No discurso pseudo-pragmático, a utopia tornou-se objeto de repúdio e descaso. Em tempos de descrença, a sua morte significa o fim da esperança. Sem ela, o único caminho é para trás
por MURILO CLETO
Eu estava na abertura de uma conferência sobre os direitos da criança e do adolescente. Com algumas horas de atraso, lideranças puseram-se a falar sobre o tema com uma paixão contagiante. Uma delas insistiu na ideia de que o encontro precisava de sugestões concretas e não utópicas. Repetiu diversas vezes a sentença pra fixá-la.
Logo depois, foi a vez de outra, que, recuperando a máxima da primeira, pediu encarecidamente aos participantes que deixassem grandes divagações de lado para concentrarem-se no verdadeiro problema. O evento apenas começava, mas o que havia de errado entre os jovens já estava detectado e ali exposto: a família, segundo ele, está desestruturada. Os pais não vêem a hora de entregar os filhos na escola para que a educação, uma obrigação privada, seja realizada pela escola. Além disso, o filho, que deveria enxergar nos pais o exemplo da disciplina, está acostumado a vê-los levantarem ao meio-dia porque não trabalham, mas vivem de alguma "bolsa não sei o quê". Seguindo o raciocínio, continuou, o pai vai preso e a mãe se sujeita ao tráfico para manter o sustento da casa.
Em primeiro lugar, a fala parte do pressuposto de que crianças são, já de antemão, um problema. Segundo, e mais grave, anuncia o triunfo de um discurso exclusivamente retórico que tomou conta da vida pública de um modo irremediavelmente preocupante. Em que pese ser absolutamente legítimo inferir que a concessão de bolsas leve à vadiagem, à criminalidade e à formação de crianças delinquentes, o raciocínio especulativo tem cada vez mais deixado o espaço da intimidade para ocupar a agenda pública do país.
Do sofá da sala para a abertura da conferência, a ideia percorreu um longo caminho. A começar pelo fato de que descendem das guerras culturais uma imposição autoritária do discurso moral sobre o político. Como sustenta Pablo Ortellado, "há apenas dez anos, comentaristas conservadores como Olavo de Carvalho ainda eram figuras folclóricas no jornalismo brasileiro. Nos últimos anos, porém, os meios de comunicação de massa incorporaram tantos conservadores que eles passaram a dar o tom geral do jornalismo de opinião. Dentro e fora da imprensa, todo debate político hoje é dominado por um discurso de ódio que coloca temas morais como o combate ao homossexualismo e o endurecimento penal em primeiro plano e subordina as questões econômicas e sociais a essa visão de mundo punitiva."
Mais do que isso, a moralização do discurso também sobrevive a partir de uma lógica pseudo-pragmática que associou as utopias ao universo da fantasia, senão relegadas ao repúdio, ao menos ao descaso. "Vamos debater não utopias, mas propostas que possam realmente ser colocadas em prática", é o que disseram na conferência. Em tempo: é o que as lideranças disseram na conferência.
Baseada também numa fantasia, a noção de que as utopias estão descoladas da realidade sobrevive da mesma lógica que acusa. Em primeiro lugar, porque desconhece-se o que de fato significam as utopias e, em segundo lugar, porque nada deste pragmatismo anunciado da negação à utopia é real, mas tem funcionado como nunca.
É o que explica a ascensão de pautas carentes de empirismo, mas recheadas de anseios particulares, como é o caso da aprovação da proposta de redução da maioridade penal pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. De nada adiantam as estatísticas diante da impressão íntima de que maiores cooptam menores para o mundo do crime diante da ausência de punição. "O ECA é utopia", eles dizem. Da mesma forma, a crescente noção de que o medo da punição nos torna mais dóceis tem provocado euforia sobre a execução de brasileiros na Indonésia. "Defender criminoso e direitos humanos é utopia".
No último dia 13, o escritor Eduardo Galeano faleceu em Montevidéu, no Uruguai. Dentre tudo o que produziu, destaca-se uma reflexão nunca tão urgente quanto agora: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."
Em tempos de descrença, a morte da utopia é o fim da esperança. Sem ela, o único caminho possível é para trás.
Abraços,
Murilo
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