segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Direitos Humanos Para Humanos Direitos

Manual didático de Direitos Humanos para o cidadão de bem




Existe muita desonestidade intelectual sobre o que significam os Direitos Humanos, mas a incompreensão a seu respeito é maior ainda. Talvez nem eu tenha levado tão a sério o que disse Rachel Sheherazade na semana passada antes de pipocarem inúmeras publicações nas redes sociais, categoricamente multiplicadoras da sentença “e aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil e adote um bandido”.

Diante da reverberação ainda estridente das declarações de Rachel Sheherazade, fez-se necessária essa atualização, fora de hora – afinal não é quinta-feira –, do Desafinado. Partindo do princípio de que são “cidadãos de bem” alguns dos que estão no endosso desse discurso, escrevo esse manual didático de Direitos Humanos para sepultar de vez alguns argumentos comumente compartilhados entre os muros do Império Zuckerberg. Atenção para os links que sustentam as afirmações:


1) A Justiça no Brasil não funciona!
Em geral, este argumento está baseado na ideia de que, se o sistema judiciário não funciona para condenar os criminosos culpados, devemos nós mesmos tomar a frente, julgar e aplicar pena aos acusados

Se, por um lado, a ineficiência do sistema judiciário brasileiro serve de álibi para a ação de “justiceiros”, por outro revela a existência de uma memória seletiva a seu respeito. Isso porque, neste caso, não é do “bandido comum” que estamos falando. Mas não mesmo, ainda que a medida da justiça seja determinada pelo número de prisões realizadas no país, por mais problemático que seja este critério.

Somente o estado de São Paulo tem 37 presos a mais por dia, a grande maioria por pequenos delitos, como porte de drogas e associação ao tráfico. Esse, aliás, é o principal motivo da superlotação de cadeias femininas. E a criminalidade não tem diminuído por causa disso.

O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo. De 1990 pra cá, cresceu 508%, enquanto o aumento populacional do país foi de 31%. Proporcionalmente falando, o número de presos sextuplicou. 

Definitivamente, não é de você que falamos quando dizemos que a justiça não funciona no Brasil. Na última década, a Polícia Militar do RJ matou em 707 "confrontos" com autoria registrada. Apenas 355 viraram inquérito; 19 deram em processo, mas somente 1 em condenação.

Não fosse a determinação da prisão preventiva – que durou 2 anos e 7 meses! – e o julgamento dos demais detentos, Heberson Oliveira não teria contraído HIV depois de ter sido estuprado pelos companheiros de cela numa cadeia do Amazonas. Um depoimento mentiroso o colocou atrás das grades sob a acusação de estupro de uma menina de 9 anos. Finalmente, foi inocentado, mas as sequelas ficaram: além do vírus, uma depressão e o vício em drogas estão na conta da “justiça popular”, até agora paga apenas por Heberson e mais ninguém.


2) E se acontecesse com a sua família?
Aparentemente inofensiva, essa retórica apela para a austeridade familiar que provoca reações violentas em boa parte dos animais, sobretudo os mamíferos

Não foram poucas vezes que esse argumento retórico foi acionado para justificar ações de extermínio ou mesmo tortura de criminosos em potencial: “e se o bandido tivesse matado alguém da sua família? O que você faria com ele?” Quem me conhece um pouco melhor apela mais ainda e redireciona o objeto da pergunta para a minha filha.

A Lívia é o meu bem mais precioso. Não consigo imaginar com qualquer clareza o que faria caso algo de terrível acontecesse com ela, mas não tenho dúvidas de que a revolta seria inevitável, invariavelmente acompanhada de violência. E é exatamente por isso que eu não posso ser o juiz de um caso desses. Não é de mim que estamos falando, das minhas paixões ou convicções, mas de um sistema que administra as paixões e convicções de todo mundo que convive com as minhas.

A base deste argumento não é fundamentalmente desonesta. Apenas ignora o fato de que a função da justiça não é vingar os crimes, mas impedir que novos aconteçam, responsabilizando culpados e resguardando inocentes. Qual o risco de que eu, você ou qualquer outro que tenha perdido um ente querido para o crime acuse o suspeito errado? Todo. Sem o juízo do raciocínio – contaminado pelo ódio –, os julgamentos precipitados não apenas condenam inocentes em potencial como também mantém libertos os verdadeiros culpados.

E se a culpa for comprovada? Comprovada também é a carnificina ocasionada pelo revanchismo. Espancados pela PM depois de vazarem os vídeos da decapitação de colegas de presídio de Pedrinhas, no Maranhão, os presos ordenaram ações no centro de São Luís que vitimaram Ana Clara Santos Sousa, de apenas 6 anos, a irmã, de 1 ano e 5 meses, e a mãe, que estavam num ônibus incinerado como sinal de represália.

3) Direitos Humanos são para humanos direitos
Este argumento ignora a origem dos DH e, sobretudo, o quanto eles existem inclusive para resguardar as individualidades de quem o aciona

No efervescer da experiência revolucionária da França no final do século XVIII, brotou um dos documentos que, anos depois, tornou-se a base do que se convenciona chamar de Direitos Humanos. Logo na queda do poder absolutista de Luís XVI, a Assembleia Legislativa Constituinte elaborou um documento assegurando direitos básicos e fundamentais do ser humano, entre eles a igualdade natural dos sujeitos, a prevalência da lei e da nação diante dos impulsos individuais.

Não demorou muito tempo para que a própria Revolução sepultasse os princípios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão sob a sede de justiça social. O Terror Jacobino perseguiu a imprensa, colocou sensores nas ruas e condenou milhares à guilhotina.

Das ditaduras cívico-militares da América do Sul ao 3º Reich na Alemanha, a suspensão dos direitos individuais com o álibi da justiça tornou-se uma das primeiras medidas para justificar o terrorismo de estado, cujas vítimas não são necessariamente os “bandidos comuns”, mas muito provavelmente eu e você que levantamos soluções diferentes para um problema que é coletivo e deveria ser, portanto, administrado pelo poder judiciário, amparado, por sua vez, pelo legislativo, que somos nós quem escolhemos. 

No mundo da suspensão das individualidades, o direito a opinião é mais do que um luxo: é um crime. Por isso os Direitos Humanos também nasceram para resguardar direitos fundamentais como, por exemplo, a liberdade de expressão, inclusive para falar tanta besteira sobre eles nas redes sociais.

Neste sentido, a ideia de que os Direitos Humanos servem para proteger bandido trata-se de um delírio coletivo. Isso porque eles também são a base da presunção de inocência, fundamental em qualquer estado de direito dito democrático.

Nas mãos do estado, a simples acusação já foi motivo o suficiente para torturar muita gente num passado nem tão distante quanto a Inquisição. Foi isso que matou Vladimir Herzog depois de uma sessão de espancamentos na sede do DOI-CODI, em São Paulo, durante o período de – veja bem – abertura política no Brasil dos anos 70.

Por isso, são os Direitos Humanos que têm a função de garantir uma defesa digna diante de acusações – quaisquer acusações: as que levaram Herzog para depor, as que infectaram Heberson com o HIV ou mesmo as que dão pistas sólidas sobre roubos e assassinatos. Além de garantir a condenação de um crime, a presunção de inocência impede, por sua vez, a prática de outros diante da pressa por justiça.

4) Bandido bom é bandido morto!
Irmão univitelino do argumento nº 3, este tem apenas a função direcionar o ódio contra o criminoso que interessa

Se a definição imediata de “criminoso” é a de “quem comete crimes” (e bandido é o seu sinônimo mais imediato), seu campo magnético deveria atrair todos aqueles que cometem crimes, mas não é o que acontece. Neste sentido, é criminoso quem colhe atestados falsos de dentista para abater no Imposto de Renda, quem se recusa a pagar o IPTU do imóvel em que vive, quem utiliza placa de outro estado para reduzir o IPVA ou quem usa perfil fake em redes sociais para reforçar denúncias contra outros indivíduos ou instituições. 

Também não vi ninguém pedir a cabeça de Demóstenes Torres – ex-baluarte da ética no Congresso – depois do escândalo de corrupção com Carlinhos Cachoeira. Dentro dessa compreensão, ele também é bandido. Um processo com mais de 50.000 folhas denominado “Mensalão” foi julgado em tempo recorde e determinou a prisão da histórica liderança do PT, apesar de toda descrença popular a respeito do seu desfecho. Ocorrido nada menos que 7 anos antes deste, o mensalão mineiro do PSDB – que serviu de modelo para o segundo! – aguarda julgamento no STF e corre grande risco de prescrever. Não consigo imaginar ninguém exigindo a sentença de morte de Eduardo Azeredo, principal peão do partido, apontado pela procuradoria como diretamente responsável e beneficiado pelo primeiro caso conhecido como "valerioduto".

A minha vontade é a de que todos estes listados acima sejam, portanto, mortos? Não, assim também não deveriam ser aqueles que estão sendo amarrados nos postes pelo Brasil afora, ainda que particularmente eu considere um sonegador de impostos muito mais nocivo ao coletivo do que um batedor de carteiras num calçadão do Flamengo.

Em vários estados dos EUA, a pena de morte é não apenas legal, mas frequentemente aplicada em casos de assassinato, por exemplo. Resolve? Entre os países mais desenvolvidos, figuram como um dos mais violentos.

5) Sheherazade está fazendo valer apenas a sua liberdade de expressão
A linha ignorada que separa a liberdade de expressão da intolerância e incitação ao ódio é a última carta na manga das “pessoas de bem”


Nos tempos da confusão sobre o significado dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão acabou se tornando o principal álibi para toda e qualquer forma de manifestação de intolerância no mundo contemporâneo. Nos púlpitos da igreja, é ela que demoniza a homossexualidade. Nas redes sociais, é ela que justifica uma incontrolável agressividade.

Mas existe um erro categórico nesta prerrogativa. O que Sheherazade e seus discípulos estão fazendo está previsto no código penal e se chama "incitação pública à prática de crime", neste caso a violência e a tortura, ignorando qualquer princípio legislativo de correção ao crime. A fala da jornalista do SBT "desrespeitou os direitos humanos garantidos pela Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente ("marginalzinho") e uma violação explícita do Código Brasileiro de Telecomunicações que determina que o serviço de rádio difusão não pode ser usado para humilhar pessoas e expô-las a condições degradantes, 'nem que seus fins sejam jornalísticos'".

A máscara democrática deste discurso de "liberdade de expressão" cai quando os efeitos colaterais desta e de tantas outras declarações neste mesmo sentido têm se multiplicado no país. No Rio de Janeiro, local da barbárie aplaudida por Sheherazade, Francisco do Nascimento foi amarrado a um poste por duas horas enquanto uma multidão se acotovelava em sua volta. Seu crime? É preto, pobre e deficiente mental. De nada adiantou que alguns tentassem libertá-lo. Dois homens permaneceram de guarda para impedir qualquer aproximação. 

Em setembro de 2010, em São Gonçalo-RJ, o caseiro Marco Antônio Corrêa Vicente foi espancado até a morte por um grupo de pessoas que o confundiu com um ladrão de celular. Nesta semana, um grupo se vangloriou por agredir, amarrar e despir um homem acusado de tentar roubar uma moto. A jornalista e professora Cilene Victor da Silva tem sido frequentemente ameaçada de morte depois de criticar publicamente, amparada em lei, a postura de Sheherazade. 


Por sorte que os Direitos Humanos estão aqui também para impedir que Rachel Sheherazade e seus "justiceiros" espalhados pelo país sejam amarrados em postes por aí. Já pensou se o argumento nº 4 fosse aplicado agora? Justiceiros e seus defensores estão contra a lei. Isso não deles criminosos/bandidos também? Não adianta correr pra debaixo da saia da Constituição apenas quando convém, e da maneira que convém.


Se ainda assim as sentenças intolerantes da jornalista do SBT e dos cientistas sociais do Facebook mantiverem-se inflexíveis, pode ser que não sejam tão "cidadãos de bem" assim.

Nota do autor: "Cidadão de Bem" (Good Citizen) era o nome da revista mantida pela Ku Klux Klan, organização racista norte-americana que prega o extermínio dos negros desde o fim da Guerra de Secessão, como revanche pelo fim da escravidão legal no país. Sinal dos tempos.



Abraços, 
Murilo

20 comentários:

  1. Nao sei se e' certo colocar que Ana Clara morreu por "revanchismo". O certo mesmo seria que houvesse pena de morte e esses animais que comecaram a carnificina na cadeia tivessem sido mortos, e nao espancados. Talvez assim nao tivessem ocorrido aqueles ataques em Sao Luiz. Ainda torco para que os animais que perpretaram os ataques sejam mortos pelos seus companheiros de cela. Agurado ansioso as noticias.

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    1. Acho que uma porta faria uma resenha melhor do artigo, Matheus.

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    2. Nao, nao faria. Esses bandidos merecem morrer. Procure Ana Clara Santos Souza no google images e olhe para a cara dela quando ela morreu. Olhe para a expressao de dor que ficou na sua face. Entao depois venha defender esses assassinos.

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    3. Ou você é uma abominação cognitiva ou uma abominação ética. As duas, impossível; nenhuma da duas, tampouco. Melhor conviver com a dúvida, portanto.

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    4. Ok, mudando de assunto entao: voce, como diretor da prisao, diante de uma rebeliao em que 60 sao decapitados, faz o que? Chama o chefe da rebeliao pra conversar? Ou desce o cacete? Ai vem me dizer depois que se pode esperar revanchismo dos caras na cadeia? Pelo amor de deus, o que precisa neste pais e' mais dureza com os criminosos. No caso especifico desses brutos que fizeram a abominacao no Maranhao, se me dessem o fosforo e todos estivessem encharcados com gasolina eu ateava fogo na hora.

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    5. Você parte do princípio de que é a violência marginal a causa de todo esse problema. Gostaria muito de que você tivesse números que atestassem o que as conclusões já se ocuparam em fazer. Descer o cacete ou incinerar os bandidos não resolve o problema, e isso está atestado pelas experiências de violência policial truculenta pelo mundo.

      Não que eu considere a sua alternativa digna. Não considero. Mas é tampouco válida a ideia de que resolveria a criminalidade no país.

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    6. Voce acha que nao e'valida. Mas eu acho que esa na hora de testar. Porque se nao for isso nao tem outra saida. Tem que desce o cacete nos marginais mesmo. Quem sabe assim descemos de 70 mil omicidios por ano para um patamar mais "humano".

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    7. O senso comum nunca entenderá que a máxima: "bandido bom é bandido morto" nunca resolveu o problema da criminalidade. Os países que disponibilizam da pena de morte ou da "lei de Talião" (cortar a mão, chicotear em praça pública, decapitar, etc), resolveram o problema da criminalidade? Temos inúmeros exemplos históricos que essas medidas não resolvem. Ademais, os mesmos que dizem ser "de bem", são religiosos, logo, apoiam a morte de criminosos e para onde vai aquele mandamento: "Não matarás"?
      Oia, o homem invisível está de olho!

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    8. Matheus, todos os dias as milícias no RJ estão a executar o Sheherazade celebrou como novidade com o caso do menino preso ao poste. Isso já nos foi testado em mais de 10 mil anos de civilização.

      Essa taxa de homicídios pode cair também se, como argumentado no texto, a polícia começasse a ter os próprios crimes investigados.

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    9. Discordo. O unico caminho para o Brasil e' endurecer em cima dos criminosos de forma oficial e nao oficiosa como alguns na policia fazem. Nao se fazendo isso, o Brasil vai continuar disputando com a Africa do Sul o titulo de terra "em paz" mais perigosa do mundo. Mas isso e' so minha opiniao, sempre vai ter gente pensando diferente, como voce. E esta muito longe do dia em que um governante no Brasil vai ter ideias como as minhas, estao sempre indo ao contrario: li que vao tirar as armas dos policiais de Sao Paulo. Vamos ver no que vai dar. Ainda bem que estou fora do Brasil. Acho que nao volto mais. Boa sorte.

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    10. Ok, sabichoes, pois me digam o que deve ser feito. Tanto em termos gerais como com os animais que mataram a menina Ana Clara queimada viva.

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  2. Ainda to pasma com os números do primeiro tópico. É muita gente. Sempre achei que a solução dos problemas, digamos assim, estaria na educação. De uns tempos pra cá, comecei a repensar isso. Educação sem o que chamam de base ou estrutura familiar (independente da configuração) não deve funcionar também, um amigo meu disse isso numa conversa que tivemos nessa semana.

    Adendo: nessas, as igrejas foram mais espertas; tem pastor dentro dos presídios pra salvar os pecadores, missionários acabando com culturas indígenas e afrodescendentes, muitas igrejas nos bairros e favelas lavando dinheiro de tráfico, evangélicos no parlamento, tudo em nome da família, dos cidadãos de bem, da Palavra de Deus.

    :(

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    1. A Educação acabou virando uma espécie de ursinho de pelúcia nas discussões sobre qualquer tipo de política pública no Brasil. Fez muito bem em repensar.

      E sim, as igrejas usam este álibi melhor do que ninguém.

      Obrigado por mais uma visita, Marisa!

      Abraços,
      Murilo

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  3. Parabéns pelo texto Murilo. Também fiquei incomodado com a reverberação dos últimos acontecimentos e quis escrever algo, mas fico muito contente em ler o seu post e poder ver que não poderia ter dito melhor.

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    1. Obrigado, Zé! Essa intervenção parecia necessária, mas as suas seriam também certamente bem-vindas!

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  4. Boa noite Murilo, sei que não temos nenhuma afinidade de ambas as partes, mas sempre leio seus textos pois sei que sabe se posicionar bem e defender seu ponto de vista, e busco sempre as opiniões contrárias as minhas, pois viver de consumir apenas oque me agrada, não me acrescenta e não me força a crescer.

    Enfim, concordo que os massacres por populares não é legítimo, porém, isso é uma resposta ao banditismo desenfreado e violento que só cresce no Brasil.
    Você não acha que se implantassemos pena de morte para crimes hediondos, e também para tráfico de drogas e corrupção, para que houvesse uma diminuição da populações carcerária no Brasil, e os montes de dinheiro gastos com essa corja fosse revertido em educação, saúde e segurança?

    Além, claro, de tentar reintegrar os meliantes que praticam pequenos furtos, com sala de aula dentro das cadeias, cursos profissionalizantes e etc? não apenas joga-los junto aos outros animais assassinos que só vão piorar pela convivência?

    Não concorda que deveria existir um equílibrio entre o "dente por dente" e a "consciência" ?
    Boa noite.

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    1. Olá Matheus, aqui a questão da afinidade é o de menos. Agradeço e parabenizo a abordagem respeitosa sobre o assunto.

      1) Eu até poderia maturar uma discussão sobre pena de morte para crimes hediondos se houvesse algum demonstrativo - qualquer - de que realmente ela significa solução ou mesmo melhora na violência. Os EUA são a maior economia do mundo, têm pena de morte (em alguns estados), mas logram a pior colocação em segurança dentre os países mais desenvolvidos.

      2) Nossa legislação sobre tráfico de drogas precisa evoluir muito. Conheço a nocividade do tráfico em larga escala - já perdi muitos alunos pra ele -, mas entendo que hoje existe uma homogeneização de entendimento entre o mega traficante e o sujeito que carrega algumas trouxinhas pra dividir com os amigos ou, pior, a mulher que precisa transportar o conteúdo pro companheiro preso e que é presa em flagrante. Isso acontece e muito. Pra mim, parte considerável do problema da superpopulação carcerária pode ser resolvido com a descriminalização deste tipo de "tráfico". Não sou favorável ao uso, não uso, mas não consigo entender tanto enclausuramento nestes casos.

      3) A corrupção no Brasil é um vício. Acho, inclusive, que muitos que a cometem não têm ideia de que sejam corruptos. O maior exemplo disso é a sonegação. Com muita naturalidade, se sonegam impostos, se dá um jeito pra muita coisa e não é de uma hora pra outra que isso vai mudar. E, convenhamos nós, as cadeias não são ocupadas por corruptos. O único caso de grandes proporções é o Mensalão. Os outros estão por aí. E a imunidade parlamentar é mirada até por quem precisa dela pra abafar crimes comuns.

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    2. 4) O Plano Nacional da Educação aprovou 10% do PIB pra esse fim. Essa foi uma grande vitória e que, infelizmente, não quase ninguém se manifestando a respeito. Provavelmente a Saúde vai pro mesmo rumo, também com 10%. Nossos custos com população carcerária são altos basicamente porque nossa legislação é obsoleta e criminaliza práticas de nocividade duvidosa. Nós somos um dos únicos países ocidentais que ainda consideram casas de prostituição ilegais, assim como o aborto e o porte mediano de entorpecentes. Respeito a opinião de quem é contrário às práticas, mas transformá-las em crime é ignorar uma série de fatores que precedem ao encarceramento - que é representar perigo para a sociedade.

      5) Mas é verdade, por outro lado, que a segurança pública merece uma atenção maior. Hoje ela representa aproximadamente 0,5% da nossa arrecadação, e mesmo este investimento é aplicado de maneira mais corretiva do que preventiva. Apresentei aqui no blog algumas estatísticas monstruosas sobre a atuação das polícias nas favelas e o verdadeiro genocídio que atinge negros jovens nelas. Esses dados não são coincidência. Hoje os negros jovens são a maior vítima da truculência policial, e estamos falando de um grande aparelho de estado que oculta evidências, processos e sequer formaliza os "autos de resistência", como costumam chamar essas mortes. Mas no RJ, por exemplo, só 8% das políticas públicas de segurança levam em consideração a questão da cor, como se ela não fosse um elemento importante nestes crimes cometidos pela polícia.

      6) Por fim, sou bastante avesso à ideia comum de "consciência", porque é algo não costuma dizer nada. O "dente por dente" não é apenas odioso porque assassina inocentes, mas porque já demonstrou não funcionar para a segurança de ninguém. Desde junho do ano passado, nossos índices de linchamento multiplicara-se brutalmente (expliquei em outro artigo), mas nem por isso a segurança melhorou. Vivemos numa sociedade extremamente violenta, que age de maneira violenta pra reivindicar, que é coagida de maneira violenta pra se calar. É importante que se entenda que os Direitos Humanos não existem simplesmente pra bater na tecla de bandidos são bonzinhos e merecem perdão. E quem faz isso é um idiota. Todas as frases que eu vejo por aí atribuídas a Maria do Rosário são hoax. Por trás disso existe uma preocupação muito grande com a segurança pública que envolve a todos nós, mas que precisa ser encarada de maneira racional. Neste sentido, o ciclo de vinganças é inevitável, mas não interessa pra ninguém.

      A cadeia não é o melhor lugar pra ninguém, mas é o necessário pra aqueles que representam, de fato, periculosidade. Penas alternativas pra pequenos crimes já são uma realidade em muitos países e eu acredito que falte boa vontade e coragem política pra que sejam aqui também. O clichê de que muitos se tornam muito mais perigosos na cadeia é real.


      Abraços,
      Murilo

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