, surgiu o movimento "Diretas Já!", que reivindicava o direito dos brasileiros de escolherem o seu presidente. Tal movimento levou às ruas milhares de pessoas e terminou frustrado com a não aprovação da emenda “Dante de Oliveira” e a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985. Contudo, Tancredo faleceu vítima de diverticulite e José Sarney assumiu a presidência da República. No seu governo foi promulgada, a sétima e atual constituição de 1988, que finalmente instituiu o sufrágio universal irrestrito para toda a população brasileira acima dos 16 anos. 

Ignorando toda essa história de lutas pelo sufrágio universal, e os diversos dados que demonstram a eficácia do programa Bolsa Família, como, por exemplo, o relatório sobre Erradicação da Pobreza do Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, para o Conselho Econômico Social - ECOSOC - ou mesmo os dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que indicam que muitas famílias têm se "emancipado" economicamente através do programa, a associação pontagrossense sugere o retorno ao sufrágio censitário e a exclusão dos menos favorecidos do processo democrático de escolha dos seus representantes. Além de uma afronta à democracia construída a duras penas e a custo de muito sangue no Brasil esta proposta sugere juridicamente que voltemos ao Império. 


Frente a isso, sugiro que para atingirmos uma sociedade com a "lisura" proposta pelos comerciantes e industriais de Ponta Grossa, primeiro punamos os sonegadores, tipificados pelo Código Criminal brasileiro como criminosos, que representaram uma perda de R$ 106 bilhões para os cofres públicos apenas este ano. Tais dados colocam o Brasil em 2º lugar, atrás apenas da Rússia, no hall de sonegadores, sendo que o valor sonegado representa 25 vezes a corrupção nos países em desenvolvimento. Inclusive, uma das associadas da ACIPG, a Rede Paranaense de Comunicação - RPC -, que recebeu o mérito empresarial em 2013, é afiliada da Rede Globo, que curiosamente está sendo investigada por sonegar nada menos que R$ 180 milhões de reais. Acredito ser desnecessário citar que a sonegação, é prática comum as elites brasileiras, seja por meio das cotidianas fraudes no imposto de renda ou até mesmo dos desvios de recursos para paraísos fiscais. 

Ainda em busca da "lisura" sonhada, poderíamos sugerir a perda do direito ao voto de todos os comerciantes, industriais e grandes grupos que sobrevivem dos suntuosos empréstimos do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. Assim, proprietários das concessionárias de obras rodoviárias, de varejistas como as Lojas Americanas e a B2W e, até pouco tempo atrás o guru do empresariado capitalista brasileiro, Eike Batista, teriam seu direito temporariamente suspenso. Desta forma, igualaríamos o critério de exclusão por "benefício" financeiro público. Ou então, deixemos as elites escolherem um novo monarca, que infelizmente não vai ser português, visto que a antiga metrópole é um país republicano desde 1906, e voltemos ao Império. 

Abraços, 
Osvaldo.

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