quinta-feira, 13 de março de 2014

A Invenção da Mulher

Como o discurso ocidental forjou uma identidade para o "segundo sexo" e de que maneira ele responde ao chorume sobre a ausência de um dia do homem

por MURILO CLETO



Entre rosas e pedradas, mais um 8 de março se passou no último sábado e, com ele, também uma série de incompreensões sobre o significado da data. Dentre os apontamentos, a indignação pela inexistência do dia do homem ou, pior, a comercialização ou fofurização do dia da mulher, reduzido a homenagens românticas e declarações paternalistas.

Apesar de ser mentirosa a versão do episódio de uma fábrica queimada com mulheres dentro depois de uma greve trabalhista, o Dia Internacional da Mulher é, acima de tudo, um dia de luta. E este artigo conta por quê.

Entre os idos de 1970 e 1980, o “filósofo pirotécnico” Michel Foucault revolucionou os limites do corpo escancarando sua provisoriedade e finitude. Assim como o medo, o desejo, a morte, a vida, o corpo humano é também uma construção social, tecida por uma série de relações de poder que incessantemente refazem o seu significado.

Desta forma, é impossível compreender a mulher sem uma reflexão sobre a sua trajetória na relação com o homem ao longo dos séculos na tradição ocidental. De maneira geral, as representações masculinas a respeito da mulher transitam da veneração ao ódio, passando pelo acionamento de diversas referências ideais e espelho de comportamento. 

Até o século XX, foi consensual a ideia do desapego da mulher à lógica. De acordo com Freud, “na sexualidade feminina, tudo é obscuro e bastante difícil de estudar de maneira analítica”. Na inveja do pênis, aliás, estava o segredo do estranhamento entre os sexos. Para Simone de Beauvoir, “o sexo feminino é misterioso para a própria mulher, oculto, atormentado [...]. É em grande parte porque a mulher não se reconhece nele que não reconhece como seus os seus desejos”. Karen Horney descreve-a como “santuário do estranho”.

Não é por acaso, portanto, que religiões fundadoras da experiência civilizatória no Ocidente tenham mulheres com o dom da profecia como representação das suas sensibilidades. Na Grécia Antiga, os oráculos eram mulheres. É também feminina boa parte das divindades associadas a fins de ciclos, representados através da destruição do universo, por exemplo. 

Por outro lado, atribuiu-se ao homem o papel racional das relações humanas. Neste sentido, cabe a justaposição da natureza como elemento materno e da história como elemento paterno. Tanto que até hoje vigora um imaginário social que atribui às mães certo papel regular, portanto natural, na história: “mãe é tudo igual, só muda de endereço”. Já os pais são aqueles considerados condicionados à cultura, propensos à evolução e ao progresso.

Na tradição hebraica, o surgimento da mulher está atrelado ao preenchimento do vazio causado pela solidão de Adão, único habitante humano do Jardim do Éden. O “segundo sexo” ocupa lugar nos 10 mandamentos, mas ao lado de outros objetos de propriedade reconhecível: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (10º Mandamento: Êxodo, cap. 20, vers. 17)

Com raras exceções, como em alguns aspectos no Egito, à mulher foi negado o direito à propriedade, à personalidade jurídica e à cidadania. Em Atenas, o gineceu era seu espaço obrigatório de habitação, onde deveria executar os ofícios considerados próprios do gênero.

Na Idade Média, o imaginário teocêntrico concentrou na mulher boa parte dos seus temores em relação ao pecado e suas implicações. Descende de Santo Agostinho, ainda no século IV, a ideia de “pecado original”, reproduzida exaustivamente pela literatura religiosa medieval. Durante todo o período, a compreensão da mulher esteve restrita quase que exclusivamente ao papel exercido por Eva no Éden, o de fundadora do pecado no mundo.

É particularmente simbólico o fato de que Eva, de acordo com a tradição, tenha se sentido tentada a comer da árvore do conhecimento. Primeiro porque desafia diretamente uma ordem monoteísta que atribui somente a Deus o conhecimento das coisas. Segundo porque reforça a dificuldade natural de submissão da mulher à razão.

Para a mulher, disse o historiador Tertuliano: “Tu deverias usar sempre o luto [...] a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano. Mulher, tu és a porta do diabo. Foste tu que tocaste a árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina”.

Da abertura da caixa de pandora grega ao fruto proibido comido no paraíso, uma convergência: a culpa é sempre da mulher.

Verdade seja dita, o Cristianismo incipiente deu sinais de mudança na histórica divisão hierárquica entre homem e mulher, desfeita pela redenção do filho de Deus. Na Epístola aos Gálatas, o apóstolo Paulo escreve que “não há homem nem mulher: pois todos vós não sois senão um em Cristo Jesus”.

O próprio Paulo, no entanto, refaz o raciocínio diversas vezes, revogando a própria máxima: “Não foi o homem, evidentemente, que foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem” (I Coríntios XI,9); “Que as mulheres sejam submissas a seu marido como ao Senhor; com efeito, o marido é chefe de sua mulher, como Cristo é chefe da Igreja, ele, o Salvador do Corpo. Ora, a Igreja se submete a Cristo; as mulheres devem portanto, e da mesma maneira, submeter-se, em tudo, aos seus maridos” (Efésios v, 22-24); “Que as mulheres se calem nas assembleias, pois não lhes é permitido tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a própria lei o diz” (I Coríntios XIV, 34-35); “Eu não permito à mulher ensinar e governar o homem” (I Timóteo II, 11-14).

No transcorrer da Idade Média, em especial a partir do século X, o processo de diabolização da mulher tornou-se ainda mais radical, com o reforço dos clérigos em exercício. Mais do que nunca, sua existência esteve vinculada ao perigo dos pecados da carne e suas tentações.

Para Odon, abade de Cluny do século X, “a beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” Em 1185, André Le Chapelain escreveu que “a mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranquilidade”.

Tornado santo pela Igreja, Bernardino de Siena tem um manual de atribuição de funções à mulher na casa: “É preciso varrer a casa? – Sim. – Sim. Faze-a varrê-la. É preciso lavar de novo as tigelas? Faze-a lavá-las. É preciso peneirar? Faze-a peneirar. É preciso lavar a roupa? Faze-a lavá-la em casa. – Mas há a criada! – Que haja a criada. Deixa fazer a ela (a esposa), não por necessidade de que seja ela que o faça, mas para dar-lhe exercício. Faze-a vigiar as crianças, lavar os cueiros e tudo. Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra”.

Já em 1512, Thomas Murner descreveu a mulher como “diabo doméstico”. Segundo ele, o homem não pode hesitar em aplicar-lhe surras, afinal – usa a retórica – "não se diz que ela tem 7 vidas?" Também no século XVI, Menót refletiu: “Para se fazer ver pelo mundo a mulher que não se contenta com trajes que convém a seu estado terá toda espécie de vãos ornamentos: grandes mangas, a cabeça ataviada, o peito descoberto até o ventre com um fichu leve, através do qual se pode ver o que não deveria ser visto por ninguém. É em tal libertinagem de trajes que ela passa, o livro de horas sob o braço, diante de uma casa onde há uma dezena de homens que a olham com um olho de cobiça. Pois bem, não há um só desses homens que por causa dela não caia no pecado mortal” 

Para quem entende que a razão do século XVIII trouxe certa liberdade, igualdade e fraternidade também entre gêneros, os versos de Grignon de Montfort são bem explícitos:

Mulheres belas, rostos formosos
Como vossos encantos são cruéis!
Como vossas belezas infiéis
Fazem parecer criminosos!
Pagareis por essas almas
Que fizestes pecar
Que vossas práticas infames
Fizeram afinal cambalear
Enquanto estiver na terra, 
Ídolos de vaidade, 
Eu vos declaro a guerra, 
Armado da verdade


Mais de meio milênio depois do fim da chamada “Idade das Trevas”, como a Modernidade convencionou apelidar a ignorância da Era Medieval, o século XXI ainda reserva resquícios de uma permanência aparentemente indissolúvel. Afinal, a culpa continua sendo da mulher que insinuou demais antes de ser estuprada. 

Até quando a revolta diante da violência contra a mulher está presente, costuma vir acompanhada de sentenças misóginas, como a sugestão de punir os agressores sentenciando “suas mulheres” a outras barbáries como vingança. Em 2007, o Conselho Tutelar denunciou caso de uma adolescente de 15 anos que mantinha relações sexuais para sobreviver numa cela com 20 homens, diante da falta de acomodações para mulheres em Abaetetuba. Nos comentários, o superintendente responsável pelo caso foi massacrado com as seguintes sugestões:



Note-se que algumas das sugestões vêm justamente de outras mulheres. E talvez seja este o maior trunfo do machismo na contemporaneidade, dotado de um histórico controle a seu favor: atribuir à própria vítima a condição de culpada.

Fizéssemos a inversão destes papéis, não hoje, nem pelos últimos 10 anos, mas por pelo menos 10 milênios de civilização. Aí quem sabe teríamos um digníssimo Dia Internacional do Homem.


Abraços,
Murilo

5 comentários:

  1. Vc esqueceu de citar o maior "líbelo" da misoginia que é o livro: O Martelo das Feiticeiras. Só me espanta o fato de vc ainda não ter se acostumado com as mensagens referentes a piedade cristã no final do seu post. É uma situação do Código de Hamurábi adaptada à contemporaneidade, no que deveríamos apenas tratar como Gang Bang.

    Abraços, Neto.

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    1. Realmente existem grandes referências, sobretudo da literatura moderna, a respeito da mulher. Espero que eu nunca me acostume.

      Abraço!

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  2. Penso que o maior problema para o feminismo são mulheres que, inconscientemente ou não, são machistas.

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    1. Não acho que seja o maior problema, mas sintoma da grandiosidade do machismo.

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  3. Ótimo uso das fontes, diferentemente de outros blogueiros, elas falam por elas mesmas e não são manipuladas pelo autor. Parabéns.

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