quarta-feira, 18 de março de 2015

Lei do feminicídio e a aposta no encarceramento

por LETÍCIA SANTOS


No dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a Presidenta Dilma Rousseff realizou um pronunciamento e, entre outras coisas, anunciou a Lei 13.104/2015, a Lei do Feminicídio.

A referida Lei, que já havia sido aprovada no dia 03 de março na Câmara dos Deputados, incluiu o homicídio praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino entre as hipóteses de homicídio qualificado. Haverá essa motivação quando a conduta envolver “violência doméstica e familiar” e “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, e também incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90).

A mudança foi muito comemorada por deputadas e senadoras e, inclusive, por muitas feministas. Mas, afinal, quais serão as efetivas mudanças trazidas com a criminalização do feminicídio?

O artigo 121 do Código Penal, em seu inciso II, caracteriza como homicídio qualificado aquele praticado por motivo fútil (torpe), com pena de reclusão de 12 a 30 anos. Nessa hipótese o homicídio em razão de gênero se encaixa perfeitamente. E todo homicídio qualificado é crime hediondo.

Os crimes hediondos, que são aqueles punidos com maior severidade, são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança. E a progressão de regime acontecerá apenas após o cumprimento de 2/5 da pena, se o apenado for primário, e de 3/5, se reincidente. Na progressão de regime o condenado que obedecer aos requisitos legais poderá passar de um regime mais rigoroso para outro menos rigoroso (do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto). O objetivo é a ressocialização, preparar o apenado para uma vida digna fora da penitenciária, no entanto não é isto que acontece na prática: a maioria das penitenciárias não oferece trabalho para os presidiários, que é um dos requisitos para progressão de pena, pelo contrário, como sabemos, em nossas penitenciárias super lotadas os direitos humanos são violados constantemente.

A grande maioria da população tem uma visão ingênua de que com o Direito Penal pode-se resolver todo o tipo de problemas, como bem comparou Michel Foucault o sistema punitivo com um médico que “para todas as doenças, tem o mesmo remédio”.

Antes de recorrer ao Direito Penal devemos ter em mente que o sistema punitivo não cumpre com uma de suas principais funções, que é a de ressocializar. Pelo contrário, apenas pune. Recrudescendo os mecanismos de sanção produz-se a falsa ideia de que o reforçamento do poder repressivo é a resposta adequada ao delito. E assim, temos um trabalho de Sísifo, personagem da mitologia grega, condenado a repetir sempre a mesma tarefa. Para os problemas da aparente impunidade e da violência são elaboradas mais leis, mais severas, como a Lei dos Crimes Hediondos, como uma resposta para a queixosa população. Esta se vê satisfeita com a sensação de segurança, mas como os criminosos recebem um tratamento desumano nas penitenciárias, voltam para o crime e, assim, temos a quarta maior população carcerária do mundo. Nossas penitenciárias são como um depósito de gente, empurramos para dentro delas os opressores e autorizamos que eles se multipliquem e se espalhem. E assim como Sísifo, condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que toda vez que alcançava o topo a pedra rolava montanha abaixo, sempre retornamos ao nosso ponto de partida, a aposta no encarceramento exacerbado, que até hoje não resolveu o problema da violência.

A criminalização não previne nada. Fosse assim não existiriam condutas penais que se adequassem aos tipos penais mais antigos. Nosso País é o segundo que mais prendeu em 15 anos, mas continua sendo recordista mundial de homicídios, como foi noticiado pelo site Carta Capital. Também é de suma importância ressaltar outro grande problema, a existência de mulheres que passam frequentemente por revistas vexatórias quando vão visitar seus parentes presos. Humilhações que aumentarão com mais essa aposta no encarceramento.

A lei dos Crimes Hediondos foi pensada e promulgada em clima de grande emocionalismo, após o sequestro dos empresários Roberto Medina e Abílio Diniz, onde os meios de comunicação de massa atuaram decisivamente, assim como a Lei do Feminicídio foi aprovada em um momento conturbado politicamente e de baixa popularidade do atual governo. Espera-se que os discursos feministas não se incorporem aos discursos de legitimação do poder punitivo extraídos do senso comum. 

Como dizia Emile Durkheim, a sanção penal está sendo chamada para “curar as feridas feitas nos sentimentos coletivos”, o que não deve ocorrer, pois uma lei deve ser pensada ou reformada estrategicamente, não alterada de maneira irracional, para atingir fins meramente políticos. 

O Direito Penal não tem força preventiva e o nosso esforço para evitar que mulheres morram não deve se concentrar aqui. Temas como a violência contra a mulher devem ser colocados em pauta, discutidos e problematizados pela sociedade. A mudança tão almejada de uma cultura machista para uma sociedade igualitária vem acontecendo em gotas, mas insistir no poder punitivo como resposta e buscar socorro em um sistema prisional fracassado não é, nem de longe, a solução. 

3 comentários:

  1. Válido Leh! Uau como sempre seus textos são moitooo instrutivos!
    Mas gostaria, como um bom (ou péssimo, em qualquer forma de interpretação da palavra rss!) crítico, deixar umas considerações a respeito.
    Vale dizer que a função do direito penal é realmente de acordo com sua explicação, pois tem com princípios a fragmentariedade e a "ultima ratio", ou seja, é o ramo do direito do qual devemos lançar mão em casos extremos de violação ao direito alheio.
    Apesar da indiscutível ineficácia na função ressocializadora dos condenados, em termos práticos, talvez devamos levar em consideração que culturalmente a "hedionização" de certos crimes pode ter efeitos inibitórios para a parcela da população que não possui o privilégio do acesso dessas informações técnicas como nós, que estudamos as normas.
    Desta maneira podemos considerar que se a elevação (se é que podemos considerar assim) do homicídio de uma esposa em crime hediondo inibir ao menos um pouco tais condutas - visto que isso é mera presunção legislativa - o direito penal estará cumprindo com sua função preventiva geral.

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  2. Muito bem pensado Paulo, outro ponto para refletir. Mas é de conhecimento geral que o Direito Penal pune de uma maneira terrível e mesmo assim a violência só aumenta e os presídios continuam cada vez mais lotados. Quando acionamos um mecanismo é importante analisarmos se este vem cumprindo com sua função. O que podemos dizer do Direito Penal neste sentido? Abraços!

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    1. De maneira engraçada a idéia da minha resposta veio desse congresso on-line de processo civil, rssss.
      Veja, um dos palestrantes desse congresso estava analisando as causas do inchaço do sistema judiciário brasileiro, e cogitou que a real causa possa ser externa ao sistema. Pois é exatamente o que eu penso, aliado aos ensinamentos do Michel, (da nossa sala mesmo, rss).
      Os investimentos em novos presídios visando sua expansão, pra melhor atender os direitos dos detentos, novos métodos e aplicação de novas políticas de leis, nunca darão conta da demanda de presos se isso não for combatido na fonte, ou seja, investimentos na redução das desigualdades sociais. Todo resto será paliativo. Necessários paliativos talvez, porém, só.
      Nossa professora do coração (rss sabe quem né?) ja disse também uma vez que não há mais interesse da doutrina do Direito Penal em matéria de crimes contra a vida. O foco do Direito Penal é voltado para os crimes do colarinho branco, que afetam grande número de pessoas aumentado a desigualdade social.
      Enquanto essa doutrina não estiver solidificada, embora, talvez ja estejamos experimentando alguma aplicação dela nesse conturbado momento político, vamos ver alguns paliativos ainda pela frente... e eles sempre irão existir, talvez como um fato transitório de adaptação, indicio de mudanças... e enfim, o que não é transitório na vida?
      Abraços!

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