sexta-feira, 6 de março de 2015

Etanol, o herói nacional?

Agora é a vez (...) do novo cardápio dos automóveis, que já não comem apenas petróleo ou gás, mas também milho e cana-de-açúcar de imensas plantações. Dar de comer aos carros é mais importante do que dar de comer às pessoas. E outra vez voltam as glórias efêmeras, que ao som de suas trombetas nos anunciam grandes desgraças. 
(Eduardo Galeano, autor do livro As Veias Abertas da América Latina) 

por MARCUS  V. DO NASCIMENTO



Foi o doce da cana-de-açúcar que deu forma à colonização portuguesa nos trópicos americanos em meados do século XVI. O açúcar, na época com alto valor no mercado europeu, incentivou a construção de centenas engenhos e o tráfico de escravos africanos que seriam “as mãos e pés do senhor de engenho”, nas palavras do padre jesuíta André João Antonil. 

A exploração da planta originária das ilhas da zona tropical do Oceano Pacífico em pouco tempo transformou a paisagem do nordeste brasileiro, sendo marca indelével do nosso período colonial. 

De acordo com o professor José Augusto Pádua, um dos principais nomes do campo da História Ambiental, “foi nos territórios da América tropical que o modelo de produção de monoculturas e trabalho escravo gerou o maior impacto na ecologia das paisagens. O desmatamento tropical é um fenômeno moderno, que atingiu o seu auge no século XX. O Brasil e algumas ilhas do Caribe, como Cuba e Jamaica, tornaram-se os símbolos do desmatamento provocado pela cana.” 

Na década de 1970, houve retomada da agricultura canavieira, mas o que interessava nesse período não era tanto a doçura da planta e sim o seu grande potencial energético, devido à crise do petróleo, originada no Oriente Médio. 

O álcool em pouco tempo conquistou o mercado brasileiro, e na década de oitenta grande parte da frota de automóveis do país já era movida pelo combustível de origem vegetal. Esse grande projeto brasileiro, baseado nos incentivos fiscais e empréstimos a juros baixos para usineiros e montadoras que fabricavam veículos com motor a álcool, ficaria conhecido como Proálcool. 

Na mesma medida em que a frota desses novos automóveis crescia, os latifúndios destinados à cana-de-açúcar e o preço dos alimentos aumentavam, já que as áreas antes dedicadas à agricultura familiar e gêneros alimentícios perderam espaço para a menina-dos-olhos do governo brasileiro. 

No entanto, a queda do preço do barril do petróleo, em meados dos anos noventa, serviu de desestímulo para o programa. Montadoras e consumidores voltaram seus interesses para os veículos movidos à gasolina, e os usineiros passaram a produzir açúcar. 

Situação inversa se verificou no início do século, quando o aumento do preço do petróleo, a constatação do esgotamento de suas reservas e os altos índices de poluição gerados pela sua queima levaram o mundo a buscar novas fontes de energia. Alavancou mais uma vez a produção de álcool. 

No Brasil, a produção do etanol passou a ser apresentada por produtores e por políticos como um modelo sustentável de desenvolvimento econômico. Em 2007, Lula, então presidente, afirmou que os usineiros “considerados como “os bandidos do agronegócio neste país” se tornaram “heróis nacionais”, mas não foi só o petista que defendeu essa tese. Na campanha para presidência da República do ano passado, o candidato tucano, Aécio Neves, criticou a falta de incentivo do governo Dilma Rousseff ao setor e propôs soluções para os seus problemas.

A maior tecnologia de produção vegetal de energia sem dúvida está relacionada à cultura da cana-de-açúcar, porém o discurso corrente associa a produção do etanol como parte de um projeto de desenvolvimento sustentável, capaz de propiciar recursos para o país e de gerar inúmeros empregos sem causar grandes problemas para o ambiente. No entanto, esse discurso esconde alguns problemas inerentes à produção em larga escala do etanol. 

Mesmo com avanços tecnológicos aplicados na produção nos últimos anos, os impactos ambientais desse modelo de desenvolvimento econômico ainda passam pela contaminação da água por resíduos da produção e por agrotóxicos, desmatamento da mata ciliar para expansão das áreas de cultivo, a poluição do ar, o empobrecimento do solo e o aquecimento global resultantes das queimadas ainda utilizadas na produção. 

Os problemas gerados não ficam restritos às questões ecológicas, afetam também o social, já que a agricultura familiar perde espaço para os latifúndios canavieiros, acabando com as condições de sobrevivência dessa população. O camponês ou passa a se submeter as mais degradantes situações de trabalho nos canaviais, ou migra para os centros urbanos no chamado êxodo rural. 

Esse processo que aumenta a concentração fundiária e de renda nas mãos de poucos também “incha” as cidades que com seus serviços públicos já precários não conseguem atender toda a demanda, além de fazer com que os gêneros alimentícios alcancem preços exorbitantes. 

O projeto do etanol não pode parar, pelo contrário, deve continuar sendo desenvolvido pelas inúmeras vantagens por ele oferecido em relação aos combustíveis fósseis, porém devemos considerar os riscos que o envolvem e não apenas pensar nos euros e dólares que podem entrar no país. E, como disse o diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), "se aceitarmos que há riscos, podemos começar a trabalhar para controlá-los. Os biocombustíveis são uma grande oportunidade, mas temos que trabalhar para abordar seus riscos no contexto internacional”. 

A exploração da mão-de-obra, a degradação ambiental, e a concentração fundiária se dissolvem como açúcar no cafezinho quando a atividade sucroalcooleira é rotulada como altamente sustentável. 

Abraços, 
Marcus.

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