quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Espetáculo do Horror em Pedrinhas

Enquanto meia dúzia de mórbidos gargalham com imagens de detentos em situação de humilhação nos presídios de todo país, o crime organizado faz da obsolescência das cadeias um prato cheio para a sua atuação cada vez mais violenta e articulada



6 dezenas de mortos, homens decapitados, deficientes mentais agredidos, mulheres estupradas e quase o dobro de detentos que a capacidade de abrigo são alguns dos componentes que integram o cenário das penitenciárias do estado do Maranhão. 

Os números são do Conselho Nacional de Justiça, detectados por inspeção realizada semanas antes da divulgação de um vídeo em que prisioneiros do Centro de Detenção Provisória de Pedrinhas, em São Luís, exibem os corpos mutilados de Manoel Laércio Santos Ribeiro, Irismar Pereira e Diego Michael Mendes Coelho - este último com apenas 21 anos -, decapitados no dia 17 de dezembro.

Enquanto esta semana a governadora Roseane Sarney licita lagosta, patinha de caranguejo e R$ 108 mil em ração para peixes nas residências oficiais, as autoridades maranhenses refletem a comoção que normalmente envolve a realidade do sistema prisional brasileiro. Ou seja, nenhuma. Ano passado o estado chegou a perder o repasse de cerca de R$ 20 milhões destinados pelo governo federal para a construção de 5 unidades penitenciárias.

O Maranhão é governado há 50 anos pela família Sarney. Carrega os méritos de ter a pior renda per capita  - R$ 360,43 -, a menor expectativa de vida e a segunda maior taxa de mortalidade infantil do país, 95,8% de domicílios sem saneamento básico, 20,8% de analfabetos e 460% mais homicídios desde 2000.

De qualquer forma, o episódio de dezembro em Pedrinhas, escancarado na última terça-feira pela Folha de S. Paulo, revela a urgência de um debate que, assim como tantos outros no país, ainda é tabu. Ao mesmo tempo em que órgãos como a Conectas Direitos Humanos, a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pedem soluções urgentes para o caos da superlotação e condições de insalubridade nas prisões, a questão moral ainda parece desorientar o debate sobre o sistema carcerário no país.



Em 2011, o enviado da Folha de S. Paulo André Caramante divulgou dados oficiais das penitenciárias paulistas: são 37 novos presos a mais por dia, num déficit carcerário de quase 3 vezes o número de vagas disponíveis. Não é preciso ser nenhum gênio em matemática para descobrir que o inchaço anual causado por esse acréscimo é, no mínimo, alarmante.

O relatório do Conselho Nacional de Justiça, encaminhado no dia 27 de dezembro ao presidente do Supremo Tribunal Federal, atesta que, apesar da capacidade de comportar apenas 3.124 detentos, o Maranhão encarcera hoje 5.517 presos. 2.500 é o número de aprisionados somente em Pedrinhas, que pode abrigar, na verdade, apenas 1.700.

Como no interior do estado existem apenas pequenas cadeias e delegacias, é para Pedrinhas que são enviados tanto os presos mais perigosos quanto aqueles que não têm espaço nas pequenas selas das suas cidades. Em 2002, uma rebelião escancarou o problema ocasionado pela rotina de massacres que os prisioneiros do interior eram submetidos pelos da capital. Logo após o motim, reuniram-se na facção dos "baixadeiros", batizada posteriormente de Primeiro Comando do Maranhão. Uma dissidência no grupo formou os Anjos da Morte, mas em resposta os detentos da capital organizaram-se em torno do Bonde dos 40, considerado o mais violento do presídio.

São as facções que controlam a prisão. Encarregadas de recrutar novos integrantes logo no seu ingresso ao complexo, foram elas que permitiriam e determinaram as condições em que a própria vistoria do CNJ deveria ocorrer, além de também decidirem como são realizadas as visitas íntimas. Em grande parte das ocorrências no interior do presídio, aliás, a violência sexual atua como fator determinante. Presos com menor grau de influência na penitenciária vêem, com frequência, suas parcerias estupradas por detentos mais poderosos. Aqueles que tentam impedir são assassinados a sangue frio. Foram 200 presos assassinados no Brasil ano passado, 1/3 deles no Maranhão.

Além disso, diante da indisponibilidade de vagas no sistema de saúde, o estado maranhense tem cada vez mais encaminhado doentes mentais para os presídios. O resultado: constantes agressões e o seu extermínio.

Segundo o CNJ, o governo maranhense já havia sido avisado das péssimas condições dos presídios em 2011, quando realizou mutirão nos processos penais no estado e encaminhou às autoridades recomendações e Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), todos sem resposta.

Segundo técnicos, as prisões deveriam ter, no máximo, 800 detentos. Um número equilibrado de presos é importante basicamente para evitar quaisquer problemas de ordem estrutural, ocasionados, claro, pela  tentativa não muito eficiente de flexibilização da terceira Lei de Newton.

Enquanto isso, nas redes sociais, ainda proliferam manifestações de - mais que desprezo - ódio pelo detento. É este ódio que, em grande parte, impede a racionalização do debate sobre o sistema prisional no país, além de revelar o que há de mais podre na condição humana.



Se, por um lado, todo mundo concorda que lugar de bandido é na cadeia, por outro, há de se concordar que isso só pode acontecer desde que este lugar efetivamente exista e garanta condições mínimas de convivência no seu interior.

Primeiro que o nosso código penal desmente o mito da impunidade no Brasil. Se todos os usuários e transportadores de entorpecentes continuarem nas mãos das polícias militares, a tendência é que o inchaço se torne ainda mais insuportável nos próximos anos. Boa parte das mulheres que ocupam as cadeias hoje são presas pelo famoso "33", porte de drogas. Outras são enquadradas no "35", associação ao tráfico. Muitas delas são flagradas na tentativa de abastecer companheiros amorosos nas penitenciárias e acabam presas ali mesmo.

O resultado desta besteira é catastrófico: filhos pequenos em casa desamparados, mais superlotação nas cadeias e o verdadeiro problema, que é o tráfico violento e organizado, permanece imune. O grau de periculosidade destas garotas é absolutamente nenhum, mas ainda assim a criminalização do consumo e da distribuição das drogas torna o Estado refém do próprio autoritarismo.

Dentro das cadeias, os presos por pequenos furtos e delitos são integrados ao mundo real do crime. Ali a recuperação torna-se quase impossível diante dos pequenos infernos em que transformaram-se as prisões.


Mesmo quem gosta de aparecer nas redes sociais para incitar o ódio aos detentos é capaz de concordar que a superlotação dos presídios e a falta de condições de higiene no seu interior são um problema. Embolados em cubículos e cerceados de itens básicos de consumo, os detentos criam redes de influência e relações de poder que extrapolam o próprio olhar do estado. O portal UOL chegou a divulgar imagens de um presídio no Recife, considerado o pior do país, em que os próprios encarcerados têm acesso às chaves das celas para ajudar o trabalho dos agentes penitenciários.

Enquanto meia dúzia de mórbidos gargalham com imagens de detentos em situação de humilhação nos presídios de todo país, vítimas de violência física, sexual e psicológica, o crime organizado faz da obsolescência das cadeias um prato cheio para a sua atuação cada vez mais violenta e articulada.

"Eu gostaria de parabenizar as Faculdades Integradas de Itararé, por levar seus estudantes de Direito para conhecer presídios em Ponta Grossa-PR, numa tentativa de sensibilizar os estudantes com a situação deprimente dos detentos, e assim criar um exército de defensores de bandidos.

Gostaria que os senhores reitores das Faculdades Integradas de Itararé, levassem também seus valorosos estudantes de Direito para conhecer as famílias das vítimas do crime no Brasil, conhecer a mãe que teve o filho morto á tiros, o pai que chora todos os dias pela filha ter sido estuprada e morta, os irmãos que choram ao ver um membro de casa perdido na cracolândia e etc, mas não, vamos levar eles ao presídio pra eles ficarem com peninha dos vagabundos...

Lembrando que eu não estou criticando os estudantes aqui, principalmente porque eles são a nossa esperança de um dia termos um código penal reformulado e um país mais justo."



A violência no interior dos presídios é, há muito tempo, inaceitável fora deles, mas acabou naturalizada pelo julgamento moral dos presos e permitida por um inconsciente coletivo que atribui ao sujeito encarcerado status merecedor da pena que recebeu, ainda que boa parte dos aprisionados do país seja constituída por cidadãos ainda em processo de julgamento.

Em 2011, Heberson Oliveira foi estuprado e contraiu o vírus da AIDS numa cadeia do Amazonas. Seu caso poderia ser apenas mais um não fosse o fato de, 2 anos e 7 meses depois da prisão, ter sido declarado inocente pela justiça. Enquanto aguardava julgamento na Unidade Prisional do Puraquequara, mesmo sem provas materiais ou testemunhais que o apontassem como culpado pelo estupro de uma menina de 9 anos de idade, foi abordado pelos "xerifes" da prisão. Ele nem sabe quantos o violentaram.

Heberson entrou em depressão, tentou o suicídio por causa da discriminação sofrida no trabalho e tornou-se dependente químico (o hábito do consumo de drogas também foi adquirido na prisão). Desempregado, viciado e portador do vírus, luta por indenização do estado do Amazonas por ter sido declarado inocente. Mas e se não fosse? Quantas risadas mais seriam compartilhadas pelas redes sociais enquanto o detento definha pelas irreparáveis sequelas do encarceramento? Inocente, culpado, condenado ou não, de que maneira a violência dos presídios representa alguma manifestação de justiça?

O que esperam aqueles defensores da tese de que "bandido bom é bandido morto" é basicamente a proliferação da vingança, não da justiça. E o sucesso dessa empreitada tem sido implacável. O ciclo da vingança não se encerra na violência contra o detento. Aliás, não se encerra nunca.

Diante das denúncias do CNJ, a polícia militar do Maranhão interviu e ocupou Pedrinhas com a missão de confiscar celulares e armamentos. A resposta veio de imediato: segunda-feira, a menina Ana Clara Santos Sousa, de apenas 6 anos, morreu depois de passar 3 dias no hospital com 95% do corpo queimado. Ela, a mãe e a irmã, de 1 ano e 5 meses, foram vítimas da represália dos bandidos, que atearam fogo nos ônibus da capital na semana passada.

Ana Clara não é uma vítima do crime organizado maranhense, tampouco a única deste problema. É vítima dos "cientistas sociais" de internet que sub-humanizam detentos com a falácia da integridade moral e a mesma autoridade acadêmica com que utilizam a crase. Vítima também da multiplicação de mentiras tipicamente marcadas pela intolerância, como a história do "Bolsa Bandido", que nunca existiu. Ana Clara é vítima da escrotice geral que continua irracionalizando a discussão sobre os presídios no país e que, invariavelmente, esbarra na barbárie própria de uma civilização que ainda tem coragem de dizer que "direitos humanos são pra humanos direitos".

Se for isso mesmo, prefiro ser julgado pelos selvagens.

Abraços,
Murilo

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