por CLÓVIS GRUNER
Edward Hopper: Nighthawks |
Nos dias seguintes ao beijo gay entre as personagens de Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro em uma novela global, um pequeno texto repercutiu amplamente nas redes sociais ao funcionar como um contraponto às vozes conservadoras e fundamentalistas que denunciaram, mais uma vez, a destruição da “tradicional família brasileira”. Escrito e publicado originalmente em uma página pessoal do Facebook o texto, intitulado “Alguns esclarecimentos importantes”, teve quase 27 mil compartilhamentos só naquela semana.
Parte desta repercussão se explica, acredito, pela sua objetiva simplicidade. Logo nos primeiros três parágrafos lemos que o casamento gay é facultativo e que ninguém é obrigado a beijar alguém do mesmo sexo; a adoção homoparental, por sua vez, tira uma criança do orfanato, “não uma criança da sua casa”. Ao final de cada explicação, a sentença: se você não é gay, nem uma criança em um orfanato, as leis que autorizam o casamento e a adoção gays não lhe dizem respeito.
Em um ambiente cada vez mais intolerante, onde forças e grupos conservadores e religiosos parecem dispostos a colocar de joelhos quem quer que reivindique igualdade de direitos às chamadas minorias, a postagem e sua repercussão foram, de fato, uma lufada de esperança. O problema é que o texto recorre ao mesmo diapasão daqueles que critica. Embora tenha invertido o ponto de vista, seu discurso utilizou as mesmas categorias dos conservadores e fundamentalistas, ao insistir em manter na esfera do privado ‒ “isto não lhe diz respeito” ‒ aquilo que deve ser tratado como coisa pública.
As tiranias da intimidade ‒ Em um livro fundamental, “O declínio do homem público”, o sociólogo norte-americano Richard Sennett defende que, principalmente ao longo do século XX, testemunhamos um crescente desmoronar da esfera pública. Se uma das características da cultura burguesa consolidada ao longo do século XVIII foi a separação simbólica, mas nem por isso menos política, entre público e privado, separação que tinha como função primordial estabelecer uma distância entre os dois espaços, os séculos seguintes assistiram a derruição desta fronteira, à medida que o mundo privado sobrepujou-se ao público.
No mundo moderno, explica Sennett, a palavra “público” não designa apenas “uma região da vida social localizada em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos”. Mas também, e principalmente, a possibilidade de conviver com uma diversidade significativa de pessoas pertencentes a classes, gêneros, etnias, religiões, hábitos, etc..., distintos dos nossos e daqueles que nos são íntimos e familiares. Ao abolirmos a distância entre as esferas privada e pública, fragilizamos nossa capacidade de conviver com outro e passamos a tratar os assuntos e problemas públicos como se fossem, nas palavras do autor, “questões de personalidade”.
Cada vez mais o indivíduo contemporâneo vai ao público como um homem privado. Ele submete todo debate público ao crivo de sua personalidade, tomada como parâmetro de sua autenticação como ator social. A erosão de uma cultura pública, com o avanço e consolidação das muitas formas de “tiranias da intimidade”, forjaram indivíduos isolados e socialmente fragilizados. Os desdobramentos éticos deste “retraimento emocional com relação à sociedade”, além do esvaziamento do espaço público e o esgarçamento dos laços sociais, foi o aumento de nossa incapacidade de comunicar e intercambiar experiências comuns, condição fundamental para se tratar publicamente assuntos e problemas públicos, assumindo a porção de contradição e conflito intrínsecos à vida política.
O triunfo do “eu” – Uma das contradições de nossa contemporaneidade é a de vivermos em um tempo marcado por um aparente pluralismo e pela facilidade de comunicação, ainda que mediada pela parafernália tecnológica cotidiana. Mas isso que alguns chamam de “o novo espaço público”, apenas raramente se traduziu na invenção de novas sociabilidades e no fortalecimento dos laços de proximidade efetivas. Antes, parece prevalecer a insegurança ante um mundo sem referências estáveis nem laços duradouros, onde o outro é visto não apenas como um estranho, mas uma ameaça a ser temida e em alguns casos, simplesmente eliminada. Esse estado de coisas, que antes sugere uma nova forma de barbárie, contaminou de maneira temo que indelével qualquer tentativa de debate público.
Em discussões sobre política, tornou-se corrente o uso de termos como “idiota”, que eximem quem o utiliza de argumentar com o mínimo de razoabilidade. Se o assunto são os direitos humanos e das chamadas minorias – negros, gays e mulheres, principalmente –, os parâmetros para o diálogo, invariavelmente, reafirmam a incapacidade de compreender e conviver com as razões e motivações do outro em uma arena comum de coexistência, com a prevalência do “eu não gosto” ou o “eu não concordo” como arremedos de argumentação. Fala-se na precariedade das penitenciárias, na violência urbana e policial ou contra a redução da maioridade penal, e não faltará quem sugira “levar para casa” criminosos maiores ou menores de idade, porque não ocorre a quem o sugere que a segurança é um problema público, cujas soluções não são domésticas nem familiares.
O triunfo de um eu egoico e narcisista é um dos sintomas daquilo que, em texto lapidar publicado aqui no Desafinado, Murilo Cleto definiu como a “correlação entre o discurso moral e político”. Não por acaso são afetos afeitos principalmente ao mundo privado e íntimo, tais como o ressentimento, o medo e o ódio, aqueles que pautam hoje a vida pública e o debate político. Richard Sennett, ele de novo, diz que essa atitude revela uma forma de puritanismo. A troca entre preocupação pública e privada é característica de uma sociedade e de indivíduos incapazes de escapar da obsessão do eu e da autojustificação, reduzindo todo problema público à esfera privada e íntima e que, mesmo quando bem intencionada, prefere o cômodo, conservador e intimista “isto não lhe interessa” ao confronto franco e aberto na esfera pública.
A dúvida que fiquei das minhas aulas de ciências sociais com o Sennett é ser considerado radical num contexto como os Estados Unidos, pensando no declínio do público e das relações democráticas para uma política de guetos, mas no Brasil parece que vem na mão em, talvez, por aqui certos valores como estes, até mesmo algum cosmopolitismo, ser ausente entre uma gritante desigualdade. Se por um lado afirmavam a circularidade da pobreza entre os espaços públicos e privados, por outro isto tudo era uma forma de se esconder, semelhante ao discurso de que no Brasil não poderia haver racismo por causa da mestiçagem. Ou seja, vem na mão mas por causa que aqui relações democráticas públicas se fizeram ausentes, nisso a sua colocação sobre o caráter conservador e intimista e a negação ao confronto franco, não necessariamente na política partidária, mas na relação entre as partes de uma mesma sociedade, ao qual, ao pensarmos nos Estados Unidos, é como uma profunda crítica em certas crenças democráticas norte americanas em torno do homem público e espaço público, pois isso, por lá, é algo com sabor de perdido, aqui como se nunca tivesse existido. Utilizando-me do quadro que colocou, talvez ai já um indício, uma contraposição, um germe, na própria cultura norte americana, não sei, mais um insight seu texto me possibilitou fazer.
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