quarta-feira, 1 de abril de 2015

As falácias sobre a ditadura civil-militar

Os discursos cotidianos que se naturalizaram e contradizem a historiografia e os documentos históricos

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR



Nesta quarta-feira, 1º de abril, completam-se 51 anos do golpe militar que deu início à Ditadura Civil-Militar no Brasil. O regime que durou 21 anos e institucionalizou a violência e a tortura representa um dos períodos mais nefastos da História do Brasil. Apesar disso, discursos cotidianos sem fundamento científico nenhum insistem na constituição de uma consciência histórica tradicional e por vezes saudosista a respeito deste período histórico. Abaixo desconstruímos alguns deles:


1. “Naquela época houve desenvolvimento econômico”

O "milagre econômico" que ocorreu entre os anos de 1968 e 1973 foi um momento de crescimento econômico no qual o produto interno bruto (PIB) cresceu entre 10 a 14% ao ano. Apesar disso, o "milagre" aprofundou as desigualdades sociais no Brasil. Isso porque o crescimento proporcionou a concentração de renda. No índice de Gini, que mede a desigualdade no país e vai de 0 a 1, ela saltou de 0,50 em 1960 para 0,62 em 1977 - o pior nível da história. O salário mínimo em 1974 tinha metade do poder de compra de 1960. Naquele contexto, Delfim Netto, então Ministro da Fazenda, disse que era "preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". O problema é que o bolo cresceu e não foi distribuído. Além da desigualdade, neste período a dívida externa do Brasil quadruplicou, passando de US$ 3,7 bilhões em 1968 para US$ 12,5 bilhões em 1973. Desta forma, o desenvolvimento defendido pelos saudosistas do regime veio acompanhado do aumento da desigualdade, da redução do poder de compra e do aumento da dependência externa por conta da dívida contraída no período. 

Gráfico apresenta o aumento de brasileiros vivendo na extrema pobreza. Fonte: IPEA e IBGE

2. “Naquela época não existia corrupção”

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a corrupção é um problema estrutural no Brasil e tem raízes no longínquo período colonial. Durante a Ditadura Civil-Militar não foi diferente. A frase “no tempo do militarismo é que era bom, pelo menos não tinha corrupção", é uma frase historicamente incorreta. No livro Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar, o professor Carlos Fico explica que foi criada a Comissão Geral de Investigações (CGI), que seria responsável pelo combate à corrupção. Em cinco anos (de 1968 a 1973) foram 1.153 processos. O resultado foi: 1.000 foram arquivados, 58 viraram proposta de confisco e 41 alvo de decreto presidencial. Ou seja, a comissão fracassou no seu objetivo de fiscalizar os gastos públicos e foi extinta 10 anos depois da sua criação. Além da não investigação dos casos, o que permitiu a construção da falaciosa moralidade dos governos militares, a tortura foi outro elemento de corrupção durante a Ditadura. Para funcionar ela precisava de um aparato judiciário corrupto, que permitisse a construção de perícias mentirosas, confissões renegadas e autópsias fraudadas. Obras públicas espalhadas por todo o Brasil também foram alvo da corrupção. Na obra Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos evidenciou a partir do estudo de documentos os esquemas envolvendo empreiteiras e os governos militares. Superfaturamento na construção da Ponte Rio-Niterói, confirmada pelo Tribunal de Contas da União – TCU, da Transamazônica e na Hidrelétrica de Tucuruí, são apenas alguns exemplos. Outra falácia é a da moralidade e "pobreza" dos ditadores. Segundo Thomas Skidmore, em Brasil, de Castelo a Tancredo, Costa e Silva foi acusado de obter favores para parentes pelo general Moniz Aragão. Isso nos permite afirmar que a Ditadura Civil-Militar foi um período de aprofundamento da corrupção que é estrutural no Brasil.

3. “Naquela época existia ordem”

O aprofundamento da desigualdade durante a Ditadura Civil-Militar permitiu o crescimento das periferias nas grandes cidades. Apesar dos números indicarem uma menor criminalidade no período, fato quase óbvio em se tratando de um contexto demográfico diferente e do regime ditatorial, a manutenção das camadas menos favorecidas nas periferias dava um ar de segurança às classes médias que apoiaram o golpe. Lá, nas periferias, os “esquadrões da morte” promoviam um verdadeiro extermínio, como pode ser verificado em pesquisas sociais como a produzida por Paulo Lins no livro Cidade de Deus. Se hoje a nossa Polícia Militar mata cinco pessoas por dia e é uma das mais violentas do mundo, mesmo com todos os mecanismos de correção e punição, imagine naquele contexto em que ela atuava livremente endossada pelo Estado. Del Vecchio, pesquisador da Universidade Estadual do Estado de São Paulo – UNESP, afirma que a Doutrina de Segurança Nacional, criada naquele momento como forma de repreender os crimes, “apenas criava uma sensação de segurança para as elites e a maior parte do povo vivia na tensão de ser morto”. Desta forma, a sensação de segurança estava diretamente relacionada à classe social da qual faziam parte os sujeitos naquele contexto.

4. “Naquela época a educação funcionava”

Na década de 1960 o Brasil vivia um momento de efervescência no debate sobre a educação pública, ancorado na concepção de educação popular de Paulo Freire. Tais debates deram origem à Lei de Diretrizes e Bases 4.024/61. Com o golpe de 1964, todo o debate foi interrompido e, segundo Germano, na obra Estado Militar e Educação no Brasil, a política educacional do período se caracterizou por: a) tentativa de controle ideológico em todos os níveis; b) vinculação direta entre a educação e o capitalismo a partir da teoria do capital humano; c) pesquisa científica voltada à acumulação de capital; d) descaso com o financiamento da educação pública e favorecimento do crescimento da iniciativa privada no setor. A lei 5.540/68, Reforma Universitária e a lei 5.692/71, de Diretrizes e Bases da Educação transformaram a educação em instância de controle militar. Dentro da tendência tecnicista e dos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade os professores passaram a ser formados em licenciatura curtas, que prejudicaram a educação por representarem uma formação aligeirada; o ensino superior consolidou-se como fator de diferenciação social, enquanto os cursos técnicos de secretariado, contabilidade e magistério eram direcionados às classes médias e baixas. O Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL criado pela Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967, foi um total fracasso. Criado com o objetivo de reduzir o analfabetismo que atingia 18 milhões de brasileiros, ou 33,6% da população com mais de 15 anos, o programa foi extinto em 1985 e diplomou apenas 15 milhões dos 40 matriculados, atingindo a redução de 2,7% no analfabetismo. 

5. “Naquela época só foram presos, torturados e mortos os subversivos”

Segundo Pedro Dallari, advogado e presidente da Comissão Nacional da Verdade, foram 434 mortos e desaparecidos durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Esse número ainda é preliminar por considerar apenas os membros de organizações urbanas ou políticas e a guerrilha do Araguaia. Esses dados contribuem para a falácia de que apenas os envolvidos nas organizações de oposição política à Ditadura foram perseguidos. Entretanto, os filhos de militantes políticos por diversas vezes foram obrigados a assistir cenas de tortura, como no caso de Edson Teles e Janaina, na época com 5 e 4 anos respectivamente, filhos de Maria Amélia Teles e César Teles, que foram obrigados pelo Coronel Alberto Brilhante Ustra a presenciarem as sessões de tortura dos pais. Inclusive um livro intitulado Infância roubada foi produzido para denunciar os crimes contra as crianças durante a Ditadura Civil-Militar. 

Crianças fichadas pelo DOPS durante a Ditadura Civil-Militar 

Outra evidência que desconstrói a falácia de que apenas "subversivos" foram presos, torturados e assassinados é o extermínio de mais de 8 mil indígenas por diversos motivos como remoção das terras, esbulho, prisões, torturas e maus-tratos.

Em conclusão, continuar a proferir discursos como os citados acima significa permanecer produzindo falácias, que na sua origem latina significa enganoso. Ou seja, as falácias tem por objetivo dar aparência de validade a argumentos errôneos produzindo discursos aceitáveis, mas que não possuem nenhuma evidência empírica para sua confirmação. Por essas e por outras, concordo com historiador espanhol Julio Aróstegui quando afirma que "a História está longe de ser uma questão de opinião ou de gosto".

Abraços,
Osvaldo. 

Um comentário:

  1. Ótimas revelações, muito pertinentes nos dias atuais. Parabéns!

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