quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Deus e o Diabo na Capital do Comércio

2 de dezembro de 1804, Catedral de Notre-Dame de Paris. Uma cerimônia espetacular aguarda a coroação de uma das figuras políticas mais apaixonantes da história de França e Ocidente contemporâneos. Depois do golpe (18 Brumário, 1799) sobre o golpe (9 Termidor, 1795), Napoleão Bonaparte institui a grande cartada de um governo que, desde o afastamento dos membros do Diretório, já dava sinais concentração. Ao contrário da cartilha, o novo imperador exigiu a presença do papa na França. No ápice do espetáculo, retirou das mãos de Pio VII o diadema e coroou-se ali mesmo, sozinho, com os próprios punhos.



Há pouco tempo, alguém perguntou retoricamente no Twitter "desde quando política tem a ver com religião?". Respondo, com toda franqueza: desde quando existe política e desde quando existe religião. Isso porque a formação das primeiras civilizações no Oriente Próximo, ao redor da região da Crescente Fértil - área que corresponde aos atuais Egito, Iraque, Líbano, Síria, Jordânia e por aí vai -, esteve umbilicalmente ligada ao poder religioso manifestado através da chamada Teocracia: o governo de Deus. No Egito, o faraó, além de figura político-militar, era considerado sobretudo um deus vivo na Terra, que ajudava a regular as coisas e o funcionamento perfeito do cosmos.

Médici, Pinochet, Franco, Hitler, Mussolini... mais do que genocidas étnicos e políticos, usaram da religião e dos "bons costumes" para os maiores regressos da história nos Direitos Humanos. Torturaram e jogaram corpos como se fossem lixo. Augusto Pinochet no Chile treinou cães para estuprar esquerdistas e enfiou ratos na vagina das mulheres de "subversivos". ATEUS, diziam os partidários do ditador, eram a prova viva de que o diabo estava infiltrado na política. "Diabo", neste caso, era Salvador Allende, democraticamente eleito e responsável por uma das maiores reformas sociais em favor do trabalhador chileno. Deixou o palácio La Moneda carregado morto depois de épico discurso transmitido ao vivo pela rádio e só interrompido pelas bombas que trucidaram a residência oficial com o seu presidente dentro.

O que tem feito a campanha de Heliton em Itararé é pura e simplesmente a atualização de milênios ininterruptos de controle da religião sobre o poder. Apelou à comunidade evangélica e desenvolveu uma verdadeira cruzada através das redes sociais, jornais e eventos públicos mediante a reprodução de valores de intolerância e ódio.

Articulador da campanha, Flavio Prado tem sido usado pelos jornais, que estão fazendo PROPAGANDA ILEGAL a favor do PSDB - é só conferir o número de aparecimentos coincidentes como na "carta do leitor", por exemplo (olhe minha cara de bobo) -, e lança mão daquela mesma retórica que denunciei há duas semanas. Ao jornal Regional, disse que ia responder ao comentário de alguém no Facebook e aproveitou para destacar que a igreja a qual pertence Heliton, a Congregação Cristã, é uma religião totalmente apolítica, e que defende a total separação entre Estado e Religião. No entanto, continua, "doutrina seus membros a não votarem em candidatos que não compartilham dos ensinamentos de Deus e da Sua moral". Afirma que uma pesquisa - cadê?! - revela 80% de congregados a favor do 45. 

Isso nem retórica é. É tentativa de homicídio contra o seu cérebro de leitor.

Os comícios estão lotados de discursos de ódio contra candidatos de esquerda, aqui ainda confundidos com ateus e talvez até comedores de criancinhas. Flavio Prado, Osvaldo Martins - o Michael Jackson de Itararé -, Hélio Porto e mais, têm inundado as redes sociais com um show de intolerância poucas vezes visto em mais de 100 anos de município.

Estado laico não é Estado ateu. Estado laico é justamente aquele que luta para garantir os direitos de liberdade de expressão religiosa, conforme determinação constitucional. É aquele que luta, inclusive, pela não aplicação de códigos morais e punitivos que até pouco tempo atrás no Ocidente apedrejavam mulheres até a morte pela acusação de adultério e justificava a escravidão - isso graças a leitura literal das escrituras "sagradas".

É justamente essa turma que hoje se esconde atrás da bíblia para defender a intolerância e da constituição, para justificar que pode manifestá-la como quiser, que hoje apodrece o Congresso Nacional com uma proposta para cura gay, como se a homossexualidade fosse doença. Os deputados João Campos, do PSDB/GO, e Roberto de Lucena (PV/SP) vão contra decisão do Conselho Federal de Psicologia, que proíbe a patologização da expressão da sexualidade homoafetiva a partir destes mesmos textos que um dia derrubaram os muros de Jericó para o massacre impiedoso de infiéis. 

O que hoje responde por "ateu", ontem já respondeu por "mulher", "negro", "pobre", "pagão", "judeu", "retardado" - como Heliton chamou na semana passada as crianças do CEAMI - e tantos "Outros" que compuseram a história dos excluídos.





Duzentos e oito anos depois, no dia 07 de outubro de 2012, em pleno século XXI, quem vai ter os culhões para tirar a coroa das mãos do papa?


Saludos, 
Murilo.

2 comentários:

  1. Já diria o teólogo José Carlos Pereira, "a religião pode ser instrumento de poder e garantir, com isso, a legitimidade do poder político, ao passo que a ação política também pode servir de retaguarda para garantir a legitimidade religiosa. Dessa maneira, a religião é um dos meios utilizados no quadro político e estratégias políticas são também empregadas pela religião para exercer seu domínio".
    Bastante interessante analisar que, mesmo regionalmente, e principalmente durante as eleições, indivíduos ainda fazem - e fizeram - uso de símbolos e dos discursos religiosos como instrumento coercitivo.

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