Obra de Olivier Masset-Depasse, o longa-metragem “Ilegal” foi selecionado na Quinzena dos Diretores em Cannes em 2010, ano de lançamento na Europa. O roteiro conta a história da imigrante russa Tania, que vive na Bélgica com o filho pequeno. Depois de ter o pedido de residência permanente recusado pelo governo, colocou o menino para dormir, tomou algumas doses de vodca e queimou as pontas de todos os dedos para permanecer ilegalmente no país.
Oito anos depois, Tania é abordada por policiais numa esquina pacata que divide para sempre sua trajetória. Instigado pela mãe, seu filho consegue fugir, correndo como um raio enquanto as autoridades controlam a russa. Como não revela o nome, nem a origem, nem absolutamente nada, Tania é mantida sob detenção enquanto decidem o futuro por ela entre uma série de sessões de tortura física e psicológica.
Mais atual do que nunca, “Ilegal” é um retrato de tirar o fôlego da sociedade contemporânea globalizada. Sonho projetado desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Europeia tem o seu destino em cheque desde a eclosão e os desdobramentos da grave crise econômica que assola o mundo desde 2007. A partir da falência do Lehman Brothers e da onda de desemprego causada num efeito dominó, as políticas de fronteira entre Europa e demais continentes, e entre os próprios países europeus, têm passado por importantes transformações sintomáticas.
Já em 1985, Alemanha, França e Luxemburgo lançaram o primeiro acordo de Schengen, que previa livre circulação entre os países signatários. 12 anos depois, a assinatura do tratado passou a ser condição para a adesão à União Europeia. Até junho de 2011, 25 países haviam assinado o tratado, incluindo alguns fora da zona do Europa e da própria UE.
Já em maio de 2011, diante da intensificação dos movimentos migratórios de civis refugiados pelas revoltas e guerras civis no mundo árabe, o ministro da integração dinamarquês, Soren Pind, pediu a revisão do Tratado de Schengen e o retorno do controle alfandegário entre as fronteiras nacionais. Desde a crise do mercado financeiro que se desenrola desde 2007 e agora, depois das revoltas no norte da África e no Oriente Médio, os dinamarqueses estão incomodados com a presença dos imigrantes, especialmente os árabes.
De acordo com Pind, “[...] o maior desafio é aceitar que nem todo mundo é igual a nossa sociedade. Nós somos uma tribo há mais de dois mil anos. Nós viemos dos vikings e gostamos muito do nosso jeito de viver. [...] É verdade que alguns grupos imigrantes estão mais representados nas estatísticas de crimes.”
A pressão surtiu efeito, e no mês seguinte a União Europeia aprovou em tempo recorde a revisão temporária do acordo de livre circulação. O bloco liderado por França e Itália – e apoiado por Bélgica, Holanda e, claro, Dinamarca – não poupou esforços ao convencer o continente de que os cerca de 750 mil refugiados em poucas semanas de conflito na Líbia exerceriam uma pressão econômica insustentável aos coligados.
Ao queimar as pontas dos dedos em “Ilegal”, Tania mais do que se autoflagela numa atitude de desespero. Escolhe, com isso, apagar as marcas de suas impressões digitais e, ainda, sua identidade como cidadã. Sem condições de manter emprego formal, residência ou qualquer registro em nome próprio, torna-se apenas mais um corpo indigente na multidão de rostos sem memória autorizada. Durante nada menos que 8 anos, prefere viver nesta condição do que voltar às raízes na Rússia.
Isso, talvez em grande porque o imigrante vive uma encruzilha de identidade particularmente sensível à normalidade do pertencimento territorial: não é cidadão da sua nova casa, pois tem origem noutra. Tampouco o é de sua antiga morada, pois o lapso entre a partida e a volta o transformou em alguém que não já não é desde muito. Insuficiente para o novo e demais para o velho, não obstante o imigrante tem lugar reservado justamente naquilo que denominamos “não-lugares” que, proliferados especialmente desde a década de 1980, constituem espaços efêmeros de convivência, como campos de refugiados, aeroportos e rodoviárias, onde sua identidade é tão visível quanto as impressões digitais de Tania e dos milhares de anônimos que abriram mão do próprio passado na busca por um futuro melhor no paraíso.
Saudações para o sr. que é uma das maiores reservas morais que já tive a satisfação de conhecer. Esse filme não conheço, mas envio um link com filmes de arrepiar pentelho de cadáver: http://sonatapremieres.blogspot.com.br Se possível, veja o filme com o terrível título: Expresso do Amanhã (Snowpiercer). Acho que vc gostará, rende alguma discussão.
ResponderExcluirAbraços
Neto