por CLÓVIS GRUNER*
O governo Dilma acabou? Há chances de que sim. E não me refiro ao mandato, como desejam boa parte dos que foram às ruas no último domingo. Por outro lado, o desejo dos manifestantes tampouco importa à oposição, bem mais interessada em – nas palavras do senador tucano Aloysio Nunes – fazer “sangrar o governo” pelos próximos anos e garantir em 2018 a eleição de algum nome, qualquer nome, sem a exigência de apresentar algum projeto ou mesmo um mísero programa para o país. Isolado e acuado por aliados cujos interesses fisiológicos suplantam os políticos; em confronto aberto com um Congresso abertamente hostil; na mira de uma imprensa e mídias dispostas a assumirem a função de oposição; e, por fim, sitiado por uma oposição pouco ou nada disposta ao diálogo, o segundo mandato de Dilma Rousseff começou frágil, sem força e, parece, sem rumo.
Reforça a sensação de fragilidade uma situação econômica hoje pouco favorável, a dar claros sinais de que o modelo social desenvolvimentista que caracterizou as gestões petistas está esgotado. A situação não é nova: ela já se desenhava no cenário eleitoral de 2014 sem que, naquele momento, nenhuma das duas forças partidárias que polarizaram o embate (porque, a rigor, debate não houve), apresentasse qualquer alternativa a uma crise que desde o começo deste ano deixou de ser uma possibilidade.
Vistas sob este prisma, as manifestações do último domingo foram em grande medida decorrência de um ambiente público marcado por uma hostilidade e despolitização crescentes. A polarização extrema, potencializada após a eleição e a posse de Dilma, foi estimulada pela percepção, cuidadosamente construída, de que não apenas a corrupção é nosso maior problema, mas que ela começou com o PT, e terminará com ele. Uma falsa percepção, por certo. Mas contribuiu para a eficácia do discurso midiático e oposicionista a convivência e conivência dos seguidos governos petistas com os desmandos principalmente na Petrobras. A investigarem e barrarem os inúmeros desvios na estatal, o que poderiam ter feito já em 2003, o PT repetiu exatamente a política dos governos anteriores. E paga agora um preço altíssimo por isso.
Contra a democracia – Mas não o paga sozinho. À “demonização” do PT seguiram-se a desqualificação da esquerda, jogada toda ela em uma espécie de vala comum do anti-petismo, e a negação da política. Atravessada pelo ódio e o ressentimento, tornados os principais, senão os únicos de seus afetos, ela deixou de ser a responsável por organizar e regular o convívio entre diferentes, condição fundamental a uma convivência democrática. As demonstrações de uma apenas suposta minoria que no domingo reivindicou, com faixas, cartazes e discursos inflamados e de inteligência rasa, não apenas o impeachment de Dilma, mas uma intervenção militar e o retorno à barbárie do autoritarismo, organizam um sentimento até recentemente disperso.
O esforço em tentar emprestar às manifestações um caráter mais plural e menos classista – houve quem as aproximasse às manifestações de junho de 2013 –, esbarra em uma dificuldade. Ainda que nem todos os que protestaram contra o governo e a corrupção concordem com os discursos extremistas, foram justamente os extremistas que monopolizaram mídias, noticiários e redes sociais. Eles encontraram nas ruas de domingo um terreno fértil onde fazer aparecer seus discursos de ódio, suas palavras de ordem autoritárias e seu incontido desejo de violência antes restrito ao ambiente virtual, notadamente o Facebook e as caixas de comentários de blogs. A reação do governo foi, mais uma vez, tímida, incapaz de compreender e responder a complexidade e a gravidade do que está a acontecer. E não podia ser diferente.
Na abertura de seu “Imobilismo em movimento”, Marcos Nobre chama a atenção para o fato de que, à consolidação da democracia em seus aspectos formais não correspondeu, necessariamente, “uma vida política substantivamente democratizada”. “A democracia no país (...) é ainda muito pouco democrática de fato”, afirma. Para além dos aspectos formais, a democracia “é uma forma de vida que se cristaliza em uma cultura política pluralista, organizando o próprio cotidiano das relações entre as pessoas”. A abertura política e o processo de redemocratização foram insuficientes para superar décadas de repressão sistemática a movimentos sociais e populares, historicamente confrontados com um “um sistema político montado de maneira a marginalizar a grande massa da população”. Esperava-se que um governo de esquerda, liderado por um partido cujas origens e trajetória estão indissociavelmente ligadas aos movimentos sociais, criaria outras formas de fazer política, criando uma atmosfera propícia ao fortalecimento desta democracia mais participativa e pluralista. Não foi exatamente o que assistimos.
O ovo da serpente – Algumas facetas da experiência petista de governo corroboraram, ainda que por caminhos distintos, essa política de marginalização. Sempre em nome da governabilidade, Lula e Dilma Rousseff garantiram a manutenção do “peemedebismo” como principal força de sustentação do governo, e aceitaram manter praticamente intocadas as estruturas políticas que, ao falar em nome da maioria, perpetuam seu silêncio. Ao falar e agir em nome de “parcelas historicamente marginalizadas da política institucional, por ter se tornado o representante do ‘povão’ dentro de um sistema tradicionalmente inacessível a essa maioria da população”, o PT colaborou para a reprodução de uma histórica despolitização da sociedade brasileira.
Para isso valeu-se, principalmente, da estabilidade econômica e de políticas distributivas que permitiram, de maneira inédita, elevar os padrões de vida e de consumo de parcelas significativas da população. Mas as políticas de distribuição mal disfarçaram um movimento de aproximação e mesmo incorporação ao governo de forças e lideranças conservadoras, culminando com a nomeação de Joaquim Levy, Cid Gomes e Katia Abreu para compor o atual ministério; a indiferença frente ao avanço dos grupos religiosos fundamentalistas, hoje detentores de um número expressivo de cadeiras no parlamento e muito à vontade para pautar parte da agenda do governo; e a desmobilização de movimentos sociais e populares, relegados a uma posição coadjuvante quando não criminalizados, perseguidos e duramente reprimidos.
O paradoxal é que a mesma política responsável por diminuir os índices de desigualdade serviu também de esteio ao recrudescimento do conservadorismo em sua face mais brutal, presente nos muitos discursos de ódio contra os movimentos sociais e as chamadas minorias, e tornada protagonista nas manifestações de domingo. Se há alguma possibilidade de reverter esse quadro a curto prazo, ela passa pelo governo e o PT admitirem seus muitos equívocos, e por uma reaproximação às forças progressistas a quem ambos, governo e PT, deram as costas. Mas o PT não assumirá a responsabilidade pelos seus erros e nem o governo pretende, ou pode, renunciar facilmente às alianças que lhe garantem ainda o mínimo de sustentação. Para ambos, parece, a esquerda neste momento serve apenas para a partilha do prejuízo.
* Clóvis Gruner é doutor em História e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.
Nenhum comentário:
Postar um comentário