Os discursos cotidianos que se naturalizaram e contradizem a historiografia e os documentos históricos
por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR
Nesta quarta-feira, 1º de abril, completam-se 51 anos do golpe militar que deu início à Ditadura Civil-Militar no Brasil. O regime que durou 21 anos e institucionalizou a violência e a tortura representa um dos períodos mais nefastos da História do Brasil. Apesar disso, discursos cotidianos sem fundamento científico nenhum insistem na constituição de uma consciência histórica tradicional e por vezes saudosista a respeito deste período histórico. Abaixo desconstruímos alguns deles:
1. “Naquela época houve desenvolvimento econômico”
O "milagre econômico" que ocorreu entre os anos de 1968 e 1973 foi um momento de crescimento econômico no qual o produto interno bruto (PIB) cresceu entre 10 a 14% ao ano. Apesar disso, o "milagre" aprofundou as desigualdades sociais no Brasil. Isso porque o crescimento proporcionou a concentração de renda. No índice de Gini, que mede a desigualdade no país e vai de 0 a 1, ela saltou de 0,50 em 1960 para 0,62 em 1977 - o pior nível da história. O salário mínimo em 1974 tinha metade do poder de compra de 1960. Naquele contexto, Delfim Netto, então Ministro da Fazenda, disse que era "preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". O problema é que o bolo cresceu e não foi distribuído. Além da desigualdade, neste período a dívida externa do Brasil quadruplicou, passando de US$ 3,7 bilhões em 1968 para US$ 12,5 bilhões em 1973. Desta forma, o desenvolvimento defendido pelos saudosistas do regime veio acompanhado do aumento da desigualdade, da redução do poder de compra e do aumento da dependência externa por conta da dívida contraída no período.
Gráfico apresenta o aumento de brasileiros vivendo na extrema pobreza. Fonte: IPEA e IBGE
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2. “Naquela época não existia corrupção”
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a corrupção é um problema estrutural no Brasil e tem raízes no longínquo período colonial. Durante a Ditadura Civil-Militar não foi diferente. A frase “no tempo do militarismo é que era bom, pelo menos não tinha corrupção", é uma frase historicamente incorreta. No livro Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar, o professor Carlos Fico explica que foi criada a Comissão Geral de Investigações (CGI), que seria responsável pelo combate à corrupção. Em cinco anos (de 1968 a 1973) foram 1.153 processos. O resultado foi: 1.000 foram arquivados, 58 viraram proposta de confisco e 41 alvo de decreto presidencial. Ou seja, a comissão fracassou no seu objetivo de fiscalizar os gastos públicos e foi extinta 10 anos depois da sua criação. Além da não investigação dos casos, o que permitiu a construção da falaciosa moralidade dos governos militares, a tortura foi outro elemento de corrupção durante a Ditadura. Para funcionar ela precisava de um aparato judiciário corrupto, que permitisse a construção de perícias mentirosas, confissões renegadas e autópsias fraudadas. Obras públicas espalhadas por todo o Brasil também foram alvo da corrupção. Na obra Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos evidenciou a partir do estudo de documentos os esquemas envolvendo empreiteiras e os governos militares. Superfaturamento na construção da Ponte Rio-Niterói, confirmada pelo Tribunal de Contas da União – TCU, da Transamazônica e na Hidrelétrica de Tucuruí, são apenas alguns exemplos. Outra falácia é a da moralidade e "pobreza" dos ditadores. Segundo Thomas Skidmore, em Brasil, de Castelo a Tancredo, Costa e Silva foi acusado de obter favores para parentes pelo general Moniz Aragão. Isso nos permite afirmar que a Ditadura Civil-Militar foi um período de aprofundamento da corrupção que é estrutural no Brasil.
3. “Naquela época existia ordem”
O aprofundamento da desigualdade durante a Ditadura Civil-Militar permitiu o crescimento das periferias nas grandes cidades. Apesar dos números indicarem uma menor criminalidade no período, fato quase óbvio em se tratando de um contexto demográfico diferente e do regime ditatorial, a manutenção das camadas menos favorecidas nas periferias dava um ar de segurança às classes médias que apoiaram o golpe. Lá, nas periferias, os “esquadrões da morte” promoviam um verdadeiro extermínio, como pode ser verificado em pesquisas sociais como a produzida por Paulo Lins no livro Cidade de Deus. Se hoje a nossa Polícia Militar mata cinco pessoas por dia e é uma das mais violentas do mundo, mesmo com todos os mecanismos de correção e punição, imagine naquele contexto em que ela atuava livremente endossada pelo Estado. Del Vecchio, pesquisador da Universidade Estadual do Estado de São Paulo – UNESP, afirma que a Doutrina de Segurança Nacional, criada naquele momento como forma de repreender os crimes, “apenas criava uma sensação de segurança para as elites e a maior parte do povo vivia na tensão de ser morto”. Desta forma, a sensação de segurança estava diretamente relacionada à classe social da qual faziam parte os sujeitos naquele contexto.
4. “Naquela época a educação funcionava”
Na década de 1960 o Brasil vivia um momento de efervescência no debate sobre a educação pública, ancorado na concepção de educação popular de Paulo Freire. Tais debates deram origem à Lei de Diretrizes e Bases 4.024/61. Com o golpe de 1964, todo o debate foi interrompido e, segundo Germano, na obra Estado Militar e Educação no Brasil, a política educacional do período se caracterizou por: a) tentativa de controle ideológico em todos os níveis; b) vinculação direta entre a educação e o capitalismo a partir da teoria do capital humano; c) pesquisa científica voltada à acumulação de capital; d) descaso com o financiamento da educação pública e favorecimento do crescimento da iniciativa privada no setor. A lei 5.540/68, Reforma Universitária e a lei 5.692/71, de Diretrizes e Bases da Educação transformaram a educação em instância de controle militar. Dentro da tendência tecnicista e dos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade os professores passaram a ser formados em licenciatura curtas, que prejudicaram a educação por representarem uma formação aligeirada; o ensino superior consolidou-se como fator de diferenciação social, enquanto os cursos técnicos de secretariado, contabilidade e magistério eram direcionados às classes médias e baixas. O Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL criado pela Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967, foi um total fracasso. Criado com o objetivo de reduzir o analfabetismo que atingia 18 milhões de brasileiros, ou 33,6% da população com mais de 15 anos, o programa foi extinto em 1985 e diplomou apenas 15 milhões dos 40 matriculados, atingindo a redução de 2,7% no analfabetismo.
5. “Naquela época só foram presos, torturados e mortos os subversivos”
Segundo Pedro Dallari, advogado e presidente da Comissão Nacional da Verdade, foram 434 mortos e desaparecidos durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Esse número ainda é preliminar por considerar apenas os membros de organizações urbanas ou políticas e a guerrilha do Araguaia. Esses dados contribuem para a falácia de que apenas os envolvidos nas organizações de oposição política à Ditadura foram perseguidos. Entretanto, os filhos de militantes políticos por diversas vezes foram obrigados a assistir cenas de tortura, como no caso de Edson Teles e Janaina, na época com 5 e 4 anos respectivamente, filhos de Maria Amélia Teles e César Teles, que foram obrigados pelo Coronel Alberto Brilhante Ustra a presenciarem as sessões de tortura dos pais. Inclusive um livro intitulado Infância roubada foi produzido para denunciar os crimes contra as crianças durante a Ditadura Civil-Militar.
Crianças fichadas pelo DOPS durante a Ditadura Civil-Militar
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Outra evidência que desconstrói a falácia de que apenas "subversivos" foram presos, torturados e assassinados é o extermínio de mais de 8 mil indígenas por diversos motivos como remoção das terras, esbulho, prisões, torturas e maus-tratos.
Em conclusão, continuar a proferir discursos como os citados acima significa permanecer produzindo falácias, que na sua origem latina significa enganoso. Ou seja, as falácias tem por objetivo dar aparência de validade a argumentos errôneos produzindo discursos aceitáveis, mas que não possuem nenhuma evidência empírica para sua confirmação. Por essas e por outras, concordo com historiador espanhol Julio Aróstegui quando afirma que "a História está longe de ser uma questão de opinião ou de gosto".
Abraços,
Osvaldo.
Ótimas revelações, muito pertinentes nos dias atuais. Parabéns!
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